terça-feira, setembro 22, 2015

A Inanidade atávica

Podem experimentar uma pequena actualização do texto que se segue procedendo ao simples exercício de substituir a palavra café por "blogue", ou, melhor ainda, "twitter", "facebook", "rede social"... E quem diz café, diz botequim, etc.

«Em Portugal um literato do qual se propale que estuda fica por este meio desacreditado perante a crítica e perante o conceito público. tem-se em Lisboa a respeito do trabalho intelectual a estranha opinião de que só trabalha quem não tem talento. E daqui chegam às vezes a deduzir que tem talento todo aquele de quem se prova que não trabalha.
Assim as sólidas e incontestáveis reputações de capacidade de espírito fazem-se nos botequins. 
A imortalidade - do Loreto ao Rossio - repousa entre as dez horas e a meia-noite num banho de cerveja de pipa.
A fonte da ciência na Baixa é o pote do Martinho.
Os moços do café Central, se lhes pedirdes uma celebridade literária, virão chamá-la à rua como se chama um trem.
No Grémio supõe-se que não sabem ler nem escrever os sujeitos que não passam ali a noite, a fumar, até às duas horas.
Ainda havemos de ver indivíduos atestarem os seus merecimentos literários por esta forma: "Fulano de tal, bacharel formado em direito e freguês do Áurea!
Apareça um temerário que se atreva a suspeitar do talento alguém que passe a noite em casa.
Oh! - responde-lhe logo o côro da opinião - é um bruto de estudo, é um quadrúpede de trabalho, é um carnívoro de leitura!
Segundo esta convicção essencialmente nacional, a ociosidade é a mãe do génio. O Chiado, supremo aferidor da legitimidade dos nossos direitos perante a fama, só nos entregará de boa mente aos braços da glória depois de se encher de razão para afirmar do eleito: "Aí tendes de quem não se consta que abrisse livro."
 - Ramalho Ortigão, in As Farpas

Seguidamente, e na continuação do mesmo texto, o leitor já não precisa de proceder a qualquer adaptação: o texto é plenamente actual.

«Um dos escritores que o público mais violentamente deprimia com as ilacções dêste critério era o sr. Pinheiro Chagas.
Este literato procedia realmente de um modo verdadeiramente irritante para a consideração do público! Como orador principiou por falar em uma série de conferências organizadas pelo sr Andrade Ferreira: discurso estudado!
Falou mais tarde no Grémio: discurso estudado!
O público, que principiara por escutá-lo com a mais benévola curiosidade, de desilusão em desilusão, veio finalmente desprezá-lo: êle estudava sempre!
Deputado na presente legislatura, chamado a intervir com a sua palavra na direcção dos negócios públicos, nesse momento solene de trocar a toga pretexta pela toga viril, o jovem orador resolveu conciliar-se com a pátria que o elegera propugnador dos seus foros, e proferindo o seu primeiro discurso político no dia 6 do actual mês de Setembro, o sr. Pinheiro Chagas, representante do povo, provou brilhantemente que era tão capaz como qualquer outro de ignorar da maneira mais profundamente patriótica o objecto de que se tratava.
A pátria reconhecida jubilou ao sentir palpitar em seu regaço o coração dêsse filho ingrato que por algum tempo se homiziara na reflexão e no recolhimento. Ele finalmente não estudava!
O ilustre deputado tinha inimigos na Câmara; os seus precedentes justificavam honrosamente a desconfiança e a animadversão. O discurso a que aludimos foi um repique de pacificação universal. O orador foi cumprimentado afectuosa e sinceramente pelos senhores deputados de todos os partidos.
Nesses abraços e nesses apertos de mão a Câmara cumprimentava-se a si mesma: - tinha mais um cúmplice..»
-  Ramalho Ortigão, in As Farpas

2 comentários:

PERGUNTADOR disse...

Veja isto Dragão.
Ao ponto a que estes cães chegaram...
E vai acelerar cada vez mais...
Imagine isto partilhado, visto em escolas, escolinhas, escolonas etc.
E também parvos gajas histéricas e por aí adiante...
O rítmo alucinante da lenga-lenga, de forma a paralizar qualquer raciocínio, como a mordedura de uma cobra extremamente venenosa.

https://www.youtube.com/watch?v=RvOnXh3NN9w

dragão disse...

isto parece tudo menos espontãneo, ou é só impressão minha?...