terça-feira, fevereiro 28, 2023

O absurdo enquanto dogma



 


«Há mais honestidade e rigor nas ciências ocultas do que nas filosofias que atribuem um "sentido" à História.»

E.M.Cioran


Todas as pseudo-filosofias mais ou menos políticas  (até porque na essência e na dinâmica são todas anti-políticas e, sobretudo, filosofóbicas), da hora presente, mais até que atribuir um sentido, investem em impor uma explicação exclusiva: a sua. Esse impor tem a forma dum ditar. A História, conforme está a ser forjada, não recolhe dados dos acontecimentos ou organiza registos dos factos. Antes os antecipa e decreta: na forma duma ditadura da narrativa. Quer dizer, a Historia não funciona como ficção a posteriori, derivando de factos (como de resto seria da sua natureza funcional), mas como ficção a priori - e a priori no exacto sentido que Kant lhe dá: independente da experiência. Ou seja, já nem interpreta os factos: inventa-os; engendra-os previamente; e apresenta-os como pseudo-realidade - nem sequer alternativa, mas obrigatória. Passa, assim, de ciência social a ciência exacta, tão exacta como a matemática e - mais exorbitante ainda - tão absoluta como um dogma religioso.

Esta orto-história tem como fontes -  mais ainda que principais - exclusivas a boca de esgoto da propaganda reinante. Em rigor, este não é um fenómeno absolutamente novo, ou inaugural; mas o nível abrasivo e devastador de completa enxurrada em que se manifesta, esse, é que é dum viço inaudito. Até pela esmagadora panóplia de meios disponíveis para o efeito. E convém ainda acrescentar que se vem instalando e desenvolvendo a níveis paroxísticos sobremaneira no pós-2ª Grande Guerra Mundial.

Curiosamente, a origem do termo "propaganda" é deveras sintomático e anunciador. No ano de 1622, o então Papa Gregório XV institui a Congregatio Propaganda Fide, ou seja, a Congregação para propagação da fé. É dessa  propaganda  original que devêm todas as outras. Sendo certo que no nosso tempo já a coisa se deteriorou a vastíssimos níveis. A fé cedeu passo às múltiplas fezes e, no infrazénite, geralmente fétido, de todas elas, a fezada do momento. Tudo somado: estamos no avesso da propaganda original. Não apenas seu contrário, mas grotesca macaqueação.

No entanto, qualquer disputa, dúvida ou desvio dessa escatologia dogmática instalada continua a ser tratada como "heresia", "blasfémia!", "apostasia". Super-heresia, aliás, e tanto  mais quanto a Congregação para a Doutrina da Fé Laica, ultra-laica e Laica gigante, doravante dispõe de meios de vigilância, tortura e inquisição imensamente mais activos, invasivos e eficazes, continuando a subministrar, após auto-de-fé instantâneo (e efervescente), as penas de excomunhão (vulgo desemprego), queima em praça pública (vulgo cancelamento) ou pelourinho (com auto-flagelação e retratação pública, descalço).

Nos primórdios da blogosfera havia um blogue (o Anarca Constipado) que tinha um sub-título que sempre considerei o mais bem esgalhado de todos: "A situação é desesperada mas não é séria". Aplica-se, com a devida deferência, que nem uma luva à orto-história actual, ou seja, à propaganda da Fé Laica, ultra laica e laica gigante: é desesperada, cada vez mais desesperada, raia já o ponto do exaspero libertino... mas não é séria. Nesse sentido, desce mesmo abaixo do nível das filosofias "históricas" - os hegelianismos e seus derivados, entenda-se -: não demanda sequer atribuir um qualquer sentido à História, mas apenas confiná-la num completo sem sentido, isto é, num absurdo. 



3 comentários:

Anónimo disse...

Esse Escher retrata bem a realidade que agora vivemos . Não sei se chegou a abrir o vdd que disponibilizei , o Zé Bidé sem rebuços a dizer que não obstante ser branco , é suficientemente esperto .

dragão disse...

Abri, sim. O Zé Bidé declama o que lhe põem à frente.... :O)

dragão disse...

...ou bichanam ao ouvido, por radioponto.