I
«À concepção do trabalho-penitência substitui-se a ideia do trabalho como meio positivo de salvação. Como não sentir, por detrás, deste impulso de um novo mundo monástico, a pressão das novas categorias profissionais - mercadores, artesãos, trabalhadores desejosos de encontrarem, no plano religioso, a justificação da sua actividade, da sua vocação, a afirmação da sua dignidade e a garantia da sua salvação, não apesar da sua profissão, mas precisamente através dessa mesma profissão? A projecção destas aspirações no universo hagiográfico é, ainda aqui, esclarecedora. Em princípios do século XIII, o tempo dos santos-trabalhadores está já em vias de ceder o lugar ao tempo dos trabalhadores-santos.
Há mais. Esta nova espiritualidade do trabalho, como é normal, tende a enraizar-se numa teologia do trabalho. Deveremos procurar o esboço desta teologia nos comentários do Génesis, comentários que se esforçam por demonstrar que o trabalho tem as suas raízes positivas em Deus, porque: 1.º a obra do Criador (e haveria que seguir o desenvolvimento do tema do summus artifex ou summus opifex) foi um verdadeiro trabalho - trabalho superior, sublimado, criação, mas com todas as suas penosas consequências: um labor de que Deus teve de descansar ao sétimo dia. Deus foi o primeiro trabalhador. 2.º O trabalho, um certo trabalho (a definir no sentido de uma manutenção) havia sido dado ao homem, a Adão, como vocação antes da queda, pois Deus havia-o posto no Paraíso para que o trabalhasse e o conservasse (Gen. 2, 15-16). Antes do trabalho-penitência, consequência do pecado e da queda, houve um trabalho feliz, bendito por Deus, e o trabalho terrestre conservou algo do trabalho paradisíaco anterior à queda.
Não é de admirar que, nesta conjuntura, o esquema tripartido da sociedade deixe de estar adaptado às realidades sociais e mentais. [...]
Há, sem dúvida - e é até capital para que as novas categorias socio-profissionais recebam direito à vocação -, permanência e mesmo reforço da concepção unitária da sociedade cristã. Porém, o corpus cristão estrutura-se - e esta estruturação faz-se a partir da função, da profissão, do mester. O corpus já não se compõe de ordens, como na sociedade sacra da Alta Idade Média, mas sim de estados, entre os quais pode haver, e há, efectivamente, uma hierarquia mas uma hierarquia horizontal, não vertical.»
- Jacques Le Goff, "Para um novo conceito de Idade Média"
Atente-se como a transformação do trabalho - de ocupação indigna, típica de escravos ou penitentes, na Antiguidade e Alta Idade Média - em via de salvação, no século XII, antecipa toda uma série de romarias hagiofóricas decorrentes, desde os protestantismos aos marxismos, passando pelos positivismos, liberalismos, cientismos e tecnolatrias afins.
Nesta fase inicial, o trabalho tornar-se-á possibilidade de salvação; mas posteriormente, sobretudo no pós-revolução francesa, devirá condição de liberdade. Nisso, aliás, e tão curiosa como significativamente, capitalistas, comunistas e nazis concordarão: "O trabalho liberta".
Entretanto, à boleia do trabalho, avança o dinheiro. Como Le Goff, na mesma obra, expõe eloquentemente:
«Antes do século XIII, no Ocidente Bárbaro, todas as actividades remuneradas eram atingidas pelo opróbio que se aplicava às categorias ditas mercenárias. Era indigno tudo o que se pagava, tudo o que se comprava. A honra ou o dever definiam-se por serviços, de cima para baixo e reciprocamente. O dinheiro, economicamente marginal, era-o também do ponto de vista moral. A sociedade cristã da Alta Idade Média reforçava-se nesta crença ao ver o sector monetário "infestado" de judeus. A comercialização e o salariato continuamente em progressão transformam os valores.
Duas categorias, dois mesteres conduzem esta transformação.
