«Consola-me ouvir dizer a muitos, estrangeiros ou que no estrangeiro residam habitualmente, mas que nos visitam de quando em vez, que é visível a profunda transformação da vida nacional em todos os sectores, a partir de acentuada melhoria económica e da aceleração da política social. Essa transformação rápida tem um custo. A muita gente aflige ver a modificação de hábitos, de mentalidade e de costumes que se processa na sociedade portuguesa. E que nem sempre é para melhor. Tínhamos, e graças a Deus ainda há muito quem tenha, uma bondade natural de trato com os outros, um espírito de afabilidade no acolhimento dos estranhos, um respeito recíproco nas relações sociais, uma compreensão das dificuldades alheias, uma contenção púdica de sentimentos, que vão cedendo cada dia mais aos impulsos do egoísmo. O egoísmo é a lepra da humanidade contemporânea. À medida que se vai implantando a convicção de que esta vida são dois dias, dos quais importa tirar o máximo de prazer sem qualquer esforço e suceda aos outros o que suceder, desfazem-se as famílias, desmoronam-se os exércitos e ruem os Estados.
A vida em sociedade implica numa atitude de solidariedade e de colaboração que exige dádiva de si próprio, sacrifício de interesses, espírito de serviço, integração em planos colectivos. Mas o egoísmo materialista desfaz tudo isso. Nega-se ao sacrifício, escusa-se a servir o próximo, aborrece a obediência às leis e a quem as executa, instaura a indisciplina em todos os sectores, recusando-se a acatar outra norma que não seja a das conveniências pessoais de cada um.
Quantas vezes as pessoas se queixam de injustiças, por não lhes ser feita a vontade! Para muitos justiça é o que lhes convém.Estamos perante a invasão de uma mentalidade que grassa já na maior parte dos países e que, infelizmente, está longe de ser um sinal de progresso. »
- Marcello Caetano, "Última Conversa em Família, através da rádio e da televisão, em 28 de Março de 1974"Atentemos no lúgubre paralelismo entre este presságio-mortalha dum ciclo e um outro de 27 de Setembro de 1968, com que Franco Nogueira encerrava o seu Diário:
«Anunciada a composição do novo governo. Nos Estrangeiros, lavro um despacho determinando que cesse o envio dos telegramas oficiais ao Doutor Salazar e que os mesmos passem a ser remetidos ao Presidente do Conselho Doutor Marcello Caetano. Findou uma época com lampejos de grandeza, um estilo de governo onde havia sentido de medida e elegância de forma, uma concepção de vida assente em certezas, uma visão de Portugal haurida na história, também erros e sombras sem dúvida; mas foi toda uma política onde a firmeza e a coragem desempenhavam papel de monta. Uma viragem, em suma. Vamos ter novos tempos, novas vontades.»
Franco Nogueira, lucidamente, adivinhava a mudança de rumo. Estarrecido, Marcello Caetano descobria a invasão duma mentalidade infestante, perturbadora, pandémica. Augurava que não era um progresso. Nós, que a padecemos vai para mais de trinta anos podemos confirmar a plena correcção desse augúrio. De facto, não foi um progresso. Pelo contrário, tem sido um retrocesso constante. Tanto, que, por este andar e a este ritmo caranguejante, não tarda estaremos -não decerto no 24 de Abril de 74, mas - num híbrido deveras monstranhiço do 27 de Maio de 1926 com o 30 de Novembro de 1640. Uma enorme bosta ouriçada de patas, goelas, cloacas e pêlos.
Por outro lado, se a uma vontade sucediam outras vontades, já com a mentalidade invasora era a diluição de toda e qualquer genuína vontade numa chusma heteróclita e carnavalesca de meras gulas apetites o que se adentranhava. Mas o que não deixava de ser ainda mais perverso e inquietante é que o púlpito donde o infeliz governante lançava o seu alerta coincidia precisamente com a principal porta de entrada da peçonha: a rádio e a TV.
E quando mais adiante, nessa sua derradeira Conversa em Família, Caetano profere: «No que todos os estrangeiros, desejosos de nos ver despojados do Ultramar, jogam é no colapso da retaguarda em Portugal», nem imagina o quão justo e paradoxal está a ser.
Sterne defendia que todo o homem tem o direito inalienável ao seu cavalinho de pau. Para azar de Marcello Caetano, e ainda mais nosso, o seu cavalinho de pau era também o de Tróia. Bem vistas as coisas, as suas Conversas em Família não passavam dum breve e inócuo interstício na propaganda do inimigo. Uma minúscula pausa no bombardeamento. Que, passados trinta anos, não só não abrandou como se tornou maciço... e ininterrupto.
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