segunda-feira, janeiro 12, 2015

Entre a monotonia e o pitoresco

No decurso desta descarga noticiosa que vem escorrendo dos atentados de Paris, sucedem-se os momentos e os depoimentos avassaladores. Vou enumerar apenas uma amostra - alguns recorrentes nestas ocasiões, outros deveras pitorescos e singulares.

1. Algures, o velho queixume: "Eles desprezam - ou atentaram contra - os valores da nossa civilização" .
Apetece logo perguntar: " como, mas eles atacaram algum banco?... Os tipos chacinados tinham dívidas à banca, pelo que, horror dos horrores, ocasionou-se um personal-default múltiplo que, por efeito dominó, ainda atenta contra uma qualquer bolha do crédito?..."
É que o estado actual da "civilização" das pessoas que geralmente gemem este tipo de lamúria consiste precisamente na liquidação geral dos valores milenares da civilização. Mesmo a tríade "iluminista" anda pelas ruas da amargura: liberdade, só vigiada e devidamente corrigida; igualdade, só perante o fisco e os sistemas organizados de extorsão pública; e fraternidade, Deus nos acuda! O preceito essencial agora é competitividade. Temos tiranias nacionais do Estado, a saque de quadrilhas, tirania transnacional sabe-se lá de quem (sob o pseudónimo de Mercado) e um ego descomunal ao volante de cada alminha, de modo a esterilizá-la de todos e quaisquer pensamentos altruístas, ou de qualquer outra ordem... Sobretudo, nada de pensamento! O pouco tempo "livre" que o indígena aufere, derrama-o nas "redes sociais", conformando-se à manada global. Sobre isto tudo, e de modo a cimentar e calafetar tudo isto, paira um qualquer papão de conveniência: ontem o comunismo, hoje o islamismo terrorista, amanhã chineses ou russos canibais. Portanto, temos uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é ao ataque de coisas que não existem. No fundo, um conjunto de novas superstições (do fundamentalismo democrático ao islamismo psicopata, passe a redundância) em luta violenta e furiosa contra as velhas religiões. :

2. A sempre peregrina ideia "temos de integrar as comunidades muçulmanas, se não elas viram-se para o terrorismo". Isto, manando das mesmas mentes e tribos que outra coisa não têm feito senão desintegrar e fragilizar as comunidades europeias. Vão integrar portanto os muçulmanos onde? Na nossa própria desintegração? É natural que eles prefiram não ser "integrados". Eu, no lugar deles, e não sendo propriamente simpatizante do grupo, também preferiria. Mas note-se a beleza do raciocínio: temos que integrá-los porque senão eles atacam-nos. Fraca perspectiva do outro, não? Serão assim  uma espécie de ciganos que convém mimar e afagar nos seus caprichos atávicos de modo a anestesiá-los de toda e qualquer turbulência congénita. Determinismo de vão de escada enxertado em iogurte rousseau fora de prazo, nem mais. Por outro lado, a mesma sociedade que não quer saber dos pobres - dos velhos, dos desempregados e de todo e qualquer incompetitivo em geral - para nada, vai agora cuidar maternalmente dos muçulmanos. Pois. A velha esquerda, pelo menos em tese, batia-se pela melhoria das condições de vida da maioria (já que a maioria constituía o grosso dos desfavorecidos); esta "nova-esquerda" decidiu borrifar-se para a maioria, é uma súcia que desdenha do seu próprio povo, que despreza a sua própria história,  é, enfim, o progressismo-turista-e-snob: primeiro a minoria, a seguir o estrangeiro de arribação, quanto mais exótico melhor; o resto logo se vê. 