Primeiramente, os professores. Antes do século XII, a ciência e a cultura eram apanágio de clérigos que a adquirem e a dispensam parcimoniosamente, sem gasto de dinheiro. Escolas monásticas ou episcopais formam disciplinas para o opus Dei, que não se mercadeja.
Com as escolas urbanas do século XII, arrastadas pelo desenvolvimento das cidades, animadas por mestres que devem, tal como os alunos, encontrar maneira de viver com o que têm, as condições materiais, sociais e espirituais do saber são profundamente transformadas. Este é o sentido do debate que a partir de meados do século XII se instaura em volta de uma fórmula: a ciência é um dom de Deus e não pode por isso ser vendida. Pouco importa aqui saber que possibilidades de remuneração se oferecem aos novos mestres e que soluções se encontrarão: salário público, remuneração dos clientes, isto é, dos estudantes, benefícios eclesiásticos. O essencial está em que à pergunta Os mestres podem licitamente receber dinheiro dos estudantes?, os manuais de confessores, eco da prática e da opinião, respondem pela afirmativa.
Paralelamente, levanta-se a questão dos mercadores, no domínio do crédito, onde a expansão da economia monetária afasta, para segundo plano, os judeus, confinados a operações de empréstimos de importância restrita. Há, a partir de então, o problema da usura cristã. O juro, sem o qual a economia monetária pré-capitalista não poderia desenvolver-se, supõe, em termos escolásticos, uma operação maldita até então: a venda do tempo. Exactamente simétrico da comercialização da ciência, põe-se o problema da comercialização do tempo, aos quais se opõe uma mesma tradição, uma mesma fórmula: O tempo é um dom de Deus e não pode por isso ser vendido. E, ainda neste caso, acompanhada sem dúvida de precauções, duma casuística restritiva, dá-se uma resposta favorável, que encontramos nos manuais de confessores.»
O intelectual eclode, assim, como comerciante da ciência, mercador de ideias, profissional glossúrgico. E até aos dias de hoje poderemos acusá-lo de tudo excepto de infidelidade à sua matriz.
Em pormenor, de como se constitui, não só em inversão, mas sobremaneira em aversão ao filósofo antigo, tentaremos dilucidar no próximo postal.
II
Aristóteles teve, entre muitos outros, dois méritos relevantes: compilar a tradição que o precedeu e fundar o melhor da tradição que lhe sucedeu.
Ora, de Aristóteles, como posteriormente de Cristo, vinha uma ideia negativa de negócio e de dinheiro que atravessou toda a Alta Idade Média e chegou ao século XII. O evangelho será claro no seu "não podes servir a Deus e ao dinheiro" e o filósofo grego, na sua Ética a Nicómaco, antecipava:
«Quanto ao homem de negócios, é um ser fora da natureza, e está bem claro que a riqueza não é o bem supremo que procuramos."
Ora, de Aristóteles, como posteriormente de Cristo, vinha uma ideia negativa de negócio e de dinheiro que atravessou toda a Alta Idade Média e chegou ao século XII. O evangelho será claro no seu "não podes servir a Deus e ao dinheiro" e o filósofo grego, na sua Ética a Nicómaco, antecipava:
«Quanto ao homem de negócios, é um ser fora da natureza, e está bem claro que a riqueza não é o bem supremo que procuramos."
O bem supremo, aproveito para adiantar, era a sabedoria; que, por incrível que pareça, coincidia com a liberdade. Hoje, graças a mil pregadores sebentos e milagres outros tantos, sabemos perfeitamente que não é assim - decoramos e salmodiamos a todas as horas que o dinheiro é que liberta, que a riqueza é que santifica, que a nababice é que salva-, mas naquelas épocas ignaras e obscuras ainda não era assim. Homem sábio equivalia a homem livre - já que, sendo a única ciência autenticamente livre, só a sabedoria consagrava e dignificava o homem inteiro. Não é por acaso que Alexandre, o Magno, discípulo de Aristóteles, prestará homenagem a Diógenes, o Cão. Apoveito para relembrar o célebre diálogo entre ambos, como penso que dever ser relembrado:
Alexandre - Pede-me o que quiseres, que mandarei dar-to!...
