«Maldito seja o que me desatou os pés cruelmente amarrados e me salvou da morte! Em nada te estou grato; se tivesse morrido nessa altura, não teria provocado tais dores, aos meus amigos e a mim!»
- Sófocles, "Édipo Rei"
Édipo significa qualquer coisa como "pés atados" e, com isso, significa-nos também a todos nós, humanos. De facto, nascemos todos de pés atados. Não escolhemos a hora, não escolhemos a família, não escolhemos a época, não escolhemos o país, não escolhemos, em suma, nada daquilo que principiamos por ser. Deve ser por isso que o acto com que inauguramos a existência é chorar. Num ritual que, bem medidas as coisas, constitui o nosso primeiro acto de lucidez e, na generalidade dos casos, o último. Porque depois entramos no reino da fantasia - na fantasia de que, graças ao nosso desembaraço de mãos, vamos conseguir desatar os pés. Ora, é nessa fantasia, nessa prestidigitação presuntiva, promovida nos últimos séculos a delírio galopante, que reside o cerne da tragédia. E não apenas a tragédia enquanto arte teatral, mas sobretudo a tragédia enquanto vida.
O homem moderno é, essencialmente, um homem desatado. Inflou-se na fantasia que a medievalidade o atava de pés e mãos e tratou de desatar-se. Desatou, pois, em seu alucinado entender, a ser homem. A ser absolutamente homem. Homem absoluto e resoluto.
As palavras há que degustá-las e "absoluto" - do latim "ab-solvo" (separar, desligar, desembaraçar, absolver, perdoar, libertar, etc) significa precisamente esse estado de desatamento, de absolvição e desembaraço. Como "resoluto" - do latim "re-solvo" (desatar, desamarrar, dissolver, soltar, amolecer, distrair, divertir, romper, compensar), não apenas vai no mesmo sentido, como reforça e enriquece. O homem absoluto não deve nada a ninguém e o universo tudo lhe deve. Donde resulta o individuozinho egofórico do nosso tempo, simultaneamente cheio de nada porque a transbordar de si, a quem todos devem e ninguém paga, pelo menos e pelos vistos, o suficiente. Não espanta, assim, que este homem desembaraçado daquilo que lhe atava os pés - ou seja, princípios e fins seus anteriores e superiores -, se arvorasse e devotasse, por sua exclusiva e alta recreação, à principalidade e à finança, que é como quem diz, à promoção dele próprio a princípio e fonte de todos os princípios (na forma de lei); e à redução de todos os fins a uma fórmula meramente material, manipulável, açambarcável e intimamente conveniente ou tributável à precedente. E admira ainda menos que o corolário lógico duma tal besta desenfreada culmine naquele que congrega e acumula em si, à maneira de nova deidade mundana e mecânica, o princípio e o fim: o príncipe financeiro. Daí que, com inegável mérito, o expoente máximo da idade Moderna, bem acima de Descartes, Voltaires, Goethes, Beethovens, Richelieus, Fredericos ou Napoleões congéneres, pertença aos Rothschilds. Na exacta medida em que protagonizam essa amálgama triunfante de Maquiavel e plutofrenia; na esplêndida dimensão em que decantam essa nova aristocracia não já baseada no sangue mas no dinheiro, isto é, não já fundada e símbolo orgânico da reprodução natural, mas montada, esquemática e matematicamente, na desenfreada reprodução e proliferação artificiais - com a inerente usurpação do núcleo social família pelo nódulo empresa. Nem, tão pouco, já atada ao que quer que seja, passado ou futuro, mas desembaraçada de todos e quaisquer escrúpulos, deveres, responsabilidades, encargos ou cargas simbólicas.
Aristóteles, na idade clássica, e - às cavalitas dele - Tomás de Aquino, na medieval, haviam zurzido severamente a usura. "O dinheiro não faz filhos", servira de ilustração para o atestado de "desnaturação" e consequente anátema à actividade usurária. O que a idade Moderna veio demonstrar foi algo substancialmente diverso: talvez o dinheiro não fizesse filhos, mas, doravante, passava seguramente a fabricar, da noite para o dia, barões, grão-duques, príncipes, reis, imperadores e até ministros e presidentes. Ah, e claro está, semideuses acima de toda essa escumalha avulsa, súbita e alquimicamente, transmutada em novaristocracia, porque, decerto por magia, oriundos duma alfurja ainda mais abaixo: os Rothschilds.
