quarta-feira, janeiro 21, 2015

Liberdadela, ou Da Liliputice ao Toys'r'us


«O que você nos opõe, Thérese, é que são sofismas - disse Coração-de-Ferro -, e não o que nos disse a Dubois. Não é a virtude o que sustenta as nossas sociedades criminosas, mas sim o interesse e o egoísmo;»
                                                         
                                                          - Marquês de Sade, in "Justine, ou os Infortúnios da Virtude"



Que qualidade e quantidade de liberdade é a nossa?
Livrámo-nos de Deus e, por arrasto, de embaraços morais, éticos e, ao nível director, até humanos. Perante o Além já não somos "menores", na terminologia kantiana. Bem pelo contrário, somos uns adultos do caraças. Ele que  guarde e embrulhe o paraíso e o inferno no céu, que nós agora estamos muito satisfeitos, emancipados e expeditos a construir o inferno e o patraíso na Terra. O paraíso para uns (segundo os últimos cálculos, cerca de 1º da humanidade; e o inferno (ou vá lá, por especial e temporária concessão daqueles, o purgatório) para os restantes 99%.  Porque haveria isso de nos causar escândalo? É o melhor dos mundos possíveis: afinal, 1% é muito melhor que 0. Em boa verdade, não são os super-felizes que são diminutos, os infelizes e super-infelizes é que são demais e estragam isto tudo. Fazem-se infelizes e fazem infelizes os outros. Se os deixassem, e as polícias, exércitos, jornais e televisões não velassem noite e dia, ainda eram capazes de causar algum tipo de infelicidade aos felizardos do condómino paradisíaco. Em todo o caso, sempre é formidável saber desta superioridade do capitalismo que  nos alumia sobre o socialismo que outrora nos ameaçou: entre sermos todos infelizes ou conseguirmos, apesar de nos esfarraparmos todos, que pelo menos 1% não seja, vai uma enorme distância.  Um admirável progresso! e sempre confere algum sentido ao nosso sacrifício colectivo. Além disso, pensar que isto é o fim da história e que encontrámos o regime definitivo, hermético e obrigatório chega a ser galvanizante, digo mais, redentor! Pelo menos para aqueles que ainda vão tendo algum tipo de trabalhinho e possibilidade de contribuir activamente para o progresso e o bem-estar dos nossos queridos Uns-por-cento!  Nem que seja até serem deitados ao lixo, sempre podem sentir-se úteis, relevantes e contributivos.
Já não somos, portanto, as crianças de Deus. Nem crianças nem  criados, ora essa. A nossa ciencia maravilhosa explica-nos que somos estilhaços duma explosão (daí a  tendência congénita para o entulho) e, concomitantemente, partículas à deriva no espaço, a cavalo em calhaus que boiam no cosmos, rodeados de atmosferas aprazíveis. Depois, desenvolve-se um vocabulário apofântico, junta-se água e já está.
Uma tal epifania, como é óbvio, não podia ser gratuita. Há sempre uma factura, meia dúzia de efeitos colaterias e outro tanto de sequelas menos asseadas. Escapa sempre qualquer coisa, algum micróbio recalcitrante e manhoso, à ultra-pasteurização das fonofacturas. Um luxo destes, antigamente reservado aos deuses, teria que custar, necessariamente, os olhos da cara... literalmente. Traduzindo: para que 1, da casta super-feliz, vislumbre a glória edénica, 99 dos outros têm que abdicar da própria visão. Isto, não obstante, vai muito além e supera as melhores expectativas do próprio filósofo teorizador desta estupenda engrenagem... Com efeito, o Marquês de Sade, ao magicar o seu aquaparque  sado-masoquista considerava que o suplício culminado na fatal hecatombe das vítimas (no léxico actual, colaboradores - forçados ou masoquistas) não resultaria na mais completa satisfação dos libertinos (no léxico actual, investidores ou players). Após um gozo parcial, estes experimentariam uma insatisfação recorrente que redundaria numa exasperação existencial bastante profunda. Ora, o Marquês, na época, estava circunscrito aos libertinos do seu tempo. Que, entre outras desvantagens, dispunham dum número bastante mais limitado de vítimas. Precisamente, o oposto dos nossos dias, em que os super-felizes auferem dum regalo incorruptível, já que podem dispor a seu bel-prazer dum número quase ilimitado de vítimas, digo colaboradores, alguns deles extremamente masoquistas e ultra-ansiosos de, por algum modo, o mais espalhafatoso possível, lhes agradarem. 
Falemos agora do mecanismo que processa todo este complexo, embora simples, jogo de interacções. Chama-se Mercado.
É uma espécie de Deus Artificial, bastante mais sofisticado que o Deus natural. Não admira, porque enquanto o Outro nos foi, de algum modo assaz brutal, suscitado pela natureza, este é produto perfeito não apenas da inteligência humana, mas do ser humano por completo, sobretudo vísceras, cloaca e goela. Daí que enquanto a Anterior nos amedrontava e nanificava, este, pelo contrário, locupleta-nos de generosidade, gáudio e voluntarismo. Generosos, no nosso sacrifíco  (que não é doravante absurdo) em prol da super-felicidade; gáudio, com a ampla ração de liberdade que nos cabe em sorte; e voluntários, na  forma como, por um lado, abastecemos o paraíso, e, por outro, como infernizamos a vida uns aos outros, de modo a produzirmos um espectáculo que obste, de algum modo, ao tédio e à monotonia que certamente se instalariam entre os super-felizes se à sua volta triunfasse uma qualquer pasmaceira global.
E assim, agora que temos um Deus criado por nós, a nossa criança amorosa, já faz todo o sentido que nos tornemos criados dele, de modo a que ele cresça e se torne cada vez maior. Só que ao contrário das nossas crianças naturais, que crescem até um limite e depois envelhecem e morrem, esta Super-criança nunca pára de crescer, nem envelhece, nem morre. Pelo contrário, é uma eterna criança, que cresce infinitamente, tal qual o conjunto dos números racionais e irracionais. O paraíso, já podemos agora entender, está reservado àqueles que brincam com a Super-Criança. E levam a Super-criança ao recreio onde a super-criança brinca com os outros todos - nós. Se fossemos todos a brincar com a super-criança, estragavamos a super-criança toda. Donde se compreende a necessidade de serem muito poucos a brincarem e muitos a servirem de brinquedo. Porque a super-criança cresce vertiginosamente e estraga, avaria ou enfada-se muito rapidamente com os liitle toys. Tal qual qualquer criança, de resto; só que em doses muito mais massivas e avantajadas.
Neste mundo há, pois, toda a liberdade. É inaudita, dum volume nunca visto, a liberdade do Mercado. Maior que ela, sòmente a liberdade dos que brincam com ele. Quanto à liberdade dos brinquedos é, ainda assim, significativa. Movem-se, na medida, em que participam no jogo e, requinte sublime, podem dizer o que lhes der na real gana, desde que não seja nos jornais, revistas ou televisões. Quanto ao pensamento, nem carecem de esterilização: eles tratam disso sozinhos. Vivem divididos entre a expectativa e o horror daquele dia glorioso em que a Super-criança acorda com o capricho cíclico de brincar... às revoluções.