Diógenes - Peço-te que não me tires aquilo que não me podes dar! (a luz do sol)
Alexandre - Não sou eu que te faço sombra.
É caso para dizer que, mais que um diálogo entre dois homens livres, estamos perante uma conversa entre dois sábios. Um que pode entregar-se ao saber por já ter quase tudo o que um homem pode ter, designadamente a servidão de quase todos os outros, e outro por não precisar de quase nada e não servir a ninguém. Momento sublime, este, que perdura pelos séculos e faz as delícias de todos aqueles, felizmente poucos, que, como dizia o nosso Agostinho da Silva, amam, mais que o ortodoxo ou o heredoxo, o paradoxo. Sensivelmente o mesmo que o velho Heraclito cognominava de Logos e atribuía à tensão entre os opostos. Tensão, que é como quem diz: música. O que, assim de repente, nos transporta a uma evidência que lego desde já aos vindouros: toda a lógica que não seja música é mero ruído.
Maravilhemo-nos apenas mais um pouco com as Magnas palavras de Alexandre: "Não sou eu que te faço sombra..." Isto é, eu que estou, aparente e efemeramente, de pé, diante de ti, aparente e efemeramente prostrado, afinal estou mais baixo que tu. Na verdade, és tu que me olhas de cima, do alto. Alexandre, recorde-se, que todos os Césares, Napoleões e Hitleres, lá bem no fundo, invejaram e cujo império tentaram emular. Embora não tenham carecido de exércitos nem de armas para o efeito, faltou-lhes sempre o essencial: a sabedoria de Alexandre. A sabedoria e, condição dela, a liberdade.
O que explicarei com detalhe já de seguida, retomando o fio à meada. Como vinha expondo, para Aristóteles, só o homem não tolhido ou coarctado por qualquer necessidade ou utilidade podia dedicar-se à sabedoria. Esta proporcionava-se, pois, enquanto sublimação do ócio. Só o ócio permitia a sabedoria, que é o mesmo que dizer só o ócio prefigurava a liberdade.
Alexandre - Pede-me o que quiseres, que mandarei dar-to!...
Diógenes - Peço-te que não me tires aquilo que não me podes dar! (a luz do sol)
Alexandre - Não sou eu que te faço sombra.
É caso para dizer que, mais que um diálogo entre dois homens livres, estamos perante uma conversa entre dois sábios. Um que pode entregar-se ao saber por já ter quase tudo o que um homem pode ter, designadamente a servidão de quase todos os outros, e outro por não precisar de quase nada e não servir a ninguém. Momento sublime, este, que perdura pelos séculos e faz as delícias de todos aqueles, felizmente poucos, que, como dizia o nosso Agostinho da Silva, amam, mais que o ortodoxo ou o heredoxo, o paradoxo. Sensivelmente o mesmo que o velho Heraclito cognominava de Logos e atribuía à tensão entre os opostos. Tensão, que é como quem diz: música. O que, assim de repente, nos transporta a uma evidência que lego desde já aos vindouros: toda a lógica que não seja música é mero ruído.
Maravilhemo-nos apenas mais um pouco com as Magnas palavras de Alexandre: "Não sou eu que te faço sombra..." Isto é, eu que estou, aparente e efemeramente, de pé, diante de ti, aparente e efemeramente prostrado, afinal estou mais baixo que tu. Na verdade, és tu que me olhas de cima, do alto. Alexandre, recorde-se, que todos os Césares, Napoleões e Hitleres, lá bem no fundo, invejaram e cujo império tentaram emular. Embora não tenham carecido de exércitos nem de armas para o efeito, faltou-lhes sempre o essencial: a sabedoria de Alexandre. A sabedoria e, condição dela, a liberdade.
O que explicarei com detalhe já de seguida, retomando o fio à meada. Como vinha expondo, para Aristóteles, só o homem não tolhido ou coarctado por qualquer necessidade ou utilidade podia dedicar-se à sabedoria. Esta proporcionava-se, pois, enquanto sublimação do ócio. Só o ócio permitia a sabedoria, que é o mesmo que dizer só o ócio prefigurava a liberdade.
