Leitores, em Janeiro de 2006 (os mais antigos lembrar-se-ão decerto), escrevi aqui o que se segue (e que, para não variar, mantenho na íntegra):
Digo isto com toda a sinceridade: não entendo porque é que em Portugal, para efeito de eleição do presidente da República (e até de deputados ou autarcas) não se adopta, duma vez por todas, um sistema de lotaria. Andava à roda. Tiravam-se rifas. Em vez de urnas, centenas delas e respectivas guarnições, bastava uma única tômbola gigante. Então não era muito mais consentâneo com o nível recorrente dos candidatos e respectivos eleitores? Verdadeira democracia era assim: Todos os cidadãos que cumprissem determinados requisitos (maiores de 35 anos, sem problemas com a justiça, alfabetizados, de nacionalidade portuguesa, etc,) recebiam um número. Depois, a Santa Casa, que já está habituada a estas quermesses, sorteava o presidente, os deputados, ou os autarcas.
Aforrava-se um bom dinheiro, poupavam-se as peixeiradas do costume, evitavam-se palanfrórios e zaragatas, não se perdia tempo com gambosinices, falsas promessas e contos do vigário, e o resultado, com um bocado de sorte, até era melhor. Pior, pelo menos, seria quase impossível. Sejamos lúcidos: depois de um Gorge Sampaio ser presidente da república, não tenho qualquer dúvida que um qualquer taxista anódino, cabeleireira avulsa ou vendedor ambulante, no mínimo, não só estariam habilitados para a função, como, de certeza, alcançariam bem mais pitorescos desempenhos. E que dizer dum Santana Lopes primeiro-ministro? Ou até dum Durão Barroso, dum Guterres, dum Soares, etc? E os deputados? E os autarcas? Já repararam bem?Face à monotonia confrangedora das performances destes esplêndidos e sufragados “dirigentes”, cada português tira as suas ilações. A mais usual –e lógica- é reconhecer-se, o luso-aborígene, plenamente capacitado, vocacionado e predestinado, desde a barriga da mãe, para os mais elevados cargos do Estado e da Governação. Isto se, como entretanto -e cada vez com maior frequência - acontece, não descobrir a resfolegar dentro de si um ditador clarividente e pronto para, às três pancadas mas com carácter de urgência, assumir a mundícia e a redenção da pátria. Nem mais. E quase tudo nos indica, e taxativamente garante, que pior figura que os actuais –que, de resto, são também os recentes e anteriores, pois são os mesmos vai para mais de trinta anos -, não faria. Limpinho; e até mesmo se optasse por uma letargia absoluta, ou se se mantivesse oculto e ausente durante todo o mandato, ninguém notaria grande diferença.
Não raras vezes, dou comigo a viajar de táxi só para escutar os projectos mirabolantes do respectivo piloto. Mesmo os ultra-descabelados, inçados de medidas radicais e purgas enérgicas, conseguem ser mais interessantes que o chorrilho de idiotices e baboseiras dos presentes candidatos oficiais a qualquer coisa, mas sobretudo à poltrona de bibelot-mor da república. Ao menos, caso fosse sorteado, o furioso taxista conduziria o país como se fosse um táxi, desflorando vielas e peregrinando atalhos, o que, havemos de convir, sempre conferiria alguma emoção ao percurso. E sempre era preferível que vê-lo, diaria e convulsivamente, a ser conduzi-lo feito casa de alterne, que como sabemos não prima pela aerodinâmica, para além de lhe faltarem motorização e rodas adequadas.
Provavelmente, é excentricidade minha, mas desgosta-me que o país se confunda com uma casa de alterne, que os políticos não se distingam das alternadeiras, que os administradores da Coisa Pública se assemelhem a banais alcaiotes. A sério, deprime-me. Confesso que desde pequenino, talvez cativado por devaneios e romances absurdos, acalentava outras esperanças.
