Acerca do "federalismo" advogado por Marcelo Caetano no início dos anos 60, tem Franco Nogueira o seguinte - e eloquente - comentário no seu diário, em Abril de 1965:
«Segundo o ministro do Interior, algumas actividades académicas parecem denotar uma intervenção do general Deslandes em favor da criação dos "Estados Unidos de Portugal", como preconizada por Marcelo Caetano, ou seja uma espécie de federação lusitana. Como se aqueles que nos querem expulsar de África consentissem que, sob outro nome e outra construção política, permanecêssemos em África! Torna-se-me difícil entender tanta ingenuidade em homens que têm obrigação de ser esclarecidos. Entretanto, pelo país, continua intensa a propaganda norte-americana, junto de militares, de funcionários médios, do clero, da imprensa, e dos meios de informação geral. E muitos socumbem.»
Curiosamente, em 16 de Fevereiro de 1974, no seu último discurso à ANP, Marcelo Caetano declarará:
«Em 1962 eu pensava que valia a pena pôr de pé a construção federal - com a sua complexidade, sobrepondo órgãos dos Estados federados e reduzindo a própria metrópole a um destes - porque ela seria aceite pacificamente pelo mundo e nos permitiria vencer as guerrilhas desajudadas por uma vez do auxílio externo e do apoio das Nações Unidas.
Hoje sei que não é assim. As guerrilhas e os seus aliados, as Nações Unidas e as que andam desunidas, não aceitarão outra solução política que não seja a entrega do poder aos movimentos terroristas, com expulsão, imediata ou a curto prazo (como sucedeu em Madagáscar e no Zaire) dos brancos residentes nos territórios.
O problema não é jurídico: não reside já em escolher entre dependência ou independência, entre Estado unitário ou Estado federal. É puramente político. Está posto por essa gente toda - aberta ou encobertamente - em termos racistas. E está posto no dilema - pretos ou brancos.
(...) Somos responsáveis pelos milhões de portugueses pretos e brancos que pacificamente labutam e querem viver sob a bandeira verde-rubra na África, na Ásia e na Oceânia.»
E, mais adiante, deixará mesmo um prognóstico que o futuro revelará lúcido:
«Se a Europa sair ou for expulsa definitivamente da África não será do Ocidente que virão os sucessores.»
É plausível que Caetano, com este discuso, procurasse sossegar ou cativar os sectores mais conservadores do regime. Os mesmos que não vinham vendo com bons olhos a -nas suas próprias palavras - "política de autonomia progressiva" das províncias ultramarinas. Cujo "pensamento era o de ir entregando cada vez mais o governo e a administração dos territórios às suas populações, procurando fazer participar em escala rapidamente crescente os nativos em todos os escalões da gestão pública." E que, de resto, ficaria consignada na "nova lei orgânica do Ultramar Português", de 23 de Junho de 1972. Segundo a qual, por exemplo, "cada província passava a ter a sua Assembleia Legislativa eleita por sufrágio directo."
Certo é que, querendo agradar a tantos, acabou por não conquistar nenhum. Confundindo o todos com o todo, acabou prisioneiro da sua própria anfibologia e, à semelhança do morcego da fábula, terminou solitário, ostracizado por aves e mamíferos.
E de tal modo assim foi, que, no dia 25 de Abril de 1974, ninguém sabia exactamente, e com clareza, qual a proveniência do golpe. Tanto podia estar a vir da esquerda cantadeira como da direita roncante.
No final do dia, sabemos hoje, ganharam os sinistros. Por falta de comparência.
22 comentários:
Exmo.s
Venho por este meio interpor devido recurso da decisão do Dragão (de se pôr na alheta) por motivos de interesse nacional.
Espera despacho.
Assinatura ilegível.
Se o caro Dragão está a pensar em se "pôr na alheta", que não o faça para exprimir a sua liberdade pessoal ou qualquer outro interesse seu individual. Que o faça em nome de um dever maior, para se poder recolher e melhor contemplar a realidade à sua volta e voltar melhorado. Isto não é uma crítica à eventual falta de nível do Dragão, pelo contrário. Aos melhores há que exigir que sejam ainda melhores e não que fiquem como estão apenas por já se encontrarem infinitamente acima da mediocridade reinante.
A minha reflexão destes posts é que Kant é pior que Hegel, pois se Hegel criou bases para a destruição da civilização, Kant vendou-nos os olhos, permitindo que a destruição ocorra à nossa frente sem nos apercebermos, já que tornou a inteligência incapaz de avaliar a realidade.
Porque é que se dá atenção a alemães, quando os gregos antigos faziam a festa?
Por outro lado, Aristóteles seria imperialista?
O nosso séc XVI não viveu bem sem os alemães?
E ja agora...sem os judeus, enquanto intelectuais?
«Porque é que se dá atenção a alemães (…)»
O que me intriga, e não sei responder, é a razão, de a partir de certa altura, alemães e austríacos terem uma tão grande preponderância nas artes e na “intelectualidade”, no melhor e no pior. Haydn, Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Schoenberg, Goethe, Kant, Hegel, Feuerbach, Schelling, Nietzsche, Schopenhauer, Marx, Heidegger, Husserl, Freud, Brentano (suíço germanizado), Frankl, Menger, Böhm-Bawerk Mises, Hayek, Planck, Einstein, Schrödinger.
Há uma campainha a tinir no meu bestunto, para saber se alguém já se lembrou de apresentar a questão nos fora do costume.
