segunda-feira, dezembro 04, 2023

Panopticum e outras distopias



 «As taxas de criminalidade Americanas sempre foram mais elevadas do que a maioria dos países europeus. O que é novidade é o recurso nos Estados Unidos a uma política de encarceramento maciço, em substituição dos controlos comunitários enfranquecidos pelas forças do mercado desregulado. Ao mesmo tempo, os americanos ricos estão, em número crescente, a afastar-se da co-habitação com os seus concidadãos, recolhendo-se a propriedades comunitárias muradas. Cerca de 28 milhões de americanos -mais de 10% da população - vivem hoje em prédios ou condóminos com guardas privados.

Nos fins de 1994, mais de 5 milhões de americanos viviam sob uma forma ou outra de restrições legais. De acordo com os números do Ministério da Justiça (Department of Justice), cerca de 1,5 milhões estavam encarcerados - em prisões estaduais, federais ou municipais. Isto significa que 1 em cada 193 adultos americanos está preso, o que corresponde a 373 em cada 100.000 americanos. Este número era de 103 em 100.000 quando Ronal Reagan foi eleito presidente. 3,5 milhões de americanos estavam em liberdade condicional.
A taxa de encarceramento dos Estados Unidos no fim de 1994 era quadrúpla da do Canadá, quíntupla da da Grã-Bretanha e catorze vezes superior à do Japão. Apenas a Rússia pós-comunista tem uma percentagem maior dos seus cidadãos atrás das grades. Na Califórnia, cerca de 150.000 pessoas estão presas. A população da Califórnia na cadeia é agora oito vezes superior à de 1970. Excede a da Grã-Bretanha e a da Alemanha juntas.(...)
A confluência de divisões e antagonismos étnicos e económicos nos Estados Unidos não tem equivalente em nenhum outro país desenvolvido. O mercado livre produziu uma mutação no capitalismo americano, em consequência da qual ele se assemelha mais aos regimes oligárquicos de alguns países latino-americanos do que à civilização capitalista liberal da Europa ou dos próprios Estados Unidos em fases mais recuadas da sua história.(...)
Os níveis de todos os crimes de violência, excepto homicídio, são consideravelmente mais elevados na América do que na Rússia pós-comunista. Em 1993 houve 264 roubos por 100.000 habitantes (contra 124 na Rússia), 442 assaltos (comparados com 27 na Rússia) e 43 violações (9,7 na Rússia). (...)
O assassínio de crianças é particularmente comum nos Estados Unidos. Cerca de três quartos dos assassínios de crianças no mundo industrializado ocorrem nos Estados Unidos. Entre os 26 países mais ricos do mundo,os Estados Unidos têm de longe as maiores taxas de suicídio infantil e de homicídios e outras mortes relacionadas com armas de fogo.(...)
Em 1987, a mortalidade infantil no Harlem oriental e em Washington DC era praticamente a mesma que na Malásia, na Jugoslávia e na antiga União Soviética. Um bebé nascido em Xangai em 1995 tinha menos probabilidade de morrer no primeiro ano de vida, maior probabilidade de aprender a ler e uma esperança de vida dois anos mais longa (até aos 76 anos) do que um bebé nascido em Nova Iorque.
As elevadas taxas de encarceração e de crime nos Estados Unidos estão acompanhadas por números igualmente excepcionais de litígios e de advogados. A América tem pelo menos um terço de todos os advogados do mundo.(...)
Os condóminos privados, murados, fechados e vigiados electronicamente que protegem os habitantes dos perigos da sociedade que abandonaram são a imagem das prisões americanas. Erguem-se como símbolos do esvaziamento de outras instituições sociais - a família, a vizinhança e mesmo o emprego - que no passado suportavam o funcionamento da sociedade. A combinação de prisões de alta tecnologia e empresas virtuais pode tornar-se o emblema da América dos inícios do século XXI.
Na América do fim do século XX, o mercado livre tornou-se o motor de uma modernidade perversa. O profeta da América de hoje não é Jefferson ou Madison. E ainda menos Burke. É Jeremy Bentham, o pensador iluminista britânico do século XIX, que sonhava com uma sociedade hipermoderna reconstruída segundo o modelo de prisão ideal
                                     - John Gray, "False Dawn"

É deveras sintomático que muito antes do Big-brother na hiper-vigiada distopia de Orwell, o paradigma da engenharia ultra torcionária tivesse germinado com Jeremy Bentham, no seu famigerado Panopticum. Tratava-se, basicamente, duma arquitectura de vigilância perfeita - uma construção circular em volta dum "óculo central" que tudo perscrutava em modo permanente e subtil (nunca sabiam os vigiados quando o "olho " os contemplava activamente). É difícil imaginar uma "utopia" menos livre ou natural (quanto a "humana", o termo é seguramente discutível, dadas as estarrecedoras evoluções do mesmo). A mim, pelo menos, dá-me volta ao estômago. Todavia, e muito compreensivelmente, o Panopticum foi mandado traduzir e publicar, como obra mui educativa, em 1791, pela Assembleia Nacional, dos revolucinhários franceses. Mas estas bestas vão ainda mais longe: em 1792, concedem mesmo a cidadania a Bentham - e a mais 17  outros insignes  estrangeiros, "amigos da liberdade e da fraternidade universal que empenharam os seus braços e as suas vigílias no banimento dos preconceitos da terra», todos eles. É claro que para tão distinto prémio, não terá contribuído menos o seu peregrino cunhamento do termo "internacional" no seu "Plan for an Universal and Perpetual Peace", onde preconiza a "criação duma Dieta europeia, a redução das forças militares e a emancipação das colónias". Esta ideia duma "paz perpétua", segundo os princípios da razão, já a encontramos em Kant (tanto como, noutros moldes e variações, em Herder, Proudhon, Fourier, Saint-Simon et al) e o seu alcance profundo alveja, a limite, um "governo mundial" supranacional, ou melhor dizendo, "um estado federal planetário" panoptimum (e panopticum), ao leme duma "cosmopolítica". Esta ideia fervilha durante a própria Revolução Francesa que, a partir dum dado momento, já se antevê como o episódio inaugural duma Revolução Universal. Um dos seus principais arautos é um barão alemão convertido à nova cegada, um tal Cloots, deputado à Convenção (que se auto-alcunhou, entretanto, de Anacharsis). Palhadina furiosamente, com o fervor dos esquizofrénicos, pela república universal (qual Trotsky avant la lettre). Do mal o menos: imaginem só, será o próprio Robespierre a acabar-lhe com o circo. Eventualmente irritado não sei se tanto com a ideia alucinada, se com o  inusitado protagonismo. Mas a semente fica. E não mais parou de desabrolhar.
Do Panopticum, falta apenas referir que foi congeminado pelo autor como modelo ideal para prisões, hospitais e escolas. O futuro é o principal cúmplice das distopias. 

2 comentários:

Vivendi disse...

A suposta terra da liberdade com a maior taxa carcerária do mundo foi algo que nunca bateu o tico com o teco e sobre a suposta superioridade moral perante o resto do mundo.


https://o-tradicionalista.blogspot.com/2023/09/populacao-carceraria-no-mundo.html

muja disse...

modelo ideal para prisões, hospitais e escolas

Ou, por outra ordem: escola, prisão, hospital.

O tríptico e carrossel da utopia em pugresso desde mil setecentos e troca o passo. Todos lá andam, embora alguns saltem uma ou várias etapas...

Se não resume tudo, resume quase tudo...