quinta-feira, março 19, 2015

A Acromiomancia Revisitada -VI. Entre a Águia e o Pavão





«Cheguei a Lisboa no dia 15 de Março (de 1974) à noite. na manhã seguinte, fui surpreendido pelo golpe das Caldas.(...)
Relacionei o acontecimento com a publicação do livro do general Spínola, "Portugal e o Futuro", que sabia na "forja" há muito tempo. Da sua existência tivera conhecimento em Dezembro de 1971, durante uma breve viagem de oito dias à Guiné. O general Spínola confidenciara-me que estava a escrever um livro sobre a possibilidade de outra solução que não a do imobilismo político da unidade territorial, adoptada pelo Governo.
Numa conversa com o ministro da Defesa, defendi a obra não como uma solução para o problema ultramarino, mas como demonstração de que se poderia repensar em termos diferentes daqueles a que o governo se aferrava ostensiva e teimosamente. O ministro Silva Cunha retorquiu-me que o livro se limitava a ser um exercício de Direito Constitucional, sem grande viabilidade prática porque os partidos nacionalistas nunca aceitariam a teoria de Spínola, com a agravante de uma tal publicação, subscrita pelo general, criar brechas na resistência nacional.
Enfim, apesar se ter autorizado - sobre informação do General Costa Gomes - a publicação de "Portugal e o Futuro", vê-se que Silva Cunha não se sentia... confortável. Principalmente pelo impacto que provocou.
Telefonei ao general António de Spínola  a felicitá-lo e a informá-lo de que podia contar comigo. Manifestei--lhe, do mesmo passo, a minha estranheza pela celeuma que o livro levantara, a ponto de o prof. Marcelo Caetano o ter atacado na Assembleia Nacional.
Quando, insensatamente, o Governo (ou o Presidente da República, não sei) exigiu um acto de disciplina, por parte dos oficiais-generais, fiquei impressionado e preocupado. Em conversa  com o ministro da Defesa, tentei fazer-lhe ver que aquilo a que chamei o "beija-mão" dos generais fora a alienação definitiva da hierarquia em relação aos oficiais de patentes mais baixas.
O ministro não gostou de me ouvir. Fez comparações com a estrutura da Igreja, na qual, periodicamente, os bispos afirmam a sua fidelidade ao Papa.
Respondi que não era bem o caso, que se criara uma cisão entre os oficiais-generais, que, na sua maioria, disciplinadamente, obedeceram à imposição.
No caso da marinha, alguns fizeram-no apenas por amizade ao ministro, almirante Pereira Crespo, que, sendo um homem de tradições democráticas, não obrigou ninguém a ir, mas pediu, como favor pessoal, que os seus oficiais-generais comparecessem a esse execrável "beija-mão".
Aqueles aos quais, depois, os capitães chamaram a "brigada do reumático", estavam, efectivamente, fora das realidades militares. Por incúria ou porque se recusavam a acreditar, ignoraram o Movimento dos Capitães, já manobrado (e controlado) por líderes de doutrinação marxista-leninista.
O tempo me deu razão.
O 25 de Abril, apesar do meu conhecimento de uma instabilidade crescente e de um descontentamento geral, não se incluía nas minhas previsões.»
- Cmdt. Alpoim Calvão, "De Conakry ao MDLP -Dossier secreto"