Todavia, se assim é, se assim está condenado a ser pela eternidade, se não se distinguem os eméritos candidatos dos mais básicos e vulgares eleitores, então, ao menos, que todos os eleitores usufruam do pleno direito a ser candidatos. Era assim na Grécia Antiga, quando inventaram a democracia. Todos os cidadãos de pleno direito eram efectivamente iguais, sem castas. Hoje critica-se e menoscaba-se muito esse regime primordial porque só permitia que uma minoria votasse (nem mulheres, nem escravos, nem estrangeiros participavam); e no entanto, nesta hora que passa, não se vislumbra grande evolução, a não ser talvez para pior: a percentagem dos eleitores aumentou, todos votam, mas apenas uma invariável e hermética minoria pode candidatar-se aos cargos superiores públicos. Uma elite? Não, uma mera chusma dissimulada, oligárquica e feudal. Tipos que à viva imagem de qualquer fulano avulso não fazem a menor destrinça entre o próprio interesse e o interesse geral; pior: que não reconhecem sequer a existência de qualquer interesse para lá das fronteiras do seu próprio interesse, diga-se, já agora, pela única e exclusiva razão de que o seu interesse próprio não tem limites e só conhece rival na sua ganância. Mas, repito, se é assim, se quem exerce o poder não se distingue de qualquer um, então que um qualquer possa ser qualquer coisa, sobretudo qualquer “Coisa Pública”. Vale mais confiar na Sorte que na Insídia, no Conluio, no Sofisma. Já fede esta fantochada retórica do “povo escolhe”, “o povo elege”, o “povo é soberano”. Balelas!, o povo não escolhe coisa nenhuma, muito menos “Coisas públicas”, e soberana só será certamente a sua impotência, bem como lendária a sua estupidez. A escolha é prévia, a confecção é sempre anterior e decorre na penumbra dos bastidores, até os mongolóides mais toscos já desconfiam disso. O povo apenas ratifica, homologa, assina de cruz. Prefere a embalagem da papa, a marca e o brinde; mas, na substância, não tem direito nem opção a outro prato que não aquela mistela liofilizada e rançosa que lhe deitam na manjedoura. De quatro em quatro anos, perguntam-lhe, quando muito, se quer mudar de marca ou de cozinheiro. Fodido com a papa, enjoado com o mingau, o cabrãozito muda, quer dizer, por instantes ilude-se que muda, que melhora, que rompe. Apenas para descobrir que o sabor é o mesmo e igualzinha a disenteria resultante.
Porém, garantem-lhe, se não é assim, é o caos, o Fim-do-Mundo.
Pois eu acho que, para ser assim, então vale mais a lotaria, o totoloto, o Luso-milhões! Puta que pariu o sufrágio universal, fraude ignóbil, e viva o Sorteio Universal! Ao menos, sempre ocasiona alguma expectativa acerca do resultado da extracção; por um inescrutável capricho da sorte até pode calhar alguém com nível, com inteligência – coisa que no sufrágio actual é impossível: já todos sabemos –já estamos mesmo calejados de saber - que, saia o que sair, não sai da cepa torta. Não altera nem contende com a substância.
Actualmente, o povo vai –aquele que vai, cada vez menos -, para o sufrágio com a resignação e o ricto próprios dum funeral: desconfia mesmo que não é por acaso que chamam urna ao vasadouro da sua murcha e irrisória soberania. Dir-se-ia que em vez de ir rezar missa pela ressurreição dos seus sonhos, vai antes depor na sepultura mais um quadriénio de esperanças. Suspeita que tão irrelevante e inócuo como o seu voto só há uma coisa: o resultado dele. Ora, adoptasse-se a modalidade de Sorteio e era ver a alegria, a animação e o entusiasmo que não precederiam a extracção!... Uma festa generalizada, meus amigos! Quais sondagens, contagens, lavagens, fraudes e todas esses mistifórios inerentes a processos eleitorais; em coisa de minutos resolvia-se o assunto e com uma isenção e limpeza imaculados. Já não falando nas probabilidades, à partida, rigorosamente iguais para todos os concorrentes, sem batotas nem falcatruas - no caso do Primeiro magistrado da nação, mesmo sem matilhas, bandos, récuas nem nenhumas dessas revoadas tão aviltantes do acto.
Agora, imaginando que na rifa saía um traste, um grandessíssimo traste. Obstar-me-ão: Não será isso, dada a elevada percentagem dos ditos cujos na população, um risco demasiado alto que, bem vistas as coisas, desaconselha o método?
É um facto que, em termos de densidade de filhos da puta por metro quadrado, o nosso país compete com as grandes potências do sector. Nessa contingência, a lei das probabilidades não perdoa e aponta, naturalmente, em caso de sorteio puro, para uma maior possibilidade de ocorrência dessas prendas.
Não obstante, um risco, por mais elevado que seja, nunca é tão mau e desolador quanto uma certeza absoluta, uma rotina que já bebe das leis inexoráveis da mecânica celeste. Através do sorteio, ainda haveriam algumas hipóteses, se bem que remotas, de nos sair na rifa alguém de jeito. Enquanto, por intermédio de sufrágio, como a experimentação exaustiva já nos ensinou, não restam nenhumas.
Sempre é preferível uma escolha aleatória, que uma escolha alienada. E, francamente, antes apostar na extracção da lotaria, que em políticos de baixa extracção.
Sempre é preferível uma escolha aleatória, que uma escolha alienada. E, francamente, antes apostar na extracção da lotaria, que em políticos de baixa extracção.
Pois bem, viram? Pior: sentiram? Não seguiram o meu excelente conselho e o que é que aconteceu?
Levaram com o Cavaco a presidente e aquela coisa Sócrates a primeiro-ministro? Em simultâneo, para castigo, o vácuo e a calamidade.
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