terça-feira, março 10, 2015

A Argumentúcia Anti-referendária (r)

Os principais argumentículos contra a realização de referendos são bem conhecidos e repenicados. Passo a reenunciá-los, acompanhados dos sopapos que merecem. É sempre oportuno recapitulá-los e ilustram bem esta coisa esquisita a que chamam "regime".

Argumentículo Primeiro: Os portugueses não se interessam pelo referendo. Comparecem em percentagens cada vez mais reduzidas, marimbam-se para o solene acto, fazem manguitos a esmo. Resumindo: São uns irresponsáveis militantes. Gente indigna de tão generosa concessão.

- É verdade. Tem sido esse o fenómeno recorrente. Não obstante, com idêntica má catadura, os portugueses têm descomparecido, maioritaria e escandalosamente, em eleições nacionais de todo o tipo - autárquicas, legislativas e presidenciais - e isso não tem inibido os anõezinhos percentuais vencedores das mesmas de se laurearem e gigantonearem com maiorias absolutas, tanto quanto de se gloriarem em delírio com legitimações fulgurantes e locupletanços anexos. Mais, qualquer maioria absoluta de meia tigela conquistada à boca destes píveos desafluxos é entendida como autorização solene para uma ditadura a prazo. Portanto, se o desinteresse das pessoas é um bom argumento para não realizar referendos, igualmente é um bom argumento para não realizar eleições.


Argumentículo Segundo: Há certas questões de transcendente importância que não devem estar sujeitas ao capricho dos plebiscitos e do povo avulso, mas apenas de profissionais políticos dotados de superlativas clarividências e investidos de superpoderes voláteis.

- Sou o primeiro a admitir que um país não deve andar aos caprichos da turba, sobretudo quando essa turba é diariamente intoxicada, desmiolada, manipulada e estupidiformada por vários canais de televisão, rádio, jornal e revista, replicados por uma constelação de bullblogues, digitenzias, tico-tanques e pornorreias afins. Principalmente, porque sendo essa turba manipulada sem dó nem piedade, os seus caprichos são induzidos e mais não corporizam que os interesses de quem remotamente a telecomanda. Aceito igualmente, e por implícito efeito acumulado, que o povo avulso esteja cada vez menos lúcido e apto a escolher livremente o que quer que seja. No entanto, mais que capaz, essa massa anónima e desqualificada é tida como indispensável e soberana na eleição dos tais profissionais clarividentes -presidentes da república, deputados, governos, etc - que, após culinária urnopédica, se aboletam aos lemes e úberes da Coisa Pública. Ora, se os caprichos da turba são excelentes para eleger tão inefáveis tutores da pátria, não se compreende como ~possam não ser bastantes para opinar sobre assuntos que claramente excedem a gestão ordinária delegada nos mesmos? Relembro que, em tese, estes pinóquios engravatados são investidos para admininistrarem o país, não para aliená-lo. Brada pois à evidência: se o povo avulso não é credível para ser ouvido sobre questões extraordinárias relativas ao seu destino colectivo, então também não é credível para eleger qualquer tipo de representantes ao despacho dessas mesmas questões. E devém, em consonância, um povo cativo duma menoridade e imaturidade atávicas e perpétuas, bem como absolutamente inibidoras de qualquer poder decisório, (de)legal ou administrativo. Os seus tutores, implicitamente, deveriam ser nomeados por supra-entidades externas. Quanto mais longínquas melhor. A limite, Deus. Ou o Presidente dos Estados Unidos da América, Seu actual representante na Terra.
Recapitulando: quem não é confiável para se pronunciar e legitimar em referendo, muito menos é confiável para se pronunciar e legitimar em eleições. Pelo que, no actual regime, e como fica exposto, ao abdicar da legitimação por referendo, o Governo abdica da sua própria legitimidade e comete, grosseira e descaradamente, um abuso, mais ainda que de poder, de confiança. Donde decorre que qualquer português, tanto quanto o direito, tem o dever de apresentar queixa do seu próprio - e exorbitante! - Governo aos tribunais.

Argumentículo Terceiro: O referendo é, de certa forma, redundante. O povo avulso tem os seus representantes eleitos na Assembleia da República, a quem passou devida procuração por quatro anos. Estes podem igualmente, em seu nome, ratificar ou não os Tratados Internacionais.

