segunda-feira, dezembro 08, 2008

Uma Questão de Higiene, mesmo.

Prosseguindo nesta aleatória reposição de postais antigos (os três anteriores também eram de 2004), recapitulemos alguns conceitos elementares acerca da mixórdia e dos seus múltiplos requintes.


Volto a este assunto. Se vos desgosta, tanto melhor. Mas não consigo deixar de pensar em tão crucial temática:
Há qualquer coisa de flagrantemente promíscuo entre grande parte da “literatura” que se edita nestes dias e o papel higiénico. A cada dia que passa, a evidência, de resto, aumenta: ler tornou-se uma forma sofisticada (ou meramente complementar) de ir ao cabeleireiro. Ou à retrete. Não será por acaso.
Desde sempre, o burguês luzidio e bem tratado, filisteu atávico que refocila todo pimpão em chiqueiros egonáuticos, recorre aos livros como parte essencial da decoração doméstica: enquadra-os com reposteiros e mobílias, afina-os por tapeçarias e bibelôs. Aprecia-os, sobretudo, sob o ponto de vista da encadernação. Isso e o “bom tom”. Os clássicos são de bom tom numa sala ou escritório. Casos há também em que não é, de todo, a decoração doméstica que o norteia: nesse caso, é a indumentária.
Eu, tenham lá paciência, mas aos livros devoto ritual diverso. Há aqueles que leio e aqueles que não. Os que leio aprecio-os pelo que trazem escrito no papel; os outros, pela macieza e capacidade absorvente deste.
Por exemplo, uma Agustina Bessa-Luís ou António Lobo Antunes, por incrível que vos pareça, variam muito. Há edições mais macias que outras. Há edições absolutamente agressivas para a pele, que arranham e desbotam, mal entram em contacto com a superfície a cuidar. O mesmo se pode dizer em relação a uma Lídia Jorge. Já um Saramago não padece dessas flutuações: oferece-se-nos em papel standard, sem oscilações, bastante dúctil e aderente. A sua capacidade escato-pregnante é notável. Não tanto, é certo, como uma Agustina, nem, longe disso, como um Lobo-Antunes; mas, ainda assim, bastante aceitável.
Lobo-Antunes, de resto, só por si, seria merecedor de uma monografia. Retrete que não disponibilize ao celebrante, em suporte dourado apenso, uma das suas obras, proscrevei-a de imediato, a vermelho, na vossa agenda. Livrai-vos de cagar em tal antro: é gente analfabeta –ou pior: analfabrava – de certeza absoluta. Inventai uma desculpa, um pretexto inadiável, e escafedei-vos de lá o quanto antes. Se não são canibais, são antropófagos - burgueses de merda, enfim.
A mim, quando eventualmente algum dos raros casais amigos –gente intrépida – me convida para ir, de senhora Dragão à ilharga, jantar lá a casa, mais que o menu, nunca se esquecem de me dizer: “e temos lá a última edição do Lobo-Antunes, em edição especial, papel couché .”
Além do mais, nestes saraus, tanto como o que vamos passar pela boca, importa que acautelemos o que vamos abeirar do posterior orifício. Eles, os anfitriões destemidos, conhecem-me bem, de ginjeira, e sabem que doutra maneira dificilmente me apanhariam lá. Assim, é infalível. Ou melhor: é quase impossível resistir. Peroro à senhora Dragão e lá vamos. Depois, findo o repasto, passado pelas mandíbulas o bacalhau ou a picanha, o tinto, varrida a sobremesa, emborcado o puro malte, chega o momento (por todos) ansiado... Levanto-me e profiro, não sem uma certa solenidade: “Bem, agora, com vossa licença, vou ver que tal está o Lobo-Antunes!” E lá ficam, eles todos, a aguardar-me, impacientes, sequiosos da opinião do expert. Quando regresso, aliviado, ainda a dar o último retoque no cinto das calças, já todos me bombardeiam: “Então?! Então que tal?!”
E não raras vezes, senão por sinceridade, ao menos por cortesia, respondo: “Supimpa! O melhor Lobo Antunes dos últimos tempos. Até me assoei!...”
Entretanto, acabo de saber que vai ser editada mais uma obra de Agustina Bessa-Luís, com prefácio de Clara Ferreira Alves. Fico ansioso. Mas também preocupado. Se o romance estiver ao nível do prefácio, arriscamo-nos a deparar com um típico papel de jornal, duma flacidez exacerbada, com tendência para manchar aquilo que, estando já sujo, conviria antes que limpasse. Duvido que alguém no seu perfeito juízo, se atreva a desemporcalhar-se com tal compêndio de bacoquices.
Mas não julguem que apenas as obras nacionais usufruem destes méritos. O rol internacional é ainda mais luxuriante. Marguerite Yourcenar, por exemplo, tem edições esplêndidas –quem nunca experimentou umas “Memórias de Adriano”, em quarta edição, ou “A obra ao Negro”, da Quixote, não sabe o que é uma higiene de qualidade; e Jean Paul-Sartre, Hemingway, Durrel, Kundera e tantos outros são do melhor que alguma vez poderemos encontrar à cabeceira da retrete. A Virgínia Wolf nunca experimentei, mas, não sei porquê, palpita-me que não anda muito longe da textura duma Gata Cristhie.
Quanto à maioria do que para aí se edita e vende, do que se anuncia em promoção nas montras e catálogos, perdoem-me o cepticismo (ou a exigência), mas, acreditem-me: Não serve nem para ler, nem, tão pouco, para limpar o cu. É lixo tóxico puro!... Repassado pelos olhos da frente ou pelo de trás, pode resultar em cauterizações insanáveis! E, como se tudo isso não bastasse, junta o inútil ao desagradável: Nem as pestanas resistem, nem os pintelhos do cu batem palmas!...
Vão por mim: pode ser que se combata o fogo com o fogo; mas, decerto, não se limpam resquícios de caca com defluxos de outra caca pior ainda. Tem que ser, pelo menos, igual.

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