quinta-feira, março 05, 2009

Apologia de Sócrates



Foi, sem sombra de dúvida, um momento de rara inspiração, o outdoor em epígrafe. Ainda mais vindo de quem veio. Pingou leite, o penedo. Mas foi igualmente um caso gritante de enormíssima injustiça.
Porque Sócrates prometeu e cumpriu. Apostaria mesmo que excedeu a promessa feita. 150 mil empregos parecem-me até escassos para a cornucópia aviada.
Não é, pois, Sócrates que mente: é o povo que, além de iliteracia simples, padece de iliteracia eleiçoeira. Ou seja, além de não entender patavina das promessas literárias, compreende rigorosamente nada das promoções eleitorais.
Ora, se Margarida Rebelo Pinto ou José Rodrigues dos Santos são duma semiótica básica, mais lhana e chã é a prosopopeia de Jota Sócrates. Assim, quando Sua excelência proclamou 150 mil empregos estava plenamente ciente e compenetrado do alcance e da fiabilidade da sua promessa. Ihavé aos Hebreus não seria mais garantido. Na verdade, Sócrates sabia até que seriam muitos mais, mas não queria arriscar o escândalo. Pois se com 150 mil já é o despautério que se assiste, faria se tivesse adiantado o número exacto - aquele que, na realidade, a cada novo ano é ultrapassado num galope recordista que só visto, pois contado ninguém acredita.
Já sei que os cépticos e pirrónicos do costume, os cínicos e plebeus da ordem vão desatar com as objecções e cognofelpúcias da praxe. Que todos os dias há milhares de empregados a perderem os respectivos empregos; que todas as semanas a percentagem de desempregados aumenta, blá-blá-blá, ó-da-crise, etc, etc. Mandam-me às estatísticas e a outras partes menos obscenas e pronto, julgam que terraplenaram gengiscanamente todo este meu imaculado e benemérito raciocínio. Pobres crianças! Tristes optaplégicos fanatizados!... Como o óbvio lhes escapa! Como o banal os escalfa e transcende!...
E, no entanto, é simples. Quantos militantes tem o Partido Socialista? Pelo último orçamento, se bem leio, andará pelos 73 mil, mais coiso menos coiso. Ora, cada militante ou militanta, já não falando nos militantinhos, tem mulher (ou marido, ou ambos), filhos, filhas, sobrinhos, tios, afilhados, amázias, mancebos, amigalhaços, netinhos. Além de toda esta tropa erariofágica, o militante ou militanta (e ainda mais o militantinho) alimenta ambições, arca despesas , contrai créditos bonificados. Uma multiplicidade de casas, carros, telemóveis e respectivas tripulações, anexos e recheios requer uma multiplicidade de empregos, de avenças generosas, de fontes diversificadas e optimizadas de receita. Acham que 150 mil empregos é inacreditável, vil mentira, torpe falsidade? Multipliquem 73 mil por três, no mínimo, e tereis 219 mil. 150 mil, portanto, terá sido só no primeiro ano. Ou semestre, se tanto. Há quantos anos e semestres se governa ele e, por simpatia, governa os rosas?
É assim mais que evidente - é clamoroso! - que a meta dos 15o mil não está apenas cumprida: está largamente ultrapassada. 150 mil foi só para acudir à cova do dente. Para satisfazer toda aquela Cova da Moura cor-de-rosa, Deus meu, as centenas de milhar que não foram depois disso e serão ainda nos próximos meses criados, inventados, retropropulsionados e distribuídos! Aquilo é fome de rato, senhores! Imune ao fastio tanto quanto à saciedade.
Mas lá voltam os belicosos e caprichosos da corda: que quando o desgraçado mencionava emprego significava, impreterivelmente, acudir ao desempregado. Ai sim? Bonito argumento. Desde quando, pergunto eu, desde quando é que criar emprego significa criar trabalho ou ocupação remunerada a outras entidades que não as pessoas, que é como quem diz os humanos cidadãos duma república? Decerto não subentende providenciar formas de assalariamento mensal a bichos, plantas ou calhaus. Ora, desempregado, em Portugal, e sobretudo nos últimos vinte anos, não é gente. Tão pouco é bicho, planta ou menhir. Para catalogar com rigor, é mais da ordem do fantasma, do espectro, diria mesmo, do zombi. Em tendo mais de 40 anos, então, a carta de despedimento devia valer simultaneamente como certidão de óbito. Entra automaticamente, o infeliz contemplado, em fila-de-espera para o Além. Por esta altura do campeonato, desempregado chega a ser pior que pobre, e ambos conseguem ser ainda mais detestados e objectos de repulsa que, outrora, o leproso medieval.
