O quadro geral em vésperas do 25 de Abril era, grosso modo, o seguinte: uma elevada percentagem de analfabetos honestos, uma grande quantidade de brutos e uma percentagem crescente de analfabrutos (ou analfabetos desonestos). Passados 48 anos de democracia, ou treta que o valha, diminuiu consideravelmente a percentagem de analfabetos, cresceram desmesuradamente as resmas de brutos & analfabrutos. E emergiu, entretanto, uma casta rutilante e novíssima: a dos mentecastos (que são asnautas que adquirem misteriosos diplomas embora permaneçam virgens a qualquer tipo de cultura - ou sequer educação - séria). O Mentecasto, não obstante, entrega-se de corpo e desalma ao ascensorismo social e, se possível, caso o pedigree (ou o seminário Jota) o permitam, ao alpinismo político, entenda-se, burrocrático. Fora isso, nada mais existe, a não ser enquanto mochila ou estojo de maquilhagem. O Mentecasto, nos casos mais histriónicos, pode até dedicar-se às artes, ao jornalismo ou à comédia. Esse fenómeno, aliás, é cada vez mais frequente. Mas nada disso excede, em substância, o grau zero da publicidade, o panfletarismo de ocasião, o frete ao puxa-enxame do momento.
O mentecasto, tudo somado, é apenas um mentecapto ampliado, exorbitante, sobrexcitado. Após frequência universitária, sobretudo, não é a inteligência que vê desenvolvida: apenas a estultícia, a impostura, a brutidão intrínseca. Poderá até chegar a ministro, e em muitos casos até chega, mas isso apenas atesta da sua mentecastidade, ou seja, de sua impermeabilidade a qualquer tipo de espírito próprio ou pensamento original. Completamente destituído de resquício de princípio ético acima do seu interesse umbilical, de qualquer sentido genuíno de comunidade ou despojo altruísta, avança pela existência e - enquanto irrisão desta - pela carreira, como mera esponja aderente à coisa do momento, entenda-se: à mais recente invenção dos progressionários aflitos com a urgência urinária de tudo mudar para que tudo fique na mesma; ou para que a ilusão avance, mas a realidade não saia do mesmo sítio.
Anedotiza-se hoje, frequentemente, acerca do cinto de castidade medieval. Era usado como forma de vedação à volta do sexo das damas. Simboliza, aos olhos altamente emancipados e evoluídos do presente, todo uma época de costumes repressivos, tenebrosos e anacrónicos. Merece todo o escárnio e censura da paróquia. E com que galhofas o mimam! No entanto, se repararmos com viva atenção, sobretudo nestes últimos decénios, alastra todo um aparato repressivo e enclausurante, não já tanto do sexo, mas sobremaneira do espírito, do simples pensamento. O cinto de castidade é agora (também e sobremaneira) mental. E vem mascarado de preservativo das ideias. As damas medievais, na ausência do legítimo cavaleiro, viam-se confinadas nas partes genitais a uma espécie de armadura obstrutiva; os cidadãos actuais, masculinos e femininos, caso engulam avidamente todas as pílulas e pastilhas publicitárias que lhes subministram, da escola aos jornais e televisões, do berço à sepultura, vêem-se emparedados na alma (e, sobretudo, da alma), cercada a toda a volta pelos muros, vedações e arames farpados dignos dum presídio de alta segurança. Mais até que um presídio: um mosteiro das carmelitas descabeçadas. Em vez do voto de silêncio, o voto de amorfo: palrar até devem, o mais possível, e convulsivamente (sobretudo ao telemóvel, pela boca, pela tromba e pelos dedos); pensar é que não, ainda menos autonomamente. Até porque o não-pensar traduz-se doravante numa forma de "pensamento" colectivo, insectiforme. Massivo. Espécie de código químico das formigas transmitido a partir duma central-rainha. A massa amorfa não raciocina: debita, repete, reverbera. Os acontecimentos são-lhe explicados (e afunilados) a toda a hora. Por hordas de retransmissores e antenas repetidoras - especialistas, peritos, videntes e bruxas laicas, científicas, iluminóides, que convertem e sintetizam a complexidade noticiosa numa papa milupa digerível para enxames pueris retrocambiados, em espécie, ao estado larvar. A própria notícia já não refere ou descreve o acontecimento: interpreta-o, mastiga-o, regurgita-o, quando não o reinventa ou cria mesmo ad nihil. Também as moléculas putativamente individuas que compõem a multidão uniformizada, em bom rigor, não é apenas na parte psíquica que experimentam a cerca: o próprio sexo é-lhe, gradual e sistematicamente, truncado, desactivado, legalmente confiscado. O cidadão é cada vez menos homem ou mulher, pai ou mãe, masculino ou feminino: torna-se qualquer coisa acéfala, assexuada, desossada, caótica e reduzida à tal mentecastidade induzida, cultivada e obrigatória (no caso das falsas-elites, exibida e ostentada como emblema, bandeira e totem dum novo feiticismo - travestido de racionalidade culminante da história -, como prova, certificado, diploma inquestionável do seu direito sagrado ao pedestal definitivo da virtude). Donde é fácil intuir que o vácuo mental é centrípeto: tudo aspira e tritura em forma de vórtice, ralo, buraco negro. No fundo, das elites postiças às maralhas avulsas, é tudo a mesma massa, sujeita à mesma batedeira, fermento e levedura.
