segunda-feira, dezembro 15, 2008

O germe e o fruto

«Há longos anos o Brasileiro (não o brasileiro brasílico, nascido no Brasil - mas o português que emigrou para o Brasil e voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais francamente popular. (...)
De facto, o pobre brasileiro, o rico torna-viagem, é hoje, para nós, o grande fornecedor do nosso riso.
Pois bem! É uma injustiça que assim seja. E nós os portugueses que cá ficamos, não temos o direito de nos rirmos dos brasileiros que de lá voltaram. - Porque, enfim, o que é o Brasileiro? É simplesmente a expansão do Português.
Existe uma lei de retracção e dilatação para os corpos, sob a influência da temperatura. (Aprende-se isto nos liceus, quando vem o buço). Os corpos ao calor dilatam, ao frio encolhem. A mesma lei para as plantas, que ao sol alargam e florescem, ao frio acanham e estiolam. A bananeira, nos nossos climas, é uma pequena árvore tímida, retraída, estéril: no calor do Brasil é a grande árvore triunfante, de folhas palmares e reluzentes, tronco possante, seiva insolente, toda sonora de sábiás e outros, escandalosa de bananas. Mesma lei para os homens. O espanhol das Astúrias, modesto, homem, discreto e grave - passando para o sol do Equador, nas Antilhas espanholas, torna-se o sul-americano vaidoso, ruidoso, ardente, palreiro e feroz. Pois bem! O Brasileiro é o Português - dilatado pelo calor.
O que eles são expansivamente - nós somo-lo, retraidamente. As qualidades internas em nós, estão neles florescentes. Onde nós somos à sorrelfa ridiculitos, eles são à larga ridiculões. Os nossos defeitos, aqui sob um clima frio, estão retraídos, não aparecem, ficam por dentro: lá, sob um sol fecundante, abrem-se em grandes evidências grotescas. Sob o céu do Brasil a bananaeira abre-se em fruto e o português rebenta em brasileiro. Eis o formidável princípio! O Brasileiro é o Português desabrochado.
Ó o sol de lá que nos fecunda. O Chiado sob os trópicos dá inteiramente a Rua do Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é como se a espiga se risse da semente. Pelo contrário! o brasileiro é bem mais respeitável, porque é completo, atingiu o seu completo desenvolvimento: nós permanecemos rudimentares. Eles estão já acabados como a abóbora, nós embrionários como a pevide. O Português é pevide do Brasileiro.
Que somos nós? Brasileiros que o clima não deixa desabrochar. Semente a que falta o sol. Em cada um de nós, no nosso fundo, existe, em germe, um brasileiro entaipado, afogado - que, para crescer, brotar em diamantes de peitilho, calos e prédios serapintados de verde, só necessita embarcar e ir receber o sol aos trópicos. Cada lisboeta, sabei-o, traz em si a larva de um brasileiro. Nós aqui vestimos cores escuras, lemos Renan, repetimos Paris, e no entanto cá dentro, fatal e indestrutível, está aboborado - um brasileiro.
Quem o não tem sentido a agitar-se, como o feto no seio da mãe? - Fitais às vezes uma gravata verde com pintas escarlates? É o Brasileiro a remexer por dentro. - Desejas inesperadamente uma boa feijoada comida em mangas de camisa? É o Brasileiro. - Apetece-vos ir visitar a Memória do Terreiro do Paço? É o Brasileiro lá dentro. - Lembra-vos reler uma ode de Vidal ou uma fala de Melício? É o Brasileiro! Ele está dentro de nós lisboetas! Ah, sabei-o! Vós estais sempre no vosso estado interessante - de um Brasileiro!
E quereis uma prova? É o Verão! É o cruel Verão! Então sob a temperatura germinadora - o brasileiro interior tende a florir, a desabrochar, a alastrar em cachos. Então começais a deitar o chapéu para a nuca, a usar quinzena de alpaca, a passear depois do jantar com o palito na boca, a exigir dos vendedores a água do Arsenal, a frequentar a Deusa dos Mares! Sabeis o que é? É o Brasileiro, que lá tendes dentro da entranha, atraído pelo sol, a querer romper!
Portanto quando nos rimos dele - intentamos a nós mesmos um processo amargo. No Inverno a pevide contém a abóbora: mas quando a abóbora cresce no Verão, é ela que contém a pevide. Nós cá contemos o brasileiro; ele lá, chegado ao Brasil, germina, brota em fruto, e nós ficamos-lhe dentro. Ora se esmagarmos a abóbora a grandes golpes de chacota, é sobre a nossa própria e rica pessoa que descarregamos o riso fero. Tenhamos juízo! Reconheçamo-nos neles como nós mesmos - ao sol.!»

- Eça de Queiroz, "O Brasileiro" (Fevereiro, 1872)

Sob esta interessante perspectiva é melhor começarmos a acreditar piamente no tal "aquecimento global". E duma forma tórrida, escaldatória. Já se vêem desabrochar, nem direi brasileiros, mas angolanos por todo o lado.

Nota: Desta vez a gralha na data era apenas de cem anos a mais. Para compensar a anterior, que era de cem anos a menos. E testar a atenção do leitor de serviço (que, diga-se, mais uma vez não quis deixar os seus pergaminhos por mãos alheias e abateu a ave em pleno voo.)

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