Uma passagem memorável da "Metafísica" proclama-o com todos os is: «Mas aquele que se confronta com um problema ou se admira, reconhece a sua ignorância. De modo que se filosofaram para fugir à ignorância, é claro que buscavam o saber tendo em vista o conhecimento e não por uma qualquer outra utilidade. O que se comprova pelo facto de terem começado a demanda da sabedoria quando já dispunham de todas essas coisas necessárias e relativas ao repouso e ao ornamento da vida. É pois evidente que não a procuramos, à sabedoria, por nenhuma outra utilidade, mas apenas porque assim como chamamos homem livre ao que é para si mesmo e não para outro, assim consideramos esta como a única ciência livre, pois sòmente ela é para si mesma.»
Note-se, assim, que a sabedoria, em Aristóteles, não é uma condição da liberdade: é uma consequência. O Homem não se liberta através da sabedoria: procura a sabedoria porque é livre. Esta não é promessa, mas exercício de liberdade. Melhor ainda: expressão. A sabedoria é o horizonte mais nobre de expressão da liberdade humana. Estamos, pois, nos antípodas do nosso tempo. Hoje - e desde, pelo menos, o intelectualismo medieval (herdeiro transecular da sofística, nunca esquecendo)-, a liberdade conquista-se através da ciência (ciência política, ciência económica, ciência jurídica, ciência biológica, médica, física, etc). A ciência aufere dessa grandiosa utilidade de nos vir libertar, emancipar ou salvar um dia destes. À medida que vamos ficando cada vez mais enleados, mais vácuos e desorientados, compensamos através da crença desarvorada de que estamos cada vez mais livres, ou mais próximos duma qualquer redenção material - leia-se: mecânica. Por isso mesmo, a ciência moderna evolui enquanto quintessência da utilidade. Coisa mais necessária e imprescindível não existe. É a prótese de toda uma espécie zoológica. Nas suas trepidantes plurifanias, congrega uma vastíssima pletora de interesses humanos (que, a cada dia que passa, se confunde mais com os "interesses universais", segundo os ditames da "comunidade científica"). Em contrapartida, na antiguidade aristotélica, a ciência livre corresponde à "ciência desinteressada", não sujeita às cadeias da necessidade nem aos arreios da utilidade. Donde, não objecto de investimento, mas de investigação; não motivo de ocupação, mas de amor. Nada nos empurra ou arrasta materialmente para a sabedoria. Mais que dis-tracção (das cadeias e redes intra mundanas), é pura a-tracção - pelo extraordinário, pelo admirável, pelo supra-humano.
Valerá talvez a pena abrir um parêntesis para perscrutar bem as palavras. Investigação e investimento, para já.
Do latim in-vestio, investimento fala-nos de uma guarnição, duma cobertura, dum ornamento. Hoje em dia, a ciência enquanto in-vestio está banalizada: as pessoas investem num curso, numa licenciatura, num mestrado, num doutoramento, e por aí fora. Estamos perante uma espécie de sábios às camadas, às tiras, às fatias. Diante dum produto de confeitaria que vai recebendo sucessivas coberturas mais ou menos achocolatadas de conhecimento e respectivo carimbo veterinário. Cada pastelaridade emérita destas sente-se realizada na medida em que desfile, se exiba e seja admirada por um maior número de basbaques e parolos facilmente impressionáveis. Mais emblemático ainda: estes sabões ambulantes altamente frenéticos, sequiosos de pedestal e megafone, não partem de qualquer tipo de admiração ou espanto; pelo contrário, outro fito não parecem reunir na vida (e sob o revestimento córneo do bestunto) senão causá-los por onde quer que bolcem ou eructem a mais recente ingurgitação curricular de matérias. O preço que cobrem ao minuto revela do nívelde excelência que alcançaram no enxame. Também não é a sabedoria que os atrai; eles é que se derriçam,esmifram e resumem no fátuo mester de atrair arraial onde quer que se desbordem. Em suma, não os atrai a sabedoria, porque são eles agora a atracção, sendo que este "agora" já leva séculos. Da mesma forma, não é uma carência o que os anima ao movimento, à peregrinação, mas a cornucópia, o bazar transbordante, ocaravançarai aos molhos. Também não buscam a sabedoria porque, ao contrário de carentes, estão atestados,tumefactos e prenhes dela. Ad ovo. Pilharam-na aos deuses e vendem-na doravante a retalho.