Donde que, caros leitores, os desempregados ou estão mortos (embora desenterrados), ou para lá caminham. Pelo que não faz qualquer sentido, e brada ao absurdo, gastar tempo ou medidas de qualquer tamanho ou espécie com eles. Era como lançar baldes de água gaseificada ao deserto. Imagine-se até que se dá emprego a um desempregado: transforma-se, milagrosamente, a criatura num monoempregado precário. Caso para dizer: pior a emenda que o soneto. Sai do desespero para passar a viver na angústia. E no ódio. Aos desempregados mais jovens que vagam, em estado de catalepsia social, prontos para substitui-lo e apeá-lo à mínima chance, concurso ou reestruturação.
O que nos transporta, já a talhe de foice, a esta pseudo-categoria de pseudo-empregados - aqueles indivíduos que têm apenas um emprego, geralmente precário, precoce ou periclitante. Lá está, assim como os desempregados estão em lista-de-espera para a morte, estes monoempregados estão em lista-de-espera para o desemprego. Vagam aqueles num estado de semi-mortos, transitam estes na qualidade de semi-vivos. Em termos técnicos: o desemprego representa o pré-óbito; o monoemprego vale como pré-desemprego. Infelizmente a velocidade de passamento do pré-desemprego é imensamente maior que a do pré-óbito, o que resulta num aglomeramento preocupante de ex-pseudopessoas (semi-vivos convertidos em semi-mortos) à espera de enterro definitivo. Mas julgo que a eutanásia, num futuro próximo, solucionará grande parte do problema. Primeiro, quase adivinho, através da modalidade autanasiante, com a disponibilização de salas de suicídio devidamente equipadas e assistidas. Depois, até aposto, com a criação da figura jurídica do "Aborto social", ou "interrupção voluntária do cidadão", em que a sociedade, pela mão do Estado, eliminará - com anestesia e em ambiente ultrapasteurizado -, os indivíduos excedentes, descartáveis e, em suma, resistentes à emigração. No futuro, a Ciência assim o abençoe e permita, não haverá desemprego.
Voltando, todavia, ao presente, compete reconhecer que Jota Sócrates é um ser arguto, solerte, longilúparo. Além de jogger exibicionista. Tosca, pois, com a maior das finuras e pitonisices (coadjuvado pelo Avô Cantigas, a Turbo-sopeira e o Gourmet da Porcalhota, que obstáculo - ou mero embaraço - poderá ainda detê-lo na sua meteórica ascensão aos céus?) que distribuir empregos por tipos que só sabem é perdê-los constituíria grosseiro desperdício. Sobra, então, quem? Os poli-empregados, naturalmente. Aqueles senhores que conseguem, em simultâneo, com engenho e arte, pilotar dois ou mais empregos, cargos e até reformas. Os mais ínclitos de todos eles alcançam mesmo o prodígio fascinante de acumularem várias reformas e cargos activos, de preferência nas administrações de empresas. Cargos activos, esses, que, entretanto, com aqueles dotes alquímicos que só os iluminados dominam, tratam de converter em novas reformas, pré-reformas ou suaves aposentações.
Ora, o emprego e a pastorícia têm bastante mais em comum do que aquilo que, à primeira vista, se poderia pensar. Têm quase tudo. Não vá mais longe, o leitor, e imagine o seu pequeno rebento... Vai entregá-lo ao cuidado diligente de profissionais, em redis apropriados, vulgo infantários, onde se agrega a rebanho similar, ou vai depositá-lo nas mãos obscuras dum qualquer desconhecido, vagamente amador, totalmente curioso, absurdamente pára-quedista e peregrino? Pois aí tem: idêntica lógica preclara avassala o Primeiro-Ministro Sócrates. Entrega os empregos, que tão prolífica e amorosamente cria, a quem? A quem deles cuida, a quem deles está habituado a cuidar, nutrir e retirar o devido rendimento, é evidente. Entregá-los em mãos descuidadas, imperitas ou negligentes é que seria, mais que imprevidência ou descaminho da coisa pública, autêntico crime de Lesa-Razão, Ciência e ética republicana.
Da mesma forma que eu não crio um filho para o entregar à lotaria do acaso, Sua Excelência, Jota Sócrates, não cria 150 mil empregos para os delapidar ao desbarato (passe a redundância) por 150 mil incógnitas ambulantes. Dar 150 mil empregos a 150 mil pessoas é multiplicar por 150 mil os factores de risco. Daí que seja muito mais racional, prudente e ético distribui-los apenas por 15 mil. E por 15 mil, sublinhe-se e negrite-se, já devidamente abastecidas, habituadas e sobrepujantes. Ou seja, 15 mil profissionais do emprego, do cargo, da sinecura. Em contraposição a 150 mil amadores do salário, do imposto, do fantascrédito. Significa isso, sem sombra de qualquer dúvida ou suspeita, reduzir dez vezes o risco, outras dez o perigo, e ainda outras tantas a vulnerabilidade.
Acresce ainda, ao nosso Jota, um pensamento digno de um Napoleão: eu crio 150 mil empregos para profissionais. Os amadores, cada qual que crie o seu.

Se o Sócrates grego se auto-cognominou o "moscardo de Atenas", este seu homónimo lusofónico devia intitular-se "a abelha-mestra da Porcalhota".




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