terça-feira, julho 29, 2008

Idologias

Do "Dicionário Crítico", de António José Saraiva, se diz, e julgo que com propriedade, que "foi um livro de cabeceira da esquerda nos anos 60". Por algum motivo, pelo menos, a polícia o apreendeu logo após a sua impressão.
A obra está replecta daquele optimismo peregrino tão típico do marxismo evangélico, mas é interessante a muitos títulos. Na edição de que me sirvo, de 1984, o Dicionário vem precedido dum Prólogo do Autor de 1983. Neste se faz, de certo modo, a crítica e o balanço do Dicionário Crítico de 23 anos antes. Nem uma é benévola, nem o outro é animador. Saraiva reconhece, até mais que o logro, o embuste - os devaneios nefelibatas que se desvanecem perante os sopros do tempo e as montanhas da realidade. Uma fórmula condensa a distância: de solução, o Progresso deveio problema. Ou seja, de motor salvífico, tornou-se portal para a ameaça.
Em tandem com a Acromiomancia que aqui vinha expondo, encetarei agora diálogo com António José Saraiva, no seu Dicionário Crítico (que servirá de logradouro para o pensamento que, se bem que duma forma aleijada, ribalda e pífia, haveria de emergir no 25 de Abril), mas também no seu Prólogo de 1983 (verdadeiro epitáfio do anterior).
Aliás, é deste que retiro o trecho inaugural que se segue:
«Há homens que funcionam como totems da Tribo e para isso não é preciso estar vivo, mas dar aos outros essa ilusão.
Há outras motivações ainda. O momento da Revelação e da conversão é um estado de graça comparável ao enamoramento, e é natural que se deseje prolongá-lo indefenidamente, permanentemente. Para conseguir isso é preciso conservar teimosamente a imagem inicial, defendê-la contra toda a dúvida que faz despegar-se a realidade do sonho. Isto consegue-se por meio de uma arte de interpretação escolástica que pode atingir cumes de subtileza sem sair do terreno estreito da crença. Este tipo de interpretação tende a criar um espaço místico que não precisa de sair de si próprio. Quanto mais os factos o contradizem mais ele se adelgaça e se eleva, até lembrar uma torre gótica perigosamente frágil e por isso mesmo mais rígida e mais impenetrável ao exterior. Quanto mais impossível, mais verdadeira: Credo quia absurdum. O crente passa a proteger-se, a proteger a sua verdade contra os desmentidos da realidade, nem que seja preciso dar o passo necessário para dar à sua verdade uma qualidade religiosa.»
António José Saraiva descreve aqui os comunistas. O retrato, porém, tem um alcance bem mais vasto. Se é que não vem mesmo atravessando os séculos pós-medievais. O homem que se erige em totem tribal prenuncia uma "metamorfose". Saraiva, a certa altura, refere-a para aquele caso específico: «o marxismo está sofrendo uma metamorfose do mesmo género. A luta de classes transforma-se cada vez mais numa luta descarnada entre o Bem e o Mal, que terminará inevitavelmente pela vitória do Bem. A vitória do Bem é a vitória do Partido, que inicialmente fora um meio para alcançar a sociedade sem classes. E é nesse ponto que as linhas divergentes se encontram, a linha oportunista, golpista, materializante, e a linha escolástica, talmudista, exegética, etérea: encontram-se no exalçamento do Partido, que é a materialização da Verdade.»
Ora, é nisso que, precisamente, consiste a metamorfose: na transformação da Tribo (seja partido, seita, clube, loja, associação, escola ou gangue) em Igreja; e do Totem em Deus. A limite, redunda sempre tudo numa espécie grotesca e anã de cristianismo: um catolicismo de contrafacção, de pechisbeque. Maniqueísmo caiado e traficado por ciganos.

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