13 comentários:

Vivendi disse...

"Livrámos-nos de Deus e, por arrasto, de embaraços morais, éticos e, ao nível director, até humanos."

Para sairmos da alegoria da caverna temos então de voltar a colocar Deus no centro da vida, praticar o bem comum e orientar a vida com respeito à tradição.

E quando assim for seguramente existirá alguém que pense desta forma.

«Devo à Providência a graça de ser pobre: sem bens que valham, por muito pouco estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos, riquezas, ostentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso viver, o pão de cada dia não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente. Nunca tive os olhos postos em clientelas políticas nem procurei formar partido que me apoiasse mas em paga do seu apoio me definisse a orientação e os limites da acção governativa. Nunca lisonjeei os homens ou as massas, diante de quem tantos se curvam no Mundo de hoje, em subserviências que são uma hipocrisia ou uma abjecção. Se lhes defendo tenazmente os interesses, se me ocupo das reivindicações dos humildes, é pelo mérito próprio e imposição da minha consciência de governante, não por ligações partidárias ou compromissos eleitorais que me estorvem. Sou, tanto quanto se pode ser, um homem livre. Jamais empreguei o insulto ou a agressão de modo que homens dignos se considerassem impossibilitados de colaborar. No exame dos tristes períodos que nos antecederam esforcei-me sempre por demonstrar como de pouco valiam as qualidades dos homens contra a força implacável dos erros que se viam obrigados a servir. E não é minha culpa se, passados vinte anos de uma experiência luminosa, eles próprios continuam a apresentar-se como inteiramente responsáveis do anterior descalabro, visto teimarem em proclamar a bondade dos princípios e a sua correcta aplicação à Nação Portuguesa. Fui humano».

