Mas se o ser, como ensinava Aristóteles, se diz em múltiplos sentidos, a Liberdade de Expressão, essa, pode ser avaliada, pelo menos, em duas dimensões, a saber, a qualidade de expressão e a quantidade de expressão.
Ora, neste nosso tempo de ruídos, grunhidos e seringas palrantes há, mais que a tendência, o imperativo categórico de considerar que dizer muito, palrar carradas de tanto, entornar-se por inúmeros púlpitos, palcos e pedestais, é dizer alguma coisa e é ser muito livre a todas as horas e minutos. Confunde-se liberdade com mera incontinência crónica; mascara-se opinião com mero despejo; trafica-se a mais gritante ignorância e, não raro, a mais rotunda falta de educação ou resquício de vértebra moral como sendo expressão de alguma coisa. Na verdade, a expressão duma ausência não exprime coisa nenhuma nem significa nada que seja. Assim sendo, não é livre nem deixa de o ser: pura e simplesmente, não é. É zero ou abaixo disso. E todavia, protagoniza, às escâncaras, o mais ubíquo dos fenómenos actuais, com devido patrocínio, impingência e promoção de meia dúzia de agências globosas. Mais até que avanço desbordante, adquire já contornos de enxurrada. "Podeis dizer tudo o que vos apeteça, desde que não digais coisa nenhuma", constitui o lema. É a cultura do solta-aleive como antídoto para a sempre indesejável inflamação da inteligência. Castra-se hoje a mente através da saturação noticiosa, como dantes se procurava exaurir através da escassez. Só que com bem maior perversidade e eficácia. A vítima da logocastração dispensa até torcionários sempre dispendiosos: automutila-se. Acaba esterilizada no seu próprio verbo hipersalivado. Sucumbe ao seu próprio vesúvio emissor. Enquanto palra, não pensa. Enquanto debita, não reflecte. Enquanto pasta notícia, ou gargareja sensação, ou cospe palpite, não digere (nem, vagamente, assimila). Quanto mais imerge no palanfrório desatado, mais se impermeabiliza a qualquer tipo de ponderação, equilíbrio ou ideia. Em bom rigor, nem opiniões ostenta, porque, à falta de esqueleto próprio, nem cabide ortopédico tem onde pendurá-las. Se tanto, resume-se ao esfregão mental, à amálgama de desperdícios de plantão a óleos, sordidezes e gorduras de garagem ou estação de serviço mediática. Porque se não despeja, convencem-no todos os dias, não existe. Mas se não absorve, pior ainda: não tem.
Jóquei da fervura do instante, surfista da poeira do momento, janota do último ruído a vapor, flana à esquina do acontecimento (quanto mais escandaloso, melhor) com a virtude da rameira e a perseverança do colibri. Tudo comenta, mas nada entende; tudo ingurgita, mas nada retém. Sob sequestro opressivo duma actualidade em constante metamorfose, entrega-se à tarefa digna duma danaide: encher uma cisterna sem fundo com um crivo por balde.
Contudo, este primado da quantidade não impera apenas no universo mediático: a própria literatura, a música, as artes enfim, também já cumprem os seus preceitos campeões. Ainda mais formatada e passevitada que a "expressão jornalística" anda a "expressão artística". Confundem-se até, expressão política, jornalística, artística e até científica, num puré uníssono, numa papa milupa comum. Cumprem o mesmo critério editorial: os mesmos que determinam quem escreve nos jornais ou aparece nas televisões, condiciona e filtra quem escreve nos romances, nos compêndios e CDs, ou seja, quem é catapultado nas editoras e embandeirado nos media. Mas não se pense que são apenas os donos do harém quem torce e distorce a seu bel-prazer: os próprios eunucos policiam-se, emulam-se, lambuzam-se, envazelinam-se, promovem-se e catam-se uns aos outros. No fundo, tudo se degrada doravante a mera xaropada publicitária, e não é apenas o jornal que se relaxa a pasquim imarcescível: é a própria linguagem literária (onde podemos incluir a "científica", na sub-cave) que estiola ao nível da mera bacoralalia efervescente de slogans, receitas, telegramas e anedotas. De tal modo que, se a ficção mediática raramente excede a prosopopeia ranhosa, já a literária, por seu turno, sem vergonha nem remorso, desalambica-se pelo algeroz duma contínua onomatopeia dodot.
Catalogar, assim, como liberdade de expressão todo este entulho da mera quantidade de expressão é não só rotundamente falso: é absolutamente obsceno. Pois, de facto, constitui, com todas as letras, o seu oposto. E tanto quanto atesta da ausência de expressão (porque destituição completa de autoria, autenticidade, originalidade, personalidade e autonomia), também procura, em perfeita sincronia, o seu extermínio.
Basta atentar como na realidade, por regra moderníssima (e ainda há pouco tempo podemos testemunhar um episódio desse tartufo jaez), são os grandes açambarcadores, armazenistas e empreiteiros -em suma, são os maiores falsários e mixordeiros - da "quantidade de expressão" (ou seja, e dito com propriedade, os inesgotáveis agentes, tarefeiros e moços de frete da "inexpressão") quem geralmente brama, em tom seráfico e descabelado, pela liberdade de expressão. Quer dizer, são os apaniguados - frenéticos e furiosos - do ruído (seja ele instalado, seja em ardores de instalação) quem mais barafusta pela redenção da música.
Não sabemos, com a segurança e clarividência que só Deus possui, onde mora a verdade. Mas duma coisa podemos ter a certeza absoluta: não vive em casa da propaganda. A não ser que ao matadouro já se chame residência. O que, bem vistas as coisas, neste mundo às avessas, cumpriria até toda a lógica.
Aquilo que denominamos como facções, na realidade, são meras erupções dum único fenómeno: a contrafacção. Da verdade. Mas, não obstante, representa o pão nosso desta "democracia de sacavém". Quem é como quem diz, esta zurrapa a imitar, rascamente, uma qualquer destilaria anglo-saxónica.
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