«Tive notícia do que se estava a passar em Lisboa pela BBC, no bar de Oficiais da ZOT, a Zona de Operações de Tete. Estava a sós com o comandante da zona, o coronel Rodrigo da Silveira, e ouvimos que o general Spínola estava a chefiar o golpe de Estado. Ingenuamente, e reflectindo de certo modo a imagem que nessa altura Spínola tinha na tropa, disse ao coronel Rodrigo da Silveira que, finalmente, iríamos ter alguém no topo da hierarquia que entendia o nosso esforço militar e que iria finalmente possibilitar-nos melhores meios e mais apoio logístico para a nossa acção. Respondeu-me Rodrigo da Silveira que eu estava completamente enganado, porque, com Spínola no poder, estava tudo perdido. Foi para mim um choque bastante grande ouvir estas palavras porque, como disse, a imagem que os militares  e que a juventude tinham então do general Spínola era a que tinha sido laboriosamente construida nos cinco ou seis anos anteriores àquele 25 de Abril - a imagem do grande centurião português, do grande homem de armas, do grande herói. Só que era uma imagem que não correspondia à realidade. Os anos 63/64 do seu batalhão em Angola estavam já muito longe. Penso que a imprensa internacional foi grandemente responsável pelo mito, e que a imprensa portuguesa se limitou a reflectir o que tinha saído no estrangeiro. Lembro-me, se não estou em erro, que foi a imprensa francesa quem mais trabalhou nesse sentido, com capas de revista em que aparecia o general Spínola de monóculo, de luvas e pingalim, de camuflado no meio das suas tropas - o herói português, um pouco à imagem que nós tínhamos dos heróis franceses das guerras da Argélia e da Indochina, "bebida" nos livros de Jean Lartéguy. Foi essa imagem que nos apresentaram, e penso que ela enganou muita gente - não só a nós, juventude da época, como a muitos portugueses mais responsáveis, que nessa altura embarcaram um pouco nessa esperança de um Spínola à frente do MFA. O que permitiu que não houvesse reacção nem das tropas leais à missão histórica de Portugal, nem dos dirigentes industriais e financeiros portugueses que confiaram no general Spínola. A mesma confiança acabou por se tornar extensiva ao grosso da população: a presença de Spínola tranquilizava, aquilo era um golpe de Estadpo e não uma revolução comunista.
Spínola achava que o Partido Comunista tinha um certo papel a desempenhar, mesmo na democracia que se pretendia instaurar. E dava-se a imagem de que não era o Partido Comunista o motor das revolução, mas sim um grupo de oficiais comandados pelo fiel e grande cabo-de-guerra Spínola.»
- D. Francisco Van Uden, Capitão de Inf. Milº "Comando" "GEP", em "Os Últimos Guerreiros do Império"


Duas breves notas, porque penso que os depoimentos em epígrafe são bastante eloquentes por si, e quase dispensam comentários.


Sobre Alpoim Calvão, oficial de Marinha, "Fuzileiro Especial" e um dos oficiais mais condecorado das Forças Armadas, convém saber que estava indigitado em 1974 para ser o próximo (e a breve trecho) director da DGS. Era portanto uma pessoa da total confiança do governo. E era também uma pessoa das relações próximas do general Spínola, sob as ordens de quem actuou na Guiné, nomeadamente na ultra-secreta "Operação Mar Verde" - raid de tropas especiais portuguesas (fuzileiros e comandos) à capital da Guiné-Conacry -, tendo formado, após a retirada de Spínola para Espanha e depois Brasil, no pós-11 de Março, o M.D.L.P - Movimento Democrático de Libertação de Portugal. O resto vejam no Google, para pouparmos espaço.

Ficamos assim a perceber um pouco melhor a amplitude do desacerto de Marcello (e de Thomaz) na condução de áreas nevrálgicas e cruciais para o regime, como eram as forças armadas (conferir, por favor, postal anterior a este respeito). Esta falta de tacto na abordagem a uma área da maior sensibilidade, era agravado por evidente desleixo na análise e tratamento de informação, pelos vistos, já conhecida. Estava uma bomba relógio em acção e, em vez de desarmadilhar o engenho, acelerou-se-lhe o relógio. A última coisa que um país em guerra precisa é de um governante que use de prepotência ostensiva para com aquilo que representa a própria Força maior duma nação. O próprio Calvão revela o pensamento da classe em relação àquilo: "execrável beija-mão".

Mas a verdade é que da parte das forças mais à direita, protagonizadas por Kaulza de Arriaga, havia, desde 1973, pressões junto presidente da República para substituir Marcello Caetano. Este chegou a apresentar a demissão por duas vezes. E quando o 25 de Abril lhe rebentou ao colo, era, indubitavelmente, um homem só, descrente, amargo (até por trágicas circunstâncias pessoais) e acossado. Nesse dia, a generalidade do país, de início, ficou na expectativa -o golpe tanto poderia ser de esquerda como de direita. Esta, se calhar, até era a mais esperada. E embora sendo de esquerda, como só posteriormente se iria revelando, em crescente virulência, era uma esquerda, por assim dizer, com pele de cordeiro. Nesse aspecto, Alpoim Calvão reforça integralmente a perspectiva do Capitão Van Uden: Os nomes que encabeçaram a Junta de Salvação Nacional, formada no 25 de Abril, justificaram as minhas esperanças de que o Programa apresentado à Nação fosse cumprido. Nomes prestigiosos como os generais Spínola, Diogo Neto, Galvão de Melo, Jaime Silvério Marques; os dois oficiais de Marinha - profissionais competentes e homens de bem - mereciam confiança. principalmente o comandante Pinheiro de Azevedo, meu mestre na Escola Naval, disciplinador sem mácula, fulcro na repressão dos agitadores, que, na década de 30, amotinaram o corpo de Marinheiros.»