3.  Finalmente,o momento Monty Python: a restauração da pena de morte, segundo a FN. Em primeiro lugar, não é preciso restaurá-la: ela já acontece quotidianamente em catadupa, mesmo em França. Ainda recentemente, foi subministrada pelos terroristas aos tipos do Charlie, aos coitados do supermercado e, logo a seguir, pela polícia aos terroristas. Traduzindo: houve primeiro uma subministração privada, na boa tradição do esquematismo liberal, e depois uma subministração pública, pelos representantes do estado. A segunda, portanto, com custos para os contribuintes. Falta apurar em quanto. Eventualmente, se o serviço de polícia estivesse outsourcizado a uma empresa de segurança privada, teria saído muito mais barato. Aliás, a pena de morte é o negócio mais explorado por este manicómi...., digo mundo, e arredores. Bem, mas o que a FN pretende, presumo, é a reintrodução da guilhotina e respectivo servente, da família Samson de preferência, para que se recupere, com a panache tipicamente gaulesa, o velho cerimonial da Praça de Grève. Ora, a pena de morte, segundo os apologistas, tem como intuito fulcral a dissuasão de crimes graves, pelo medo à pena capital. Como surge a propósito de um acto terrorista islamico, deduz-se que a ideia será meter medo aos terroristas, de modo a dissuadi-los firmemente de quaisquer ilícitos legais em França. Tipos que regra geral se fazem explodir com grandes cargas devem estar neste momento crivados de dúvidas e hesitações. A mim o que me intriga é como é que as autoridades de medicina legal vão conseguir, após a explosão, reconstituir o arcaboiço completo do facínora de modo a poderem, com ele, abastecer condignamente o carrasco.

Em resumo, uns a comenterem atentados contra algo que não existe; outros a restaurarem o que  mais abunda.

Os meus antepassados descobriram o caminho marítimo para a Índia. Visto daqui, já não constitui grande proveito ou reconforto. O que me encheria agora de enorme satisfação era descobrir o caminho para um qualquer outro planeta habitável... E emigrar para lá urgentemente. 

7 comentários:

zazie disse...

O momento Monnty Pyton da pena de morte

AHHAHAHAHAHAHA

Pois foi. Também me fartei de rir com essa anormalidade.

« Eventualmente, se o serviço de polícia estivesse outsourcizado a uma empresa de segurança privada, teria saído muito mais barato.»

AHAHAHAHAHAHHA

zazie disse...

« A mim o que me intriga é como é que as autoridades de medicina legal vão conseguir, após a explosão, reconstituir o arcaboiço completo do facínora de modo a poderem, com ele, abastecer condignamente o carrasco.»

Tuv fazias mesmo falta

":O)))))))))

Duarte Meira disse...

Grande texto, caro Dragão.

Na sua linha lógica, permita-me acrescentar apenas que a propalada "reintrodução" é consistente com agregados de gente ( já não "sociedades") que são abortórios quotidianos, onde milhares de seres humanos indefesos são quotidianamente mortos em sacrifício à molochiana "liberdade".
(E depois os "terroristas" são os outros....)

dragão disse...

E acrescenta muito bém, ó caro Duarte. Um Bom Ano para si (e para todos os ex-alunos do melhor e mais altivo liceu deste país: o nosso)

Zazie, não sei se fazia falta. Duvido. O que sei é que só ainda estou a desentorpecer as asinhas. :O))

Vivendi disse...

Mais um escrito genial.

Visitar o Dragão eleva a mente.

Encontramos uma escrita rara onde não se encontra em mais lado nenhum.


Anónimo disse...

Não sois monthy piton não senhor.
.
Rb

Anónimo disse...

Coisas que só um génio é capaz de prantar (Robert Heinlein):

When a place gets crowded enough to require ID’s, social collapse is not far away. It is time to go elsewhere. The best thing about space travel is that it made it possible to go elsewhere.

You can have peace. Or you can have freedom. Don’t ever count on having both at once.

Money is the sincerest of all flattery. Women love to be flattered. So do men.

Be wary of strong drink. It can make you shoot at tax collectors — and miss.

Don’t try to have the last word. You might get it.

Political tags — such as royalist, communist, democrat, populist, fascist, liberal, conservative, and so forth — are never basic criteria. The human race divides politically into those who want people to be controlled and those who have no such desire. The former are idealists acting from highest motives for the greatest good of the greatest number. The latter are surely curmudgeons, suspicious and lacking in altruism. But they are more comfortable neighbors than the other sort.

Abraços