- Mais que necessário: é urgente, é imperioso, é imprescindível!!...
- Mas isto dói. Dói mesmo!
- Claro que dói. É mesmo para doer e quanto mais, melhor. O que dói, cura! Cura, sana, remedeia e fortifica!
- Mas tenho mesmo que correr furiosamente através destes silvados e tojódromos, ainda por cima ajaezado a arame farpado e em auto-flagelação contínua com cardos e urtigas?
- Claro que tens. Não há alternativa. Foi-nos imposto pelos nossos credores!
- Foi-nos?! Nossos?! Tu vai às cavalitas e eu, que me lembre, não fui consultado para empréstimo nenhum.
- Pois. Era isso ou a bancarrota sem remendo.
- Sim, para a banca não se romper, ando pr'aqui eu a esfarrapar-me todo! No fim disto tudo, temo bem, estará a banca remendada e eu esfolado vivo dos pés à cabeça. E mais zurzido que um Cristo!
- Faz parte do processo reformador em curso...
- Só se for para ti. Para mim é o Calvário reforçado no coiro!
- Capacita-te: É crucial! Quanto mais te esfolares e romperes todo, mais hipóteses teremos de recuperar a confiança dos mercados!...
- A ver se percebo: quanto menos confiança eu tiver nos mercados (e ela diminui a cada hectómetro), mais confiança eles ganham em mim? Deve ser então uma espécie de transfusão de confiança. Na verdade, e por assim dizer, não sangro: dou-lhes sangue. Sangue, que é como quem diz: confiança.
- Vês, como o exercício te é benéfico!... Até já começas a desproferir aleivosias.
- É. Quando um tipo carrega com as dos outros no lombo, nem tem tempo para lavrar as suas.
- O problema é que não estás a perder confiança a um ritmo suficientemente avassalador. Os mercados continuam exangues, anémicos, sedentos, quer dizer, desconfiados.
- Bem, por mim, estou a esfarrapar-me todo, ou melhor, estás a esfarrapar-me todo. Em contrapartida, tu, desse pedestal galopante que sou eu, nem uma pinguinha de confiança perdes. A cada hemorragia minha, a tua crença nos mercados permanece viçosa, pujante, imarcescível, e a tua confiança no meu sacrifício, essa, então, já raia o fanatismo alucinado!... De resto, contigo a armazená-la assim, tão copiosamente, como é que há-de chegar alguma aos mercados: açambarca-la toda!...
- Não açambarco: cultivo. Alguém tem que acreditar nos amanhãs que cantam, trinam e chilreiam. Para pessimista já chegas tu e o teu ígnaro cepticismo. Se não fosse eu, não saías da cepa torta: Nunca.
- Pois, de facto, graças a ti evadi-me da cepa torta a toda a velocidade. Só foi pena ter mergulhado neste interminável mar de silvas e tojos...esporeado a urtigas e cardos! Ai, ai a minha rica pele!...
- Só sabes é lamuriar-te. E jeremiar à toa. Não compreendes como às vezes os grandes avanços são precedidos, cozinhados e antepreparados por pequenos recuos estratégicos. A História está repleta desses exemplos edificantes: para dar um passo em frente, muitas vezes, dão-se dois atrás, para ganhar balanço.
- Bem, no presente caso, dada a maratona em que já vamos, calculo que o tal passo deve ser dum gigantismo descomunal. O novo colosso de Rodes, calculo.
. E calculas bem. É dum avanjajamento inaudito. Um verdadeiro assombro. Mas não abrandes, nem te desvies dos núcleos mais densos. Quanto melhor te esfarrapares, mais garantido será. A via espinhosa é a melhor via. Aliás, é a única. Nem se concebe que haja outra.
- Mais esfarrapado e esfalfado é difícil. Por este andar, estou feito num daqueles lendários desgraçados da Etiópia ou do Biafra. Só que eles ainda era pele e osso, enquanto eu já nem pele terei - nem pele, nem gota de sangue: é só osso. Osso e nervo agarrado ao osso.
- Pensa que é por uma boa causa. E que a receita é infalível. Uma vez injectada a confiança nos mercados é um instante enquanto recuperas as boas cores e carnes.
-Ah, finalmente uma boa notícia. E aí, nessa tão esplendorosa e penada altura, o que é que fazemos?
- Então, voltamos alegremente aos mercados.
- Vamos vender coisas, produtos, mercadorias?...
- Não, nada disso. Isso é para países obsoletos, pouco modernos. Vamos, outrossim, de défice bem penteadinho, com as continhas muito bem postas, vender dívida! Dito mais poeticamente: vamos financiar-nos.
- Pasmo. Mas alguém compra dívida? E não é suposto, com todo este meu esfarrapanço, estarmos a reduzi-la freneticamente? Então, se a reduzimos com tanta impiedade, depois ainda sobra quantidade suficiente para ser vendida?