De que riem então quando riem do tal cinto de castidade medieval? Não riem: zurram. Detrás do cabresto e antolhos, atrelados à nora ou à carroça. Albardados e afivelados, da cabeça aos genitais, de psico-artefactos tão ou mais herméticos e repressores que o célebre protótipo medieval. E tanto mais tenebrosos e sádicos quanto mais dissimulados e reforçados com rituais delirantes de auto-flagelação, auto-mutilação e, no zénite de toda a inerme descese ao esgoto da obscenidade puritana, impotência triunfal. Ou não funcionassem esses acessórios sado-compulsores, como qualquer sistema securitário avançado, em regime de redundância. Pois, na verdade, estes cativos modernos, além de envergarem, com vaidade e ufania, a medonha e ferruginosa cueca, dão-se ainda ao requinte de se castrarem e esterilizarem todos, muito bem esterilizados e capadinhos, por devoção beata e ultramilitante. E não exclusivamente das ideias como da própria vontade. Incapacitados e vegetalizados tanto para o real pensamento, como para o genuíno amor. Seja este pelo sexo oposto, em particular, seja, em sentido lato, pelo seu semelhante e congénere humano.
E assim desembarcamos no promontório final: o mentecasto degenera e desfila, invariavelmente, arvorando um mentecasco. Casco de barril de surrapas e casco de ferradura. Porque, no seu simulado orgasmo pudibundo, fruto chocho do onanismo social de circunstância, o mentecasto nada tem de angélico... Bem pelo contrário: é uma pura, maquilhada e refinada besta. Sem emenda nem remissão possíveis.
8 comentários:
É a geração mais bem preparada de sempre, dizem!
Para mim é a competição dos escroques.
De antologia .
Parafraseando "o" Kraft : um texto que devia ser de leitura "gratuita e obrigatória".
Cpmts.
Obrigado Dragão,
vou colocar estas labaredas no ventilador.
cumprimentos,
Já tive oportunidade de me expressar no seu blogue sobre o assunto.
Subscrevo e recomendarei a leitura do artigo que escreveu.
Deixo-lhe aqui esta pérola que se passou comigo, numa noite de alegre tertúlia e copos num bar com as pessoas que lá se encontravam, após assistir-mos a um filme projectado no mesmo local.
Um indivíduo que afirmou ter uma licenciatura em Cinema - e tinha mesmo - após questionar-lo sobre o que achava da obra de Federico Fellini, respondeu, «...não conheço...», de seguida perguntei-lhe se conhecia o realizador, e a resposta foi, «...nunca ouvi falar...».
A maior empresa química da Alemanha, a BASF, anunciou que vai transferir permanentemente as suas operações para a China. A empresa cita custos insuportáveis de energia na Europa e uma excelente experiência na China como factores importantes para esta decisão.
A empresa é o maior produtor do mundo no seu sector e emprega 111.000 pessoas. O volume de vendas em 2021 ascendeu a 78 mil milhões de euros.
A decisão vem na esteira de decisões semelhantes de vários gigantes da indústria alemã, com destaque para a Volkswagen, que anunciou recentemente estar a “ponderar” a deslocalização.
> ... nunca ouvi falar...
Por estas e por outras é que o verrinoso Gore Vidal se referia ao seu próprio país como "The United States of Amnesia".
E de facto, para descanso de merceeiros, banqueiros e publicitários, é melhor que seja assim - o gado labuta útil e pacificamente, rumina a sua dose de sexo e "soma", e dorme bem, à parte umas pitadas de raiva e medo injectadas medicinalmente pelos media.
Mais do que isso é só gente a querer armar sarilhos.
Raul Luis Cunha
"Para esclarecimento, apresento em seguida uma minha tradução de alguns dos pontos mais relevantes do discurso de Putin, hoje no Clube Valdai. Sempre quero ver e ouvir as aldrabices que os pivôs e comentadeiros do regime irão debitar sobre este assunto ao longo do dia:
"O mundo após a hegemonia: justiça e segurança para todos"
• O mundo está a testemunhar a degradação das instituições mundiais, a erosão do princípio da segurança colectiva, a substituição do direito internacional por "regras".
• O dito "poder global" surgiu com "regras incompreensíveis," mas já aconteceram mudanças.
• O jogo do Ocidente é sangrento, perigoso e sujo.
• Não há unidade no Ocidente.
• “Quem semeia ventos colhe tempestades!"
• Ao criar a Ucrânia, os bolcheviques dotaram-na de territórios primordialmente russos – deram-lhe toda a Pequena Rússia, toda a região do Mar Negro, todo o Donbass. A Ucrânia evoluiu como um estado artificial.
