«O estado de uma sociedade não depende das suas instituições políticas, mas da coesão entre os governantes e os governados. Quando essa coesão existe, isto é, quando a opinião pública, a opinião instintiva da nação é geral, individida, os próprios governantes partilham dela, dela participam. Basta-lhe, portanto, para governar, interpretarem o que está dentro de si próprios.
Nas sociedades desnacionalizadas, nas sociedades estragadas pelas ideias estéreis do humanitarismo, do pacifismo, e da fraternidade humana; nas sociedades que perderam as virtudes guerreiras e para quem o estrangeiro não é, como para as sociedades sãs, essencialmente o Inimigo - nessas sociedades os governantes perderam o contacto instintivo com a massa do povo, e não podem portanto interpretar o que não sentem. Podem ser homens pessoalmente honestos e bem intencionados; em geral não o são; mas não se pode interpretar os instintos dos outros.
Como há-de um governante interpretar um instinto de que não participa? Os governantes não nascem Shakespeares, com a arte de interpretar os sentimentos dos outros; só têm, querendo os deuses, o poder de interpretar os próprios.A democracia é um sistema político que só aparece nas decadências.»
-Fernando Pessoa, "Páginas de Sociologia Política"
Como sempre, em Pessoa, há coisas com as quais concordo e outras nem tanto. Mas não é isso que vem agora ao caso.
Peguemos nesta sua intuição e transportemo-la à situação portuguesa actual. É nítido que nem os governantes compreendem os governados, nem estes devotam qualquer estima àqueles. Aliás, estão todos eles bem mais próximos dum ódio mútuo e inoxidável, que duma coesão orgânica minimamente decorosa. Em rigor, os governantes desprezam olimpicamente os governados, a quem consideram uma choldra infestante, recalcitrante, caprichosa e indigna (indigna sobretudo deles, sábios e preclaros ministros); e os governados reagem em conformidade, usando a choldra governante como vazadouro nocturno para todas as suas frustrações, insucessos, incapacidades, vícios, insuficiências e orfandades. Resulta mais que evidente que tanto uns como outros padecem, em fase terminal e galopante, da - chamemos-lhe assim - "Síndrome de Escandinávia". Que se traduz no seguinte: os governantes gostariam muito que os seus governados fossem escandinavos; e os governados, com não menos ênfase, adorariam ter a governá-los nórdicos governantes. O sincronismo que disto tudo decorre é deveras eloquente: às tantas, em vez de governarem os seus compatriotas, os governantes estão a tentar transformá-los em escandinavos, ou a legislar como se o fossem; e os infelizes governados estão, por regra e princípio, a lamuriar-se de não se transformarem em escandinavos os compatriotas seus que os governam. No fundo, esta curiosa síndrome funciona como pretexto régio: a uns para não governarem (o país não os merece); a outros para não se deixarem governar (eles não merecem um tal desgoverno). O que culmina no actual lema nacional: "ninguém governa ninguém; cada qual governa-se." A parte perdeu toda e qualquer noção do Todo.
Enfim, é todo um psico-país, estilhaçado, fragmentário, esquisóide, a padecer de dupla personalidade. E a detestar-se diante do espelho.
Mas dizer que a democracia é "um sistema político que só aparece nas decadências" parece-me um duplo exagero. Pelo menos, a fazer fé naquela que conheço e tenho experimentado na pele. Em primeiro lugar, porque ainda não consegui apurar se é a democracia que aparece na decadência, se é a decadência que aparece na democracia. E, em segundo, porque não é "um sistema político", mas, comprovadamente, uma "ausência e oclusão de qualquer sistema -político, social, filosófico, musical, ou o que seja. Chamar sistema a um mero "aglomerado heteróclito e concorrente de esquemas" afigura-se-me um equívoco grosseiro e extremamente infeliz.
É o mesmo que chamar corpo ao amontoado completo de membros e postas dum indivíduo depois de esquartejado.
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