Desengane-se, todavia, quem pensa que este é um problema e uma patologia exclusivamente modernos. Melhor dizendo: desiluda-se quem se dá à conveniência deveras repousante para a inteligência de julgar que a Idade Moderna irrompeu por geração espontânea. O protagonismo do antropóide auto-proclamado racional já vinha dos sofistas, tanto quanto o maquiavelismo avant la lettre já inquietava os trágicos. Protágoras com o seu "homem medida de todas as coisas" exemplifica o primeiro caso; Sófocles, no Filoctetes inteiro e, em boa parte, na Antígona, ilustra o segundo. E quanto à medievalidade cristã o contributo, então, foi de peso a raiar o esmagador: podemos mesmo dizer que a Idade Média se divide não em dois (Alta e Baixa) mas em três períodos: Alta, Baixa e Baixíssima (ou Abaixo de Cão). E durou não mil, mas mil e trezentos anos (mais coisa menos coisa), já que começou com a Queda do Império Romano e terminou com a Queda da Monarquia Francesa, vulgo Ancient Régime.
Cito apenas dois episódios que me parecem especialmente desedificantes.
1. Quando, no século XI, a pedido duns quaisquer monges de Bec, Anselmo de Cantuária (Santo Anselmo, para os católicos), tratou de elaborar "um modelo de meditação sobre a existência e a essência de Deus, em que tudo fosse provado pela razão", pressupunha uma espécie de "razão explicativa e fortificadora da fé", servindo esta de fundamento àquela. Mas, na verdade, estava a abrir a tampa duma certa caixa pouco recomendável. Anselmo, de facto, manifestava uma fé quase ilimitada na razão, na medida em que a razão conseguia pensar o ilimitado (e, em certo sentido, o impensável), tanto quanto definir o insondável, isto é, Deus. Daí à razão com uma fé ilimitada nela própria (pois já que conseguia pensar o infinito, a divindade, o que é que a impedia de pensar-se, ela própria, uma divindade?), foi um quase instante. Pelo que, de certa forma e ainda que involuntariamente, Anselmo de Cantuária acabou por se prefigurar como um proto-Iluminista.
2. Quando, na senda do mesmo Anselmo, e contra a tese tradicional, o Proto-Renascimento de Chartres concebeu o "Humanismo", ou seja, a crença no homem como objecto e centro da criação - aquele para quem o mundo fora realizado e estava, por assim dizer, ab ovo, prometido. Dispenso-me de esmiuçar onde este tipo de fantasia conduziu, bem como as diversas peregrinações atrozes, auto-promoções obscenas e desumanizações em side-car. O certo é que o seu contributo para aquele húmus mental que alcança um dos zénites mais fulgurantes naquela célebre frase "todos os animais são iguais, mas há uns mais iguais que outros" nunca será de menosprezar.
Resumindo, a Idade Moderna (ou Baixíssima Idade Média, como considero mais justo chamar-se-lhe), nos seus inúmeros e frenéticos teorizadores, magarefes e videntes, conseguiu desenvolver a ideia e, nela, o projecto do perfeito e acabado filho-da-puta. Mas, honra lhes seja tributada e justiça lhes seja feita, só mesmo os Rothschild tiveram a capacidade financeira para o levarem a cabo. Finança, de resto, significa isso mesmo: levar a um fim. A um fim que, ninguém duvide, um dia será o nosso. Talvez então, por um abissal e terminal rasgo de lucidez, se nos revele o horror em que vagámos desatados e, como Édipo, nosso arquétipo ancestral, gastas as lágrimas genuínas por alturas do nascimento, usemos as mãos -essas mãos malditas com que nos desatámos! - para arrancar os olhos com que, toda a vida, nos cegaram. E também por nojo imenso, certamente. De nós proprios.
O homem absoluto e resoluto é também, tudo bem somado, o homem dissoluto. Começou por acreditar que o mundo lhe pertencia, lhe era devido e destinado e acaba dissolvido nele. Desfeito do corpo e liquefeito da mente, feito narciso a diluir-se num charco. O charco da sua própria, atávica, crónica e incurável estupidez.
PS: Uma ironia final. Como se diz desatamento em grego? - Analysis. Donde provém a nossa, em português, "análise". Na língua de Homero, o verbo ana-lyw significa desligar, dissolver, separar, libertar, analisar, abolir, etc. O que, curiosamente, não deixa de vir ao encontro da nossa investigação anterior: o homem desatado é igualmente o homem em perpétua análise. Uma análise que se processa, em larga medida, pela dissecação. Um homem que se dissolve auto-dissecando-se. Ou melhor: que se auto-analisa por vivissecção.
Aristóteles, na idade clássica, e - às cavalitas dele - Tomás de Aquino, na medieval, haviam zurzido severamente a usura. "O dinheiro não faz filhos", servira de ilustração para o atestado de "desnaturação" e consequente anátema à actividade usurária. O que a idade Moderna veio demonstrar foi algo substancialmente diverso: talvez o dinheiro não fizesse filhos, mas, doravante, passava seguramente a fabricar, da noite para o dia, barões, grão-duques, príncipes, reis, imperadores e até ministros e presidentes. Ah, e claro está, semideuses acima de toda essa escumalha avulsa, súbita e alquimicamente, transmutada em novaristocracia, porque, decerto por magia, oriundos duma alfurja ainda mais abaixo: os Rothschilds.
