Do verbo falio (falis, fere, feleli, falsum) - enganar, induzir em erro, trair, etc - radica o termo latino "fallãcia" e o português "falácia". Falácia e falso são da mesma família.
A falácia começa por ser retórica, enquadra-se ao nível da linguagem, da "comunicação". O termo surge entre aspas porque, na realidade, veicula o oposto - na medida em que falsifica a mensagem, a falácia nadifica o discurso, erradica o sentido; não existe troca, apenas despejo. É uma emissão unilateral que pressupõe o cancelamento da resposta. Não admira, por conseguinte, que a falácia constitua, na essência, o vocabulário do totalitarismo. Enquanto sofisma, na lógica mais ou menos filosofóbica, a falácia traduz dois embustes principais: concluir do particular para o universal; confundir o acidental com o essencial, ou, dito doutro modo, fazer do acessório o fundamental.
Podemos enunciar algumas falácias ribombantes e completamente despudoradas da actualidade.
1. A falácia dos "nossos valores". Consiste em promover os nossos particulares valores a valores universais; em fazer de conta que a nossa presente acidentalidade (que, ainda por cima, traduz a inversão, perversão e transgressão de quaisquer axiomas ou axiologias antepassadas) conforma e contém a absoluta essência ética da história e do mundo. Quer dizer, valores que não existem ou ninguém sabe exactamente o que sejam subsituem-se a todos os valores. Fora do nada é o abismo.
2. A falácia da "democracia como melhor dos regimes". Trata-se, a limite, dum leibnitzianismo recauchutado - o argumento do melhor dos mundos, que já Voltaire, com imensa graça, desmantelou. E Voltaire, convém nunca esquecer, no meio