Evidentemente, esta descrição dos intelectuais hodiernos é plenamente intermutável com os intelectuais medievais. O seu principal fito também era, à partida, enquanto mercadores/professores atrair alunos/clientes. Ou seja, congregar receita, angariar rendimento, trampolinar com vista aos sobrecargos do Poder e da Burocracia, sempre a pingarelhar e albardar à elite. Como se vê, e não me cansarei nunca de demonstrar, trata-se duma espécie de gastrópode imune à evolução, absolutamente cristalizada no seu circoatávico e fossilizada na sua baba.
Evidentemente, esta descrição dos intelectuais hodiernos é plenamente intermutável com os intelectuais medievais. O seu principal fito também era, à partida, enquanto mercadores/professores atrair alunos/clientes. Ou seja, congregar receita, angariar rendimento, trampolinar com vista aos sobrecargos do Poder e da Burocracia, sempre a pingarelhar e albardar à elite. Como se vê, e não me cansarei nunca de demonstrar, trata-se duma espécie de gastrópode imune à evolução, absolutamente cristalizada no seu circoatávico e fossilizada na sua baba.
Reconheça-se, além disso, que o in-vestio tem também muito de in-struo - dito em português: o investimento processa-se sobretudo através duma instrução. Se relembrarmos os múltiplos significados da verbo "struo" no latim (empilhar, construir, amontoar, encher, erigir, maquinar, etc), facilmente avaliaremos a que ponto o ornamento resulta dum amontoamento, dum empilhamento, duma construção. O intelectual é uma máquina de debitar conceitos, tanto quanto uma trama de superficialidades e papagueações mascaradas de erudição.
Ora, em termos aristotélicos (e dragonianos também), isto vale zero. Se um tipo vai para a sabedoria para se ornar e para se exibir é porque não é livre. Não é a verdade que procura, mas o espectáculo funambulesco, avanitas bebuína. É porque em vez de o animar a paixão desinteressada pela sageza, ocupa-o, tripula-o e telecomanda-o a vã gloríola do momento e do instante a ferver, a venalidade do agenciamento patrimonial. Não anda a tratar duma genuína vocação de homem livre, mas a mercadejar, à híbrida maneira das rameiras e dos chulecos, uma cloaca mental tripla (através da qual se alimenta, se despeja e se reproduz), e que ora aluga ao dia, hora ou minuto, ora leiloa em desfiles e bacanais privados ou palimpresépios de serralho (quando adquirem aquela pose inefável de vaquinhas e burrinhos bafejando a sebenta em palhas deitada, para deslumbramento entediado dos rebanhos de candidatos a ruminantes da mesma.)
Faltará dizer muito, quase tudo como de costume, mas contento-me com mais um pormenor significativo: na Antiguidade, o homem livre tem por contraponto o escravo. A liberdade, condição da sabedoria, tem como oposto a servidão, o ser mero instrumento alheio. Recordo que a condição de escravatura antiga resultava, regra geral, dum contrato: o vencido trocava a vida pela liberdade. O vencedor poupava-o a troco dos seus serviços. O escravo sobrevivia por via da sua utilidade, pela graça de se poder tornar útil ao seu novo senhor. Leónidas e os Trezentos, nas Termópilas, relembre-se, tiveram o cuidado de recusar essa escaptória, o que reflectia em larga medida o ethos aristocrático pré-sofístico: antes morrer livre que viver escravo. Aristóteles, sobre isto, na "Política", é esclarecedor:
«As ferramentas são, umas, animadas, e outras, inanimadas.(...)Também o escravo é uma propriedade animada.(...) Aquele que sendo homem não pertence por natureza a si mesmo, mas que é homem (ferramenta/instrumento) de outro, esse é, por natureza, escravo.»
