«Recorde-se que é o título nacional do Pantaboxbol que vai estar em disputa. O Pantaboxbol, como é sabido, ten vindo a tornar-se nos últimos tempos, para além da arte marcial suprema, o desporto predilecto das massas. Isso deve-se muito provavelmente ao facto desse desporto reunir em si as regras e possibilidades de todos os desportos. Os atletas podem fazer uso de quaisquer equipamentos de quaisquer outras modalidades, o que confere um garrido e espectacularidade ímpares. Aliás, na escolha do equipamento adequado reside quase sempre o requisito para o bom ou mau sucesso no combate. Tradição, essa, reconheça-se, que já remonta à Ilíada.
Ora,o confronto desta noite não é excepção. Para o primeiro round, adivinham-se já as tácticas, a avaliar pelos arreios. Assim, Gonçalo Lapada, o Tio, parece apostar na estabilidade defensiva, envergando um par de esauis e empunhando um taco de golfe, tamanho 5; já o seu adversário, Tony Pimba, o Pato bravo, alardeia intençõesde maior mobiliade ofensiva, calçando um par de patins em linha e arvorando na mão direita um bastão de basebol. É claro que tudo rodopiará em paradas e contra-paradas, estocadas e contra-estocadas, ataques e defesas, à procura duma brecha para o golpe fatal. O público, adepto e conhecedor, sabe perfeitamente que, a limite, o Tio tudo fará para conseguir aplicar o seu golpe mais mortífero e decisivo, ou seja, o já lendário "estalo"; enquanto, por seu turno, o Pato Bravo manobrará no sentido de tentar uma aberta para desfechar com o seu famigerado e letal "cachucho".
Entretanto, o árbitro olha mais uma vez para a mesa do júri, enquanto os lutadores recebem as últimas instruções dos treinadores e são refrescados e afagados pelos massagistas. Gonçalo, o Tio, depois de complicado embrulho com o equipamento por causa de se ajoelhar, escuta com atenção beata as palavras do padre melífluo que, além de treiná-lo, também o abençoa, confessa, absolve de todos os pecados e entoa, a culminar, um Lhe Deum de vésperas de pancadaria; enquanto o massagista, jurista de profissão e momentanemente acólito, lhe faz chegar a hóstia galvanizante ás dentuças sôfregas. Enquanto, no canto oposto, Tony, o Pato Bravo, memoriza os planos maquiavélicos do seu deputado-treinador, ao mesmo tempo que vai emborcando copázios de tintol incentivante, que o carroceiro massagista (e historiador por conta) lhe atesta e despenha pela goela abaixo. Ambos, no entanto, vão adquirindo lampejos cada vez mais maníacos nos olhos e começam a mal disfarçar os tremores homicidas que lhe sacodem os membros. O Tio acaba mesmo, neste momento de proto-exaltação, por ter um ataque epiléptico dos tesos, o que, dados os esquis á mistura, não deixa de ser assombroso de se ver e também algo contundente para o seu próprio staf. O público, sempre atento, aplaude esta espécie convulsiva de Cata já tradicional neste atleta. O rival, por seu turno, não querendo ficar atrás, esmurra o peito peludo de cidadão atarracado e entoa roncos formidáveis de gorila maguila, aspergindo gafanhotos em todas as direcções e espuma esbranquiçada pelas comissuras ruidosos. A audiência, maravilhada, rompe em olés. Entusiasmado, o Pato Bravo, deriva para o fado vadio, numa variação de chimpanzé alarvemente nostálgico, o que, por osmose eniviesada, causa alguma comoção e lágrimas. E, logo de seguida, novo coro de olés, e "ah fadista!", por toda o pavilhão.
Entrementes, o Tio mordeu a língua à mistura com a hóstia e esperneou tanto que partiu um dos esquis nas costas do seu próprio treinador. Finalmente serenado, após várias cadeiradas na cabeça, recebe suturas e primeiros socorros, bem como uma excomunhão passageira que o presbítero ressentido (e opus dei famoso) não deixa de lhe aplicar, tem que, igualmente, trocar os esquis por uma prancha de surf. O clérigo, esse, fala-lhe agora de longe, com um megafone.
Mas eis que o árbitro convoca os dois lutadores ao centro, para se cumprimentarem e dar início ao combate. Isto acarreta algum embaraço. Por um lado, o Tio, em cima da prancha, não consegue mover-se por falta de ondulação; por outro, o Pato Bravo, desdestro na patinagem, desembesta em cima das rodas e sai estatelado pelo lado oeste, depois de quase atropelar o juís da contenda, Este, apelando à sensatez e ao pragmatismo, opta por dar incício á partida, sem mais protocolos nem anteparos.
A multidão ruge, satisfeita. As claques rompem em tonitruantes mensagens de apoio e estímulo incondicional aos seus meninos, bem como sugestões argutas e exemplos urgentes de ordem táctica e operacional.