- Ora bem, o povo avulso, através de eleições periódicas, escolhe entre determinados partidos que apregoam e garantem determinados programas. Os programas até estão escritos, são repetidamente jurados diante de milhões de testemunhas e funcionam como "contratos de promesa". Todavia, uma vez triunfante, cada cacique reinante no partido vencedor (e quanto maior a maioria, pior), constitui governo e marimba-se positivamente para o pré-acordo nupcial. Tendo sido eleito sob o compromisso solene de baixar impostos, levanta-os; de reduzi-los, multiplica-os; de criar empregos, extingue-os; de combater a corrupção e o nepotismo, açambarca-os; de proceder a específicos referendos, contorna-os. Quer dizer, contratado para fornecer determinado produto, não só não o entrega, como, a maior parte das vezes, realiza o seu oposto. Que fariam as pessoas, se em vez da moradia pré-acordada e paga, lhes apresentassem uma casota de cão, ou em vez do Mercedes-Benz sinalizado produzissem um triciclo de criança? Indignavam-se, certamente. Enfureciam-se, faziam queixa à polícia e aos tribunais. Infelizmente, as pessoas parecem dar mais importância à casota e ao automóvel do que ao futuro dos filhos e dos netos. Além de que a polícia e os tribunais andam sob trela invisível, mas deveras efectiva.
Somos forçados a concluir que uma democracia assim é uma fraude descarada e sistemática. Uma ciganice pegada.
O facto é que os representantes que são oferecidos periodicamente ao sufrágio popular resultam duma escolha prévia dum cacique reinante - o capataz partidário do momento. Ora, essa selecção constitui, por si, também um contrato de promessa: os respresentantes são seleccionados com base no compromisso de, uma vez impingidos ao povo, pagarem o investimento através da obediência canina ao cacique que os deferiu. Ou seja, são representantes do cacique antes de serem representantes do povo. E agem em conformidade. A primeira promessa é que conta; a segunda é meramente folclórica. Os putativos representantes do Povo na Assembleia da República representam, antes de tudo, o seu cacique partidário; tal qual o cacique partidário investido e sustentado por eles em turbo-soba da nacinha representa, antes de tudo, os seus accionistas parlamentares e familiares (partidários, meta-partidários, nacionais e internacionais). A este circuito fechado da mais vergonhosa trafulhice tribal e oligárquica chamam eles "disciplina partidária" ou "fidelidade parlamentar".
Pois bem, sendo que todos estes bandoleiros de bancada e ministério se representam e legitimam exclusivamente uns aos outros, servindo-se apenas do voto popular como gazua ou trampolim para os seus assaltos à Coisa Pública, não sobra qualquer espaço de genuína representação pública. O povo avulso, não é tido nem achado nisto tudo. O cacique pergunta aos seus representantes na Assembleia se concordam e ratificam; os parlamentares respondem ao seu régulo e representante no Governo, naturalmente, que sim. Na verdade, o cacique nem pergunta, ordena; e os perguntados nem respondam, prostram-se e veneram.
Uma operação desta qualidade e envergadura, poderá ser uma sublime macacada, uma olímpica intrujice, uma solene farsa, poderá ser tudo menos uma acto de legitimação nacional. O país real só fornece as costas: para corcel da sela destes jóqueis, para faqueiro destas cozinheiras, para gabinete destes conluios; e o fundo das ditas : para glorificação destes tratados. E regalo destes tratantes.

Quanto ao povo, não é soberano: é analfabeto e patego. Por isso é que assina de cruz... Procurações em branco.
Um regime destes não é corrigível através de eleições, reformas, nem revoluções. Porque um regime destes não se muda: varre-se!

2 comentários:

Vivendi disse...

Perante um texto destes só me resta assinar por baixo.

Mais uma vez o Dragão comprova que todos os grandes intelectuais e pensadores são contra a democracia.

Alguém já parou para pensar o que seria de uma família ou uma empresa sobre o método democrático?

Zephyrus disse...

Referendo ao euro: venceria certamente o não.

Referendo à entrada na CEE: não sei se o sim venceria...

Referendo ao casamento bichona: o não venceria confortavelmente.

Referendo à adopção bichona: vitória do não com larga margem.

Referendo à actual constituição xuxualista há 40 anos: vitória do não
graças ao Norte e Centro do país.