Assim, o sábio não é aquele que se serve da sabedoria, ou seja, que não a deprecia e avilta à condição de sua torpe ferramenta ou instrumento. E não o faz por uma razão tão simples quanto evidente: porque a estima, porque reconhece a sua grandeza, altura e, sobremaneira, a sua carência. Se, genuinamente, a ama, não a explora. Apaixonado por ela, a última e mais ignóbil coisa que lhe deverá ocorrer é tornar-se seu alcaiote.
Ora, a distância que medeia entre o sábio antigo e o intelectual moderno é exactamente esta: o abismo que divide o homem livre do escravo; o vasto oceano que separa o amante do proxeneta. Glosando Swift, este "intelectual para todo o serviço" equivale ao moço de estrebaria que ajuda os Yahoos a montarem nos Houyhnhnms.
Estremeçamos, pois: a universão dos saberes gerou a perversão da sabedoria.
Faltará dizer muito, quase tudo como de costume, mas contento-me com mais um pormenor significativo: na Antiguidade, o homem livre tem por contraponto o escravo. A liberdade, condição da sabedoria, tem como oposto a servidão, o ser mero instrumento alheio. Recordo que a condição de escravatura antiga resultava, regra geral, dum contrato: o vencido trocava a vida pela liberdade. O vencedor poupava-o a troco dos seus serviços. O escravo sobrevivia por via da sua utilidade, pela graça de se poder tornar útil ao seu novo senhor. Leónidas e os Trezentos, nas Termópilas, relembre-se, tiveram o cuidado de recusar essa escaptória, o que reflectia em larga medida o ethos aristocrático pré-sofístico: antes morrer livre que viver escravo. Aristóteles, sobre isto, na "Política", é esclarecedor:
«As ferramentas são, umas, animadas, e outras, inanimadas.(...)Também o escravo é uma propriedade animada.(...) Aquele que sendo homem não pertence por natureza a si mesmo, mas que é homem (ferramenta/instrumento) de outro, esse é, por natureza, escravo.»
Assim, o sábio não é aquele que se serve da sabedoria, ou seja, que não a deprecia e avilta à condição de sua torpe ferramenta ou instrumento. E não o faz por uma razão tão simples quanto evidente: porque a estima, porque reconhece a sua grandeza, altura e, sobremaneira, a sua carência. Se, genuinamente, a ama, não a explora. Apaixonado por ela, a última e mais ignóbil coisa que lhe deverá ocorrer é tornar-se seu alcaiote.
Ora, a distância que medeia entre o sábio antigo e o intelectual moderno é exactamente esta: o abismo que divide o homem livre do escravo; o vasto oceano que separa o amante do proxeneta. Glosando Swift, este "intelectual para todo o serviço" equivale ao moço de estrebaria que ajuda os Yahoos a montarem nos Houyhnhnms.
Estremeçamos, pois: a universão dos saberes gerou a perversão da sabedoria.
5 comentários:
Olha, e a Grécia do Tsipras?
O pensador (ou sábio) por excelência, a derramar poesia em letra de forma.
Ou, analogìsticamente, se quisermos empregar termos mais adequados ao elevado intelecto do autor em questão, a proferir uma oração de sapiência de altíssimo nível.
Maria
O Dragão é um Oráculo da Sabedoria Antiga.
> o abismo que divide o homem livre do escravo;
Isso é propaganda de senadores, a fazerem-se especiais de corrida.
Não há abismo nenhum, há é um sinal mais ou menos no saldo bancário.
A propriedade é liberdade, a liberdade é propriedade, como diria o Keats se soubesse do que falava.
"Propriedade" tem que se lhe diga.
O que é que é próprio do Homem?
Essa sua ironia levanta aí uma bela questão. Impossível não lhe deitar o dente...
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