O combate, no entanto, apesar de oficialmente iniciado, tarda a iniciar-se. É que se o Pato Bravo teve a felicidade de ver a sua queda amortecida por vários cidadãos embasbacados, teve também a infelicidade conjunta de acertar numa área ocupada pela claque inimiga. A viagem de regresso ao ringue não deixa, pois, de ser atribulada e custa-lhe um certo número de escoriações e saliva a pingar pela cara abaixo. Felizmente, durante todo o tempo, conseguiu manter-se na posse do providencial bastão de basebol, com que, qual pioneiro da selva amazónica, lá foi abrindo caminho pelo matagal agreste. Mal acaba de transpor, a salvo, as cordas, e, legitimameente enraivecido, atira com os patins ao magote perseguidor. Sem mais delongas, com a ajuda do treinador, monta na bicicleta e troca a moca rachada por uma raquete de ténis.
Cá estão portanto, e até que enfim, os dois colossos frente a frente. Usando de idênticas técnicas, um de cima da prancha, o outro do alto da ciclocoisa, começam por insultar-se obscenamente, recorrendo a um vernáculo cabeludo, entre o erudito e o chunga. A fase, claro está, é ainda de estudo recíproco e reconhecimento selvaginoso. Mas há um impropério expedido pelo Tio que parece ter um efeito devastador. O Pato Bravo fica bravíssimo. Desata a guitar apopleticamente: "Agarrem-me! segurem-me, que eu dou cabo dele! Eu mato-o! Eu bebo-lhe o sangue todo!!... Segurem-me, senão eu desgraço-me!" Porém, da outra banda, o outro insiste e reforça. Repete os terríveis vocábulos e acrescenta sardonicamente: "Sim, é melhor segurarem-no, senão ainda lhe dou um estalo!" Esta aparte cai que nem uma bomba. Apesar de já agarrado e acalmado pelo árbitro, pelo deputado, pelo massagista carroceiro e autarca municipal, e por vários espontâneos da assistência, Tony Pimba, o Pato Bravo, explode que nem um vulcão: "Ai, agora não há perdão! Vou massacrá-lo! Vou-lhe dar com este meu cachucho bem no alto dos cornos!! Larguem-me! Deixem-me ir a ele!!" Os outros assim fazem e se o gongo afortunado não soasse para o fim do primeiro assalto, não se sabe bem que hecatombe geral poderia sobrevir.
Novamente nos respectivos cantos, donde curiosamente ainda não saíram (excepto para deambulações marginais à refrega), os dois magníficos desmontam dos veículos e sentam-se nos banquinhos. O Tio recebe sermões e conselhos proficientes do seu treinador, via telemóvel; enquanto, no canto defronte, o Pato Bravo atenta nas arengas do dele, e ingere um whisky duplo. O som do gongo para o segundo assalto vem já encontrá-los prontos para façanhas inéditas e traumatismos múltiplos. Um, o Tio, depois de ponderar o trampolim de ginástica, deixou a prancha de surf - pouco dinãmica, reconheça-se -, e optou por uma sela de montar com a respectiva égua adstrita; na mão esgrime agora uma raquete de squash. O outro, o Pato Bravo, pôs de lado a bicicleta e trepou na moto de água, levando à tiracolo um remo.
O público recrudesce nos incitamentos e cantorias. Que apocalipses nos reservarão os próximos minutos? Guardando o telemóvel, e empunhando novamente o megafone, o prelado Melífluo guia o seu prosélito à carga: "Dá cabo da besta meu filho! Morte ao Satanás, ao herege, ao Judas! Usa o escudo da fé!..." e assim sucessivamente.
Da outra banda, ao volante ufano da sua moto-de-água, o Pato Bravo recorre à sua injúria preferida e, em altos berros, coloca publicamente em dúvida a masculnidade do oponente. Apanhado em cheio, o Tio vacila mas, recapitulando toda a catequese, riposta com o mais desabrido e alucinado dos seus vitupérios: "Socialista!!"
Ambos os gladiadores estão agora deveras maltratados. Não admira, dada a violência dos golpes, que raiaram mesmo a ilegalidade regulamentar. O combate é interrompido, como mandam as regras, embora ninguém saiba bem quais. O árbitro procede a uma contagem de protecção aos dois atletas claramente zonzos. O Tio caiu até do cavalo abaixo (passe o excesso de preciosismo) e o Pato Bravo chora que nem uma madalena prostrado sobre a viatura de recreio. Num auge visceral de fúria, por entre as lágrimas, o segundo dispara intempestivamente, à queima-roupa: "Ai é? Vou chamar o meu padrinho!!" O Tio não se quer ficar e ameaça com o tio dele. Das palavras aos actos é um instante.
Ante os clamores de grande regozijo por parte da turba apreciadora, eufórica com o resvalar da guerra convencional para o cataclismo nuclear, sobem ao ringue o Padrinho da Pato Bravo - o famigerado "Bimbo da Praça"; e o tio do Tio - o tristemente célebre "Filisteu das Berças".»
- in "Antropomaquia Lusitana, ou as Memoráveis Crónicas do Pantaboxbol"
2 comentários:
Nossa, que biolência!
Oh meu grande maluco, tão não te atrevas a fechar o estaminé quando chegares ao zero.
Falando de cataclismo nuclear, os terroristas andaram a espalhar rumores na net dizendo que o tio do Tio - o tristemente célebre "Filisteu das Berças" - está outra vez no seu não menos triste vício de testar armas nucleares com o nome de ‘Pollux.’. O "Great Game" Pantaboxbol está superaquecido para o meu gosto.
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