Vivendi disse...

O Ricciardi no post anterior sobre a ascensão ao poder fora da democracia limita o acesso ao cargo à sucessão ou à sorte mas esquece-se da providência.

Foi sempre a providência que esteve do lado (desta quase milenar) nação nos momentos mais cruciais da sua história.

Vivendi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vivendi disse...

«A luz que intensamente se projecta na vida material, no desenvolvimento económico, nos aumentos indefinidos dos níveis de vida vai deixar na obscuridade toda a parte espiritual do homem, do que me parece dever esperar-se o tempo materialista por excelência, a época dos povos ricos sem alma.»

Um discurso que diz tudo...

http://viriatosdaeconomia.blogspot.pt/2014/04/erros-e-fracassos-da-era-politica.html

dragão disse...

Caro Vivendi,

e qual é o centro da vida?

Vivendi disse...

Deus

Vivendi disse...

Deus no amor
Deus na família
Deus na escola
Deus no trabalho
Deus na morte

Vivendi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
dragão disse...

Recordo a sua frase:
"temos que voltar a colocar Deus no centro da vida"

Se me diz que o centro da vida é Deus, então depreendo que temos que voltar a colocar Deus no...Deus?

Por exemplo, o Pedro Arroja defende que devemos voltar a colocar Deus no "centro do espaço público".
Insisto,pois: o seu "centro da vida" (da sua, minha, de todos nós, presumo) situa-se onde?

Ricciardi disse...

Em abstracto, caro Vivendi, até concordo consigo.
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Mas esse Deus barbudo da capela sistina ou aquele-outro que afogou egipcios, que dizem ser o mesmo, não é propriamente um Bem Comum. Será, quando muito, um Bem ou um mal Descomunal, dependendo da perspectiva.
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É o que é. Ele próprio disse a alguém que lhe perguntava quem Ele era, respondendo apenas: «Eu sou.». O que é propriamente, um tipo não sabe, a menos que Ele acabasse a frase.
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Um bem para uns e um mal para outros.
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Quer dizer para fazer bem a uns tem que fazer algum malzinho a outros. Porque é que não mandou um raio ao faraó em vez de engolir o exercito inteiro no mar?
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Para os soldados que estavam ali a ganhar o sustentozinho para a familia foi um mal. Para os judeus que se pisgavam terá sido um bem.
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Um bem, digamos, para esses judeus, mas bastou que moisés tivesse uma dúvidazinha para esse Deus castigar aquela malta toda durante 40 anos no deserto, sem GPS e, para rematar, disse ao moisés:

- Meu amigo vou deixar que mires jerusálem... ao longe. O teu filho que ocupe de novo a cidade da qual fosteis expulsos há 200 anos e conquistai mais terra à volta em meu nome.
-E o pessoal que lá está a morar Deus meu? não queremos confusões.
-Quê, os palestinianos?
-Quem são esses Senhor?
-Humm, enganei-me no tempo, esses vêm mais tarde, eu queria dizer: tirai de lá os muculmanos. Eu ajudo-vos quando for necessário. Estou aqui a preparar um soldado bué de forte - o Sanção.
-Quem são os muculmanos Senhor?
-Epá, estás a enervar-me. Tirai de lá os arabes e os assirios, porra.
-Oh obrigado Senhor pelo apoio, com estes lingrinhas que me acompanham não iamos lá.
-De nada jovem, estamos aqui para essas coisas.
-Estamos? És mais do que um, há mais deuses?
-Porra que és burro judeu sem eira nem beira. Qualquer dia arrependo-me de vos apoiar por causa da vossa incapacidade de ver para além da semantica. É uma forma de expressão palerma, que se vai usar no futuro, yá?
-Ah está bem, yá.
-Pronto, vai-te a eles. Chacina tudo.
-Criancinhas e mulheres tambem?
-Tudo. Não te esqueças de fazer uma casa para Mim.
- Com quantos quartos Senhor?
- Pode ser um T15, com duas salas de jantar, cinco de estar e um patio para vendilhões.
-O que são vendilhões Senhor?
-Cala-te, isto tem a ver com o capitulo 5 do meu Livro. Vais-te chamar Jeremias meu...
-Porquê Je-re-mias Senhor?
-Porque se Mias mais uma vez jure que te vou às trombas.
-Calar-me-ei Senhor.
-Agora vai que tenho de acabar capitulo nono do meu novo livro.
-Pode desvendar que capitulo é esse Senhor?
-Bem, portanto, ando aqui às voltas a ver como regressarão à terra que vos prometi.
-Mas já regressamos Senhor. Amanha lá estaremos com o Sanção que estás a produzir.