A pele de cordeiro, que tinha o mais forte expoente  na figura de Spínola, funcionou assim como anestesiante, dardo tranquilizador da presa, até que o lobo da Quinta Coluna tivesse as patas bem seguras e instaladas no curral. Por isso, quando, finalmente, retirou  a pele, ficou, em todo o seu esplendor, a besta. Da revolução.

15 comentários:

Bmonteiro disse...

Estou a apreciar as memórias.
Contudo, agora e à posteriori:
a)Como e porquê,o anterior regime, se revelou incapaz de evitar o golpe dos capitães?
Como se relacionavam com eles, capitães, os comandantes e generais?
b)Como agora, após duas/três décadas políticas inebriantes, pôde o país chegar como chegou a 2010-11, em bancarrota?
c)Drama militar habitual: os militares, incluindo os generais, a dizerem não ser políticos.
Pois, deixam a 'maçada' de governar para os políticos.
Que criticam abundantemente:os oficiais, nas salas/bares respectivos; os generais, quando deixam o activo.

Euro2cent disse...

Nos idos do PREC os poucos anarquistas que ainda sobravam em Portugal por vezes pichavam uns ditos a preto numas paredes brancas, reconheciveis por um dos A ser inscrito num circulo.

Um dos ditos era particularmente memorável: QUE MANIA A DELES SEMPRE A DAREM ORDENS.

Subentendo-se a possibilidade de não serem obedecidas - uma versão concisa do diálogo shakespeareano:
"I can call spirits from the vasty deep."
"Why, so can I, or so can any man; But will they come when you do call for them?"

A costela anarquista de boca pequena ainda corre fundo na alma portuguesa, que resmorde entre dentes "Espera aí que já te lixas".

dragão disse...

Não eram bem anarquistas. Eram anarcas.
Havia uma lendária no aeroporto:
"O último a sair que apague a luz."

muja disse...

E como é que ele desarmava o engenho?

Aliás, poderia Marcello fazer alguma coisa?

Portanto, o que o Dragão diz é que, com esta e outras que tais, Marcelo teria alienado aquela parte das Forças Armadas que poderiam ter sustentado o Governo?

Também não estou certo de perceber o sentido exacto da frase de Calvão: "fora a alienação definitiva da hierarquia em relação aos oficiais de patentes mais baixas."
Quer ele dizer que assim se apartaram os capitães e subalternos dos seus oficiais superiores e governo?

Outra coisa, que não consigo aferir, é a dimensão da tal celeuma que o livro deu. Confesso que já o pude ler e não me apeteceu. Hei-de fazê-lo qualquer dia.

muja disse...

De qualquer maneira, o Dragão não respondeu no outro postal. A existência do movimento dos capitães precisava extravasar a jurisdição e o Direito militar?

Não era, em si mesma, coisa prevista e punida pela justiça militar?

Ou seja, se o problema se pôs ao chefe do Governo porque o problema extravasou a vasilha onde propriamente devia estar contido.

muja disse...

...se o problema se pôs ao chefe do Governo foi porque...

dragão disse...

Um exército em campanha, distribuído por vários continentes e regiões não é exactamente uma coisa arrumadinha em quartéis. Já expliquei que a guerra subversiva é a mais complicada e desgastante de todas.
Quando eu falar da Guerra propriamente dita, talvez essas dúvidas se desvaneçam...

E não sou eu que digo: são oficiais altamente condecorados, heróicos combatentes, e insuspeitos de qualquer simpatia revolucionária, que o dizem. Penso que têm mais autoridade que eu para o efeito.

mm disse...

a "alienação definitiva da hierarquia em relação aos oficiais de patentes mais baixas" referida explica como é que um bando de capitães conseguiu tomar conta da coisa

muito provavelmente os oficiais generais estavam alienados do que se estava a passar e os oficias superiores estariam indiferentes porque, para mais, essa historia dos problemas com os milicianos não lhes tocava

na “tropa”, hoje também mas muito mais então, os oficiais generais não falam com capitães e oficiais subalternos (de onde saiu a massa do mfa); as messes são diferentes, os clubes são diferentes,….. e mesmo quando falam é com a soberba própria que a hierarquia militar tonar natural