• "Fui eu quem pediu a Shoigu para ligar a todos os seus colegas e avisar sobre a 'bomba suja' da Ucrânia!"
• Não precisamos de um ataque nuclear à Ucrânia, não faz sentido – nem político nem militar.
• Os eventos ainda se estão a desenvolver de acordo com um cenário negativo – tendo-se transformado numa crise em grande escala.
• O Ocidente joga sempre para a escalada: incitação à guerra na Ucrânia, agravamento da situação em torno de Taiwan, intensificação da crise energética e destruição dos gasodutos.
• Os novos centros da ordem mundial e o Ocidente ainda terão que iniciar um diálogo… e quanto mais cedo, melhor!
• No seu jogo, o Ocidente apostou no seu poder sobre o mundo. Ora este jogo é definitivamente perigoso, nega a soberania dos povos, a sua identidade e característiicas únicas.
• Os desafios ambientais fundamentais não desapareceram, estão apenas a crescer. É importante preservar a biodiversidade, mas não menos importante é a preservação da diversidade cultural e civilizacional.
• Como disse Solzhenitsyn, o Ocidente é caracterizado por "uma contínua cegueira de superioridade".
• A confiança do Ocidente na sua própria infalibilidade é uma tendência muito perigosa.
• A cultura do cancelamento é o cancelamento da cultura.
• A cultura do cancelamento não permite o desenvolvimento de pensamentos alternativos. No Ocidente, qualquer ponto de vista alternativo é declarado subversivo.
• Não se pode atribuir a culpa de tudo às maquinações do Kremlin.
• Pensemos no significado da palavra "cancelar"...! mesmo no auge da Guerra Fria, nunca ocorreu a ninguém cancelar a cultura.
• A história vai colocar tudo no seu lugar.
• Os nazis chegaram a queimar livros. Agora os ocidentais pais do liberalismo chegaram até a proibir Dostoievsky.
• O liberalismo mudou para além do entendimento até ao ponto do absurdo, quando os pontos de vista alternativos são declarados subversivos e ameaças à democracia.
• "Sempre acreditei e ainda acredito no poder do bom senso".
• Está convencido de que, mais cedo ou mais tarde, os novos centros da ordem mundial e o Ocidente terão que iniciar um diálogo sobre um futuro comum.
• O Ocidente reivindica para si todos os recursos da humanidade.
• A cada dia a ordem ocidental multiplica o caos e torna-se cada vez mais intolerante, até mesmo em relação aos próprios países ocidentais que tentam demonstrar alguma independência. Até as propostas de deputados húngaros para se consolidarem os valores cristãos foram designadas como sabotagem.
• Os EUA mataram Soleimani – um general iraniano. Mataram-no e disseram que “sim, nós matámo-lo”. O que é isto? Em que mundo vivemos?
• Ninguém jamais poderá ditar ao nosso povo que tipo de sociedade e sobre quais princípios esta deve ser construída.
• Os EUA não têm nada a oferecer ao mundo além do seu domínio.
• A Rússia não se considerava e não se considera inimiga do Ocidente.
• Sobre as paradas gay e a identidade de género: Não deverão tentar implementá-las em outros países.
• Na medida em que perde a supremacia, o Ocidente está-se a transformar numa minoria no cenário mundial. Se as elites ocidentais pensam que podem injectar tendências como paradas gay e dezenas de géneros nas suas sociedades, aí podem fazer o que quiserem, mas não têm o direito de exigir que os outros sigam na mesma direção.
• A Rússia pagou um elevado preço para destruir o ninho terrorista, alimentado pelo Ocidente, no norte do Cáucaso. Tentámos não olhar para trás, construir relações mesmo com aqueles que realmente trabalharam contra nós, desenvolver relações com todos os que o queiram – tanto com os principais países do Ocidente como com a OTAN. A mensagem era: "Vamos viver juntos, dialogar". Em resposta, recebemos um "não", uma pressão cada vez maior e a criação de focos de tensão nas nossas fronteiras
• A Rússia não está a desafiar as elites ocidentais, não nos desejamos tornar em hegemónicos.
• A Rússia não foi e nunca poderá ser destruída e "apagada" do mapa geopolítico.
• O Ocidente "empochou" as nossas reservas de ouro e divisas no estrangeiro
• Sobre as empresas ocidentais que deixaram a Rússia: “venderam os seus negócios em dólares às suas administrações e sussurraram nos seus ouvidos – não vai demorar muito e voltaremos em breve”.
• A economia e o comércio mundial devem tornar-se mais livres.
• Nos outros países a Rússia não constrói empresas, mas cria indústrias.
• Vale a pena pensar em mudar a estrutura do Conselho de Segurança da ONU para que este reflita a diversidade do mundo.
• A civilização ocidental não é a única, a maioria da população está concentrada no Leste.
• À nossa frente está a década mais perigosa e imprevisível.
• O colapso da URSS destruiu o equilíbrio mundial e tornou-se a razão da força do Ocidente.
• "O período de indisputado domínio do Ocidente nas questões mundiais está a terminar".
• Final do discurso
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