Porquê, esses antigos bárbaros, que nos invadiram e foram rechaçados, lograram atingir um desenvolvimento intelectual que os colocou como modelos de tudo o que o Ocidente aplica na vida corrente.
A ideologia e o modo de organização social, têm que provir sempre desses lados teutónicos?
E os outros, intelectualmente, valem menos que eles?
Uma sinfonia de Beethoven, para mim, é considerada o supra sumo da arte musical.
Mas...ouvindo bem o que me leva a considerar isso, é a complexidade que se esconde por detrás da harmonia em fusão melódica.
E no entanto, também gosto dos Urubamba. E não acho que em termos melódicos sejam inferiores a Beethoven. Antes pelo contrário.
Então, porque é que Goethe continua a ser um modelo de escrita poética inultrapassável se temos outros, a escrever cantigas de amigo, com a mulher em vista?
Então a questão que devemos colocar,é a seguinte?
A que se deve a preponderância da cultura da Europa teutónica?
«Uma sinfonia de Beethoven, para mim, é considerada o supra sumo da arte musical.
(…)
E no entanto, também gosto dos Urubamba. E não acho que em termos melódicos sejam inferiores a Beethoven. Antes pelo contrário.»
É interessante ler o que o Bernestein disse sobre Beethoven, considerava-o um supra suma mas da forma, afirmando que em outros domínios da arte havia muito melhor.
«A que se deve a preponderância da cultura da Europa teutónica?»
Aqueles povos têm uma certa apetência para uma racionalidade que toca o espírito… Isto é uma mera divagação. Mas numa época em que a “razão que se quer bastar a si mesma” ganha preponderância e a herança medieval é censurada, uma razão adocicada é apelativa. A minha experiência rudimentar no piano diz-me que um Bach compondo cerebralmente, quase sem usar efeitos, é tão eficaz emocionalmente como um Chopin, com os efeitos de pedal e os “rubatos”. Marx tem uma filosofia de merda, mas a “melodia fica no ouvido”. Husserl ou a escola austríaca de economia são quase asceses. Freud e Frankl querem conhecer a essência do homem. Temos aqui projectos grandiosos, ou que prometem isso.
José: Os teutónicos é muita gente que nem corresponde a uma configuração natural. Havia o Império Austro-Húngaro.
Agora está na calha um outro Império mas com a velha união carolíngia.
A história é antiga- Norte contra Sul.
Mário- a altura em que "passaram a ter essa preponderância cultural" também não foi meramente teutónica ou alemã- foi outra coisa- os Habsburgos. Com enorme contributo do Sul.
Interessante, zazie. Vou tentar abster-me de comentar muito estas coisas sem ter mais conhecimentos absorvidos.
Mas este post fala de outra coisa e eu também nunca entendi o Caetano.
Que história era essa dos EUde Portugal?
Já estava a divagar. Claro que o importante, é discutir o Caetano.
A história dos EUP é velha e já tinha ouvido falar nela.
Caetano em 1970-74 tinha ilusões sobre essa grandiosidade possível, mas em termos utópicos.
O sonho comanda a vida, como dizia o poeta e Caetano, nesse caso, herdou o sonho quinhentista.
Ainda há sonhadores desses. Alguns, até escolhem o nome Dragão...
Mas, o que foi o quatrocentismo e o quinhentismo porgtuguês?
O Joel Serrão escreveu um livro sobre isso e estou tentado a comprar, porque a edição é recente.
Entre esse e o Musil traduzido, hesito.
Que me dizem?
Compre o Joel Serrão e depois conte. Eu li fontes e também tive de ler uma série de interpretações dessas fontes.
É muito difícil fazerem-se balanços que expliquem uma época. Só acerca do Infante D. Henrique existem teorias e mais teorias opostas.
E as fontes, claro. Mas nunca chegam, de tal modo é complexa a questão. Uma coisa é certa- não há "modernidade" nem viragem renascentista a explicar essa época. Há muito medievalismo à mistura. Medievalismo de espírito e modernismo no engrandecimento das casas senhorias, talvez.
E também não existe um quinhentismo coeso. Há épocas de influência italiana e muito mais modernas com D. Afonso V e depois o D. Manuel é outro mais medievo. A influência do Norte da Europa teve um grande peso. E é por falta de saída e lugar nela que se avança para o mar.
errata: casas senhoriais- gigantescos monopólios.
Seguindo a lógica e a ordem estes postais do Dragão, há por aqui uma tese a apresentar, para ser debatida.
Ainda não descobri exactamente qual seja, o que é uma armadilha ao leitor desprevenido..
Por isso mesmo, fica o desafio:
Ó Dragão! Será possível, escrever em meia dúzia de frases a tese fundamental, sobre este assunto?
Depois, seguir-se-ia a glosa habitual...
Pois é. Que Salazar teve um mau sucessor? Mas nem isso explicava o resto. E o resto era o que fazer ao Ultramar evitando-se o 25 de Abril.
Os anti-fascistas e anti-colonialistas que de mão dada com os "nacionalistas" tudo fizeram para correr os brancos do ex-império e ainda por cima sem os bens são ainda os mesmos que agora "lutam" por mais "cooperação", isto é "perdões de dívida", "investimentos ruinosos" e acima de tudo o "acolhimento" de centenas de milhar de africanos com verdadeiras policias políticas a garantir que ninguém refile do esbulho que isso custa...
Reciprocidade em lado nenhum existe.É só "pagar".
Para mim a traição continua...
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