«Como a alta dos preços se tornara constante, certos sindicatos estavam permanentemente a solicitar actualização de salários de modo que, mal terminada a revisão de uma convenção colectiva, logo era introduzido o pedido de nova revisão»
- Marcello Caetano, "Depoimento"
A liberalização económica encetada no período Marcellista, e crepuscular do Estado-Novo (doravante apontado em ritmo acelerado ao Estado-Social), traduziu-se em várias medidas que, no entender do governante, visavam dinamizar a economia e modernizar o país - entenda-se, aproximá-lo mais do comboio europeu e do seu estilo de vida. O evoluir lento e consolidado da política Salazarista cedeu passo a um avanço urgente e trepidante, a toque de legislação, de Caetano. E aqui irrompe a principal clivagem entre ambos: a mesma que medeia entre a regra (e as sociedades regradas), e a lei (e as sociedades que resvalam para auto-fustigação legislativa). Estamos hoje fartíssimos de saber e experimentar onde conduz a governação à base da lexorreia desatada. Ora, o Marcellismo acumulou toda uma série de problemas, que, em muitos casos, redundaram em becos sem saída, quando não em panelas de pressão (como foi o caso do decreto peregrino que desencadeou a efervescência militar), muito por via desse "marcha-forçada" a decreto, que, instaurando a mudança brusca e obrigatória, criou sucessiva instabilidade, conflito e desequilíbrios súbitos que, catalizados numa pléiade de efeitos adversos, haveriam de conduzir ao clima propício à revolução.
Quando se refere o "viver habitualmente" do tempo de Salazar dá-se à coisa a conotação duma certa pasmaceira. O mundo todo a correr para os mais diversos paraísos e Portugal ali, pachorrento, a marcar passo no purgatório. Esquece-se ou encobre-se o que significa hábito, costume, maneira arreigada de estar e fazer. Talvez se recordarmos o termo gergo que o designa se perceba melhor: ethos. Pois, ethos, donde ética, o preceito da acção prática, o cimento de qualquer sociedade civilizada. Viver habitualmente significava viver de acordo a uma ética - e aqui no puro sentido aristotélico do termo, já que a ética que se procurava cultivar era a mesma que erguera o Império Britânico. Toda a imbecil confraria - de mentecaptos e deslumbradinhos militantes com o alógeno miraculoso - que critica, esganiçada e toinamente, o estado isolado do Portugal de Salazar, nem repara que foi o caso da Grã-Bretanha ser uma ilha, que sempre viveu à margem do continente e contra o continente, que lhe conferiu um carácter próprio, único e mais forte que o da chusma europeia. E que muito mais que a sua democracia parlamentar, que mais não serve que de máscara retórica a uma aristocracia efectiva, foi a sua maneira de ser distinta, arreigada e exclusiva que lhe granjeou a firmeza de carácter e de vontade que a alcandoraram, durante séculos, a uma posição - senão superior - decerto independente no mundo.
No "viver habitualmente" de Salazar , como em todas as sociedades onde a regra submete a lei, apostava-se nos valores de longa duração (que não eram, por essência, os materiais). E isso, essa hierarquia axiológica, estava bem delimitada e definida. Com Caetano, o panorama altera-se: à hierarquia sucede a amálgama - os valores espirituais passam a competir com os "valores de mercado". A verticalidade nacional começa a converter-se ao "horizonte europeu", ou seja, em vez de olhar mais acima, contenta-se em mirar ao lado. Como sentimento motriz nacional, a benevolência dá lugar à inveja. O querer acima descamba no desejar do vizinho.
Os exemplos desta hibridação com efeitos adversos são múltiplos e o prórpio Marcello os recapitula a posteriori...
Introduz legislção laboral («a possibilidade do recurso a uma jurisdição arbitral para decidir divergências na própria formação dos contratos colectivos»). Resultado:
«Os sindicatos, logo que saíu esta legislação, chamaram os seus advogados e prepararam-se para tirar dela todo o partido possível. Efectivamente, a maior parte das decisões arbitrais foi-lhes favorável. Isso fez com que as entidades patronais se queixassem amargamente do que consideravam resultado da inclinação das simpatias governamentais» ( in "Depoimento", pp 130)Depois desembaraçou as eleições sindicais da sanção governamental. Resultado:
«A libertação das eleições sindicais da sanção governamental levou o partido comunista a movimentar-se imediatamente em quantos sindicatos pode, para conquistar posições nos respectivos corpos gerentes. Dentro de pouco tempo estava formado um grupo de sindicatos a trabalhar concertadamente segundo as directizes do partido.» (idem, pp. 131)Bem, se eu abdicar da porta de casa e da jurisdição da polícia cá no bairro, os ladrões fazem uma festa. Mas Marcello, promoveu mais uma série de "amplas conquistas" do movimento sindical, graças à sua abertura...