- ó nosso capitao, veja lá isso com a sua rapaziada

Ordem dada! O General não perde mais um minuto que seja a pensar quo o capitao não vai expeditamente tratar que a vontade do Sr General se cumpra

A clivagem entre oficiais generais e capitães/subalternos antes do 25 de Abril era ENORME

não é por isso de estranhar que para as chefias militares a preparação da lhes tenha passado ao lado: os capitães eram bons para ir para o mato com as tropas; não se lhe reconhecia capacidade para organizar um golpe de estado


muja disse...

Eu não ponho o que diz o Dragão ou o Calvão em dúvida. Tento simplesmente compreender e esclarecer-me.

Compreendo que o exército não fosse arrumadinho. Mas a questão é que o Costa Gomes sabia do movimento.

Portanto, não se pode alegar que a coisa andasse por ali sem que ninguém em cima soubesse dela...

lusitânea disse...

Vão por mim.O 25 nunca foi feito para o que se deu.Os democratas importados e logo a seguir todos os desertores e refractários fizeram a obra conhecida.O Spínola enquanto Presidente podia ter tentado acabar com a bandalheira.Mas decidiu só a fazer não o sendo...e a partir daí foi a táctica do salame em que ainda se anda a caminho do socialismo científico...

lusitânea disse...

E hoje a missão é fazer a "raça mista" mesmo depois das cenas dos capítulos anteriores...ou seja branquelas a fugir de África com uma mão à frente e outra atrás...mas claro sem racismo nenhum...

lusitânea disse...

Acerca dos últimos guerreiros do império uma coisa que gostaria de saber é a dos voluntários para a guerra depois do 25.Com a DSP já controlada pelo PCP...

muja disse...

Lusitânea, então tem que esclarecer uma coisa, aliás duas: se o 25 não foi feito para o que se deu,

a) foi feito para quê, concretamente?

b) porque razão era o golpe de estado a única via para lá chegar?

Anónimo disse...

Tentemos explicar o problema sem recorrer à palavra "acordo":
Em inícios de Setembro de 73 centenas de oficiais reunem em Évora em clara violação do código militar. A reunião é acompanhada pela DGS e dela resulta um abaixo assinado dirigido a Thomaz, ou seja, o próprio proto-MFA opta pela publicitação do movimento.
Desde essa data Marcello sabe que há centenas de oficiais a reunir fora do contexto oficial, com reinvindicações comuns e suscitando o envolvimento das altas chefias e do PR. Se um facto desta natureza já seria suficientemente grave num contexto de paz, em 1973 isto é inconcebível, inimaginável, inaceitável e o que quisermos juntar, para o regime. Como reage Marcello?
Zero, nada, zilch. A inacção que se segue não tem explicação lógica, a menos que aceitemos que Marcello procura utilizar o movimento dos oficiais para reforço da sua degradadíssima posição. Outra explicação só poderá passar pela absoluta irresponsabilidade e inconsciência de Marcello perante factos daquela gravidade.
Esta conduta de inacção totalmente irrazoável tem um perfeito paralelo nos acontecimentos do próprio dia 25/4.
Perante um pronunciamento de alguns oficiais com pouca notoriedade, acompanhados de umas centenas de miúdos ensonados, o que faz o presidente do conselho de uma nação em guerra?
Nada.
Encerra-se num sítio improvável e durante todo o dia pela sua inacção, desarticula qualquer possibilidade de resistência.
Concordando à partida que não é crível haver acordo explícito entre Marcello e os outros para o que se passou, parece-me que a única explicação racional e lógica é que Marcello concluiu que poderia manipular o curso dos acontecimentos para reforçar a sua posição e que a conduta das chefias militares reforçava essa percepção. E que no final, tiraram-lhe o tapete. Creio ser o próprio Silva Pinto que refere que no início do dia 25/4, Marcello está calmo e seguro no Costa Gomes e que só perde a confiança à medida que percebe o onde se meteu.

Miguel D

zazie disse...

Como é que alguém que se rende frente aos militares e passa o poder ao principal deles, pode estar a pensar a vir a manipular no futuro os acontecimentos?

Oh, disparates.

A partir do momento em que o poder fica na mão dos militares e com aquele programa, que podia fazer.