Desengane-se, todavia, quem pensa que este é um problema e uma patologia exclusivamente modernos. Melhor dizendo: desiluda-se quem se dá à conveniência deveras repousante para a inteligência de julgar que a Idade Moderna irrompeu por geração espontânea. O protagonismo do antropóide auto-proclamado racional já vinha dos sofistas, tanto quanto o maquiavelismo avant la lettre já inquietava os trágicos. Protágoras com o seu "homem medida de todas as coisas" exemplifica o primeiro caso; Sófocles, no Filoctetes inteiro e, em boa parte, na Antígona, ilustra o segundo. E quanto à medievalidade cristã o contributo, então, foi de peso a raiar o esmagador: podemos mesmo dizer que a Idade Média se divide não em dois (Alta e Baixa) mas em três períodos: Alta, Baixa e Baixíssima (ou Abaixo de Cão). E durou não mil, mas mil e trezentos anos (mais coisa menos coisa), já que começou com a Queda do Império Romano e terminou com a Queda da Monarquia Francesa, vulgo Ancient Régime.
Cito apenas dois episódios que me parecem especialmente desedificantes.
1. Quando, no século XI, a pedido duns quaisquer monges de Bec, Anselmo de Cantuária (Santo Anselmo, para os católicos), tratou de elaborar "um modelo de meditação sobre a existência e a essência de Deus, em que tudo fosse provado pela razão", pressupunha uma espécie de "razão explicativa e fortificadora da fé", servindo esta de fundamento àquela. Mas, na verdade, estava a abrir a tampa duma certa caixa pouco recomendável. Anselmo, de facto, manifestava uma fé quase ilimitada na razão, na medida em que a razão conseguia pensar o ilimitado (e, em certo sentido, o impensável), tanto quanto definir o insondável, isto é, Deus. Daí à razão com uma fé ilimitada nela própria (pois já que conseguia pensar o infinito, a divindade, o que é que a impedia de pensar-se, ela própria, uma divindade?), foi um quase instante. Pelo que, de certa forma e ainda que involuntariamente, Anselmo de Cantuária acabou por se prefigurar como um proto-Iluminista.
2. Quando, na senda do mesmo Anselmo, e contra a tese tradicional, o Proto-Renascimento de Chartres concebeu o "Humanismo", ou seja, a crença no homem como objecto e centro da criação - aquele para quem o mundo fora realizado e estava, por assim dizer, ab ovo, prometido. Dispenso-me de esmiuçar onde este tipo de fantasia conduziu, bem como as diversas peregrinações atrozes, auto-promoções obscenas e desumanizações em side-car. O certo é que o seu contributo para aquele húmus mental que alcança um dos zénites mais fulgurantes naquela célebre frase "todos os animais são iguais, mas há uns mais iguais que outros" nunca será de menosprezar.
Resumindo, a Idade Moderna (ou Baixíssima Idade Média, como considero mais justo chamar-se-lhe), nos seus inúmeros e frenéticos teorizadores, magarefes e videntes, conseguiu desenvolver a ideia e, nela, o projecto do perfeito e acabado filho-da-puta. Mas, honra lhes seja tributada e justiça lhes seja feita, só mesmo os Rothschild tiveram a capacidade financeira para o levarem a cabo. Finança, de resto, significa isso mesmo: levar a um fim. A um fim que, ninguém duvide, um dia será o nosso. Talvez então, por um abissal e terminal rasgo de lucidez, se nos revele o horror em que vagámos desatados e, como Édipo, nosso arquétipo ancestral, gastas as lágrimas genuínas por alturas do nascimento, usemos as mãos -essas mãos malditas com que nos desatámos! - para arrancar os olhos com que, toda a vida, nos cegaram. E também por nojo imenso, certamente. De nós proprios.
O homem absoluto e resoluto é também, tudo bem somado, o homem dissoluto. Começou por acreditar que o mundo lhe pertencia, lhe era devido e destinado e acaba dissolvido nele. Desfeito do corpo e liquefeito da mente, feito narciso a diluir-se num charco. O charco da sua própria, atávica, crónica e incurável estupidez.
PS: Uma ironia final. Como se diz desatamento em grego? - Analysis. Donde provém a nossa, em português, "análise". Na língua de Homero, o verbo ana-lyw significa desligar, dissolver, separar, libertar, analisar, abolir, etc. O que, curiosamente, não deixa de vir ao encontro da nossa investigação anterior: o homem desatado é igualmente o homem em perpétua análise. Uma análise que se processa, em larga medida, pela dissecação. Um homem que se dissolve auto-dissecando-se. Ou melhor: que se auto-analisa por vivissecção.
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