«(...) à infiltração social-comunista nas direcções de alguns sindicatos, correspondeu a formação de um grupo intersindical muito activo na doutrinação e na acção, que organizou logo um núcleo de advogados, economistas e sociólogos para orientar o seu trabalho e se ligou a movimentos internacionais que o apoiavam com firmeza. E o espírito corporativo do sindicalismo português foi cedendo passo à concepção marxista, assistindo-se progressivamente á transformação dos sindicatos em inmstrumentos da luta de classes.» (ibidem, pp.132)Olha que admiração!...Qualquer semelhança com a panorâmica democrática pós-abrileira não é pura coincidência
E perante este quadro geral de resvalamento laboral, que fazia o santo e clarividente governo para obstar ao descalabro mais que previsível e galopante? Arfava prisioneiro do seu próprio labirinto legal. Um labirinto que ia tecendo e onde se ia extraviando cada vez mais, sem norte nem sorte. Marcello sintetisa-o:
«Havia leis gerais a fazer respeitar, um interesse superior a observar. Não era fácil fazê-lo compreender e acatar, mas tinha de ser.» (ibidem, pp.131)
Quer dizer, na sua receita de reformar por decreto, o bom Marcello patinava no logro de confundir "reformar" com "realizar" (um equívoco muito comum desde então), quando é certo e sabido que a realidade não se compadece com as imposições legais, ou seja, quando em vez de adequar a lei à realidade se demanda forçar a realidade à lei, a limite, nem a realidade se compadece, nem a lei serve ao fim para o qual foi imposta, mas apenas à perversão desse fim. O que, de resto, foi ainda mais clamoroso na famosa lei Sá Viana Rebelo, 353/73: em vez de resolver um problema premente de quadros no exército, lançou o granel, a zaragata e a conspiração nas fileiras, donde germinou o golpe de Estado militar). Depois, nesta lógica da asneira legal, e como referia Salazar que as asneiras também têm a sua lógica, umas levando inevitavelmente a outras, para corrigir a 353/73, atamancou-se a 490/73, que em nada acalmou a fervura e apenas a abençoou e reconfortou.
Por outro lado, com Marcello inaugura-se também a prodigalidade governamental com o dinheiro dos outros. A dinâmica intervencionista do Estado em várias áreas - assistência social, habitação social, construção pública, apoio ao funcionarismo público, etc - dispara. Marcello é eloquente a esse respeito:
«Não faço injúria a ninguém dizendo que o Ministério das Finanças era uma tremenda máquina de travagem de iniciativas. Em certos casos agia como freio necessário, concedo, porque um mês depois (e às vezes nem isso...) de aprovado o orçamento anual já os ministros começavam a enviar projectos com aumentos de despesa. Mas noutros, a paragem resultava de acumulação de serviço, de lentidão de métodos burocráticos e de...feitio das pessoas, porque ministros houve que correspondiam bem à imagem que um autor francês traçava dos titulares da pasta das Finanças: "os Senhores não". E um deles, que trabalhou com o Dr. Salazar, foi particularmente nocivo ao país. Tive a sorte de ter ministros das Finanças excelentes, cheios de espírito de colaboração comigo e com os colegas.» (ibidem, pp.142-143)
A última coisa que podemos duvidar é que não fossem, de facto, excelentes, os ministros de Marcello, segundo a sua perspectiva: a inflacção nos 10%, em 1972, antes do choque petrolífero, era prova cabal disso. João Dias Rosas e Manual Cota Dias, de seu nome, os ministros. O primeiro transitava do último governo de Salazar e converteu-se de pronto à liberalização e à internacionalização fogosa da economia.
O facto é que toda esta excitação Marcellista merece a Jaime Nogueira Pinto um balanço um tanto ou quanto desabonatório:
«Uma das caraterístivas do marcellismo foi a experimentação de novas fórmulas e modelos, os ensaios de peregrinas ideias e perspectivas, que nem sequer houve a coragem de levar por diante. Dominava um espírito de "lançar vinho novo em odres velhos", isto é, de utilizar fórmulas e justificações diversas, mantendo as estruturas institucionais e até as práticas políticas do antecedente. Nestes ensaios e tentativas o País foi a cobaia. Uma cobaia dócil, porque habituada a obedecer; e apesar de tudo, confiante. Sobre ele se debruçaram, com interesse clínico, as mais diversas eminências, recrutando o poder os fazedores de milagres que nos dariam, num quadro de autoridade e disciplina, a liberdade, a democracia, a paz, o progresso, a riqueza, a instrução, a Europa, o Ultramar...
Estas "experiências", que se saldaram quase sempre em fracassos retumbantes, ou se ficaram pelo impasse, quando surgiu um preço político ou foi necessário, com decisão, remover obstáculos, traduziram na sua essência, método e objectivos, a ambiguidade, oportunismo, e incompetência da Administração para realizar os seus próprios propósitos. Delas saíram arruinadas estruturas antigas, que não chegaram a ser substituídas; com elas se preparou caminho, pela confusão ideológica e institucional que trouxeram, pelo dispêndio de energias e bens em projectos inacabados, pela erosão da consciência e determinação do País, pelo acentuar e acelerar de divisões e confrontos, ao caos ideológico e intelectual aproveitado pelos comunistas no pós-25 de Abril.» (in O Fim do Estado-Novo e as Origens do 25 de Abril, pp.224)
O certo é que o cenário repete-se em todas as áreas. Segundo relatório do próprio Marcello. Por exemplo, na Saúde (um dos fetiches nacionais):
«Os meus Ministros da Saúde viram-se em sérias dificuldades para executar as leis que tinham criado e regulamentado, e a prosperidade da medicina ajudava a eclosão e manutenção do espírito contestatário, aliás tradicional entre os médicos em Portugal:» (in Depoimento, pp.145)
O país já tinha uma Guerra contra-subversiva em três frentes no Ultramar. Abrir mais uma frente , de múltiplas afluências, torvelinhos e interesses, na metrópole, não se nos afigura lá muito acautelado. Mas com a excitação do Poder o que é que um novo-rico não ousa? Defesa, Saúde, Trabalho... como não adentanhar também a Educação? E sai uma Reforma do Ensino, pelo inefável Veiga Simão. Resultado? O do costume. Ou melhor, o do costume contra a legislação romeira:
«Apesar da vontade reformadora do governo, de todas as complacências do Ministério, e da boa disposição da opinião descomprometida logo se começou a formar a oposição revolucionária à reforma. Que sim, que a intenção poderia ser muito boa, mas reformas que deixassem intacta a estrutura (burguesa...) não interessavam, e eram até contraproducentes. A esquerda, portanto, rompeu logo. E rompeu logo a direita, por causa do abandono de certas preopcupações educativas e de fórmulas tradicionalmente consagradas, e que se chocava com aquilo em que, na transigência com certas modas pedagógicas, pensava ver demagogia governamental. (...) O caso é que as intenções reformadoras se viram atacadas da esquerda e da direita, sem o apoio dos alunos e com a hostilidade dos professores.» (in Depoimento, pp.155)
Mas, afinal, o governo pretendiia governar à revelia das pessoas, que é como quem diz, dos governados? Mas que país imaginário governava então, desgovernando assim o país real? Que Portugal, embrulhado em papel fantasia, se demandava naqueles laboratórios frankenstoinos? Que princípe maravilhoso, com pleno assento europeu, se intentava reanimar daquele monstro inerte herdado do tartaruguismo precedente?
A lebre não pode responder, porque, depois de tão vigoroso sprint, deitou-se a dormir. E foi já em estado de sonambulismo que a removeram numa manhã de Abril.
Para terminar, um último relance à "revolução industrial" marcellista. E para aperitivo, sai mais uma reforma:
«Logo no princípio do meu governo fiz estudar a reforma do regime do condicionamento industrial e, mesmo dentro dele, a maneira de abrir o mais possível o mercade á competição interna. [E sai mais uma lei:] O ministro Dias Rosas preparou, assim, com a colaboração do Secretário de Estado Rogério Martins, uma proposta de lei de fomento industrial que foi discutida pela Assembleia Nacional e por ela aprovada em 1972 (lei nº3, de 27 de Maio).» (in Depoimento, pp.116)
E também uma reforma no "regime sério de fiscalização das sociedades anómimas" De modo a que os contribuintes não se furtassem ao pagamento das cada vez maiores obrigações sociais contraídas pelo governo (sabemos onde conduziu isto e em que pé está hoje). Marcello trazia a coisa bem premeditada, conforme explica:
«Era uma necessidade instante e dela tinha há muitos anos plena consciência. Por isso, mal chegado ao governo pedi ao Ministro da justiça que preparasse um projecto de diploma sobre o assunto (...) e fixar normas sobre os elementos a incluir nos documentos a publicar obrigatoriamente para a prestação anual de contas, caminhando-se no sentido de uma racionalização da contabilidade tal como é de há muito praticada nas sociedades de seguros» (Idem, pp.120)
E assim se pariu mais um decreto : o nº 49.381 de 15 de Novembro de 1969. Recepção dos pacientes? A do costume:
«Depois pacientemente executado, no meio da má vontade ou incompreensão da maioria das sociedades.» (ibidem, pp.120)
Entretanto, o afã industrial e reformador é de tal modo devoto que, em plena Assembleia Nacional, Teixeira Pinto, um antigo Ministro da Economia de Salazar, em resposta à exposição prévia de Rogério Martins na inauguração do Colóquio sobre Política Industrial, (em jeito de "prólogo a uma estratégia europeia"), propala um discurso contundente, onde diz, a certo trecho:
«A verdade é que parece haver timidez ao falar no Ultramar nos planos económico e financeiro; se se compreende que assim seja, se atendermos á divisão de competências ministeriais, já esta timidez ou respeito não se justifica ao nível exigido pela coordenação das economias. Pior será que a omissão do Ultramar em aspectos fundamentais da política económica corresponda a uma opção, que nem o eleitorado tomou, nem o interesse nacional autoriza. Aqueles que têm uma visão rectangular do País e procuram os grandes espaços no mercado ibérico ou, mais ambiciosamente, numa Europa que ainda não está realizada, deviam recordar-se das palavras do Sr. presidente do Conselho no jornal Figaro, onde se afirma, de modo inequívoco, que a opção europeia não pode sobrepor-se à opção nacional.(...)
Mas o principal problema é de natureza política, e é à luz dele que se devem estimar os resultados no plano económico. Até agora, no caso português, não dispomos de estudos, que eu conheça, sobre o problema, e para aqueles que, virando as costas ao mar, procuram uma integração peninsular ou continental, para esses só existem livros negros da nossa não participação no Mercado comum. Gostaria que os entusiasmos intervencionistas, as fúrias liberais ou os deslumbramentos europeus encontrassem base no estudo claro, ponderado, das nossas alternativas económicas e partissem dos factos essenciais da nossa escolha política.»
No que foi plenamente corroborado, mais tarde, em trabalhos da mesma Assembleia, por Franco Nogueira, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se insurgiu contra os que preconizavam um «política limitada e burguesmente europeia».
Rogério Martins, o secretário de estado vedeta da "revolução industrial", oriundo da CUF, foi acusado, durante a sua acção governativa, de ter favorecido interesses do grupo económico donde migrara em detrimento dos seus concorrentes. Quando deixou o governo, o Diário Popular (controlado pelo grupo Borges) publicou a lista dos alvarás que Martins concedera e onde isso ficava eloquentemente exposto.O que antecipa, sem sombra de dúvida, uma metodologia típica do "Centrão" desgovernante da futura democracia paralamentar.
Por tudo isto, desvanecem-se, não sem algum pesar, certas ilusões afectivas. Bem mais que um desenlace infeliz do Estado-Novo, o Marcellismo constitui vestíbulo e balão de ensaio da democracia paralamentar, em todos os seus avatares e manias, essa mesma que nos assiste e desgoverna desde Novemvro de 1975. Os nossos mandarinetes do PS e PSD mais não protagonizam que epígonos marcellóides, frustes e mentecaptos na comparação intelectual, mas igualmente excitados no reformismo peregrino e legisladeiro. Tanto quanto no exercício experimental sobre um país fantástico, extraído algures das sua tripa cerebral...apofântica. Todos juntos, Marcelo e os seus vis derivados (com a ajuda breve mas prestimosa de comunistas em apoteose), conseguiram liquidar um império, restaurar uma balbúrdia, consumar três bancarrotas e reduzir à mendicidade internacional um país outrora soberano.
Quanto a certos marcelleiros de arribação, cuja desmioleira frenética só é equiparável ao bojo fanático, parece que idolatram o fundador mas abominam a legítima seita prosélita. Para quem imagina amanhãs chilreantes numa espécie de Parque Marcellássico reciclado (sem pretos, nem pobres, nem salazaristas, nem poetas, e eleitores comunistas e socialistas banidos por decreto), não deixa de ser estrábico, tanto quanto alucinogénico, apostar no menos ortodoxo e fidedigno dos bandos (ultimamente até já duvidam de Santo Keynes, imagine-se...). Ilacção inequívoca: estamos perante o beatolas típico: vai à missa escutar o prior, mas acreditar, mesmo, só na bruxa.
PS: Nos últimos meses do governo de Marcello, emergia um dos presságios mais comuns das revoluções: "rondava esse homem invisível que trafica nas épocas de crise - o especulador." Lembro-me bem disso.
PS: Nos últimos meses do governo de Marcello, emergia um dos presságios mais comuns das revoluções: "rondava esse homem invisível que trafica nas épocas de crise - o especulador." Lembro-me bem disso.
2 comentários:
O Dragão daria um excelente jogador de poker. Tem sempre a melhor cartada quando vai a jogo.
Um post conclusivo.
O Draccon tem prestado um serviço inestimável a quem o lê.
Marcelo abre as portas à subversão, precisamente o inverso do que o José afirma.
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