- Bem, na verdade não estamos a reduzi-la: estamos a aumentá-la. O que estamos a reduzir é o défice. E para isso, aumentamos a dívida.
- Descompreendo. Então o défice não era consequência dum excesso de endividamento por via dum excesso de despesa e duma escassez de receita e produção?
- Pois, mas como não tínhamos dinheiro para diminuir o défice, tivemos que pedi-lo emprestado. É uma coisa deveras dispendiosa, a redução do défice.
- Bem, então estou aqui, ou melhor, estás aqui a esfarrapar-me todo para aumentarmos a receita e a produção, certo? Sim, porque não vais dizer-me que elas não estão a subir em flecha!...
- Em flecha, não direi. Aqui entre nós e que ninguém nos oiça: na verdade oscilam entre a estagnação mais pestilenta e a diminuição mais recorrente. O que, é preciso denunciá-lo com todas as nossas forças, contraria todas as leis e cálculos que destilámos a partir desta nossa fé insubmersível. Chega até a ser uma desfaçatez completa, tamanha excentricidade recalcitrante da economia real!
- Então estou, isto é, estás pr'aqui a esfalfar-me todo para nada?!...
- Para nada, não. Para reconquistar a confiança e a benevolência dos mercados. O que nos permitirá voltarmos a financiar-nos à força toda!...
- Mas não foi essa a razão principal porque caímos nisto: por tu te financiares a torto e a direito para andarmos a correr às voltas, atrás duns e doutros, sem outro destino, rumo ou meta que imitar estes ou macaquear aqueles, conforme dava a lua na telha que te preenche a mona? Quer dizer, aturo eu este suplício todo só para voltarmos ao ponto de partída?! É vicioso o filho da puta do circuito, não?!...
- Não tentes compreender coisas que te transcendem. A tua mente simplória não alcança determinados alambiques da ciência financeira. Esfarrapa-te tu, com denodo e paixão, que para pensar e dirigir estou cá eu.
- Claro, claro. Mas já que és tu o pensador, não me explicarás a mim, que sou o burro, como raio é que depois de me esfarrapares todo, vais pagar a dívida que, pelos vistos, medra, fermenta e leveda a cada dia que passa?
- É simples: as dívidas existem para que tipos como tu as paguem e tipos como eu as explorem. O titular és tu; eu sou apenas o corretor. Quanto mais dívida tu tiveres para pagar, mais dívida tenho eu para exportar, processar e transaccionar, leiloando essa dívida e, em simultâneo, angariando nova dívida para revender. Chama-se a isto gestão. Ou seja, tal qual tu giras por baixo, a todo o galope, eu giro por cima, a todo o vapor. Podíamos até cantar, para animar a empresa: "Giras tu, giro eu, giras tu mais eu."
- Pois, mas é por isso mesmo, ó inteligente, é por saber, embora burro, que são tipos como eu que pagam, que me custa entender como raio é que vou pagar alguma coisa que se veja depois de esfolado e sangrado até ao esqueleto!...
- Lá estás tu com as tuas desconversações caturras! O futuro é uma coisa sobre a qual se deve projectar toda a nossa fé, mas nenhuma ideia ou prognose. Até porque, dada a imensidão de incógnitas e variantes, sobretudo internacionais, em jogo, quaisquer ideias ou antecipações correriam o risco de se tornar deveras nefastos, dado que, entre outros embaraços abracadabrantes, poderiam colocar em perigo a nossa fé.
-Hum... começo a desconfiar que és como aquele timoneiro que extrai os requintes da navegação não dum qualquer estabelecimento cartográfico do rumo, mas duma lengalenga auto-hipnótica que vai repetindo até á exaustão ou ao naufrágio, conforme o que sobrevir primeiro. Podíamos até cantar: "Foste ao jardim da celeste, giro-flé giro-flá/ Foste ao jardim da celeste giro-flé-flá-flá!/ Como foste lá parar, giro-flé giro-flá/ Sem sequer saber contar, giro-flé-flá-flá!"
- Podes desconfiar à vontade. Com a tua desconfiança posso eu bem. Agora com a dos mercados já não posso dizer o mesmo. E essa é que me preocupa!
- Bem vejo. Melhor: bem sinto. Das tuas preocupações sobram sempre as ocupações para mim e o pré todo para ti.
- Isso é porque estamos muito bem unidos e adjuntos. Tu colado a mim porque meu acólito; eu colado a ti porque ao teu colo e teu colono, além de colírio. Enfim, somos o tigo e o contigo, experimentando os múltiplos sortilégios e inerências desta nossa complexa e imbricada situação, que a ti tanto dói e rompe, e a mim , acredita, tanto condói e...corrompe.
2 comentários:
Excelente sátira sobre a realidade actual. Das melhores que já li.
Fraco e rebuscado. Inócua crítica rococó.
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