...
Rb

Ricciardi disse...

-Pois, mas vou vos tirar daí várias vezes, para dar emoção ao livro, e estou concentrado agora na parte em que voçês regressam dos quatro cantos do mundo, depois de um rapaz de bigode vos ter chacinado à brava. Passa a ideia, ou dá uma ideia profetica do futuro, Moisés, ao teu povo, daquilo que te vou contar dos capitulos do livro que escrevo.
-O que lhes digo, Senhor.
-Que eles são os escolhidos. O meu povinho preferido.
-Porquê?
-Por nada de especial, gostei de um filme do futuro onde um tal Kenu Reeves era o escolhido para recuperar a cidade de Zion ao dominio das maquinas.
-Hummm
-E como vai acabar a estória Senhor?
-Ainda não sei bem. Ando farto de recorrer à sistemática expulsão ou exílio. Estou a pensar em alternativas.
- Certo. Portanto, senhor, um gajo de bigode chacina o teu povo que está disperso pelo mundo, e Tu vais coloca-los de novo na terra que amanha vou reconquistar. E depois disso?
-Depois, bem, hummm, dá-me sugestões Moisés.
-Então, coloca à volta desta terra uma cortina de ferro, Senhor, para que não sejamos expulsos com tanta frequencia.
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-Bem pensado. Uma cortina de ferro, homem. Em inglês, um Iron D'ome. Isso. Boa ideia.
-Obrigado Senhor.
-Mas espera aí. Se colocar uma cortina de ferro como acabarei a estória? Vcs ficam ali sossegados e não sei bem o que escrever mais.
-Senhor, o ferro enferruja. Desfaz-se com o tempo...
-Sim, por falta de manutenção. Vou junta-los, fazer o Iron D'ome e depois tirar-lhes os recursos para a manutenção. Ides ficar aflitos e fugis novamente...
-Senhor. Fugir outra vez parece-me mal. Tens de ser mais criativo.
-O que sugeres?
-Olha, porque é que não podemos fazer as pazes?
-Que seca Moisés. Eu preciso de acção.
-Certo. Então, podes elevar o nível de ameaças. Uma tão grande que só mesmo um novo Escolhido, ou Messias, pode resolver a coisa.
-Hummm
-Sim, junta exercitos imensos do norte para derrubar a cortina de ferro, tira-lhes os recursos e os apoios, e depois colocas um salvador supremo. Mesmo no fim, quando a coisa estiver quase perdida.
- Sim, isso prende os leitores. É bom argumento para o guião.
- Obrigado Senhor.
- Depois, Olhe, pode pôr o Salvador a descer levitando-se por baixo das nuvens sob um céu vermelho...
- Isso, e porei uns arcanjos potentes ao lado a bater com as asas. Boa imagem. E depois, e depois?
- Depois, Senhor, dizimas o exercito do norte e todos os pérfidos.
- E como os conhecerei?
- Bota-lhes uma marca na mão ou na testa.
- Boa ideia.
.
Rb

Vivendi disse...

"temos que voltar a colocar Deus no centro da vida"

Se me diz que o centro da vida é Deus, então depreendo que temos que voltar a colocar Deus no...Deus?


Sim. Uma vida orientada para Deus. Basta olhar para as alminhas penadas que existem à nossa volta para entender o vazio onde elas caíram.

A trilogia Deus, Pátria (prefiro o conceito nação) e Família é infinitamente superior à trilogia Liberdade, Fraternidade e Igualdade.

Sugiro ainda este link:

Salazar, escolhido por Deus e pela irmã Lúcia

http://www.publico.pt/sociedade/jornal/salazar-escolhido-por-deus-e-pela-irma-lucia-132463

Anónimo disse...

É o que eu digo. Kenu Reeves e Salazar tem muita coisa em comum. Os dois escolhidos pela Providencia.AAmbos anunciados pelo oráculo. As duas únicas diferenças é q o primeiro salvaria portugal, o segundo a cidade de zion. O kenu detinha balas e suspendiasse no ar com os bracos abertos e o Salazar era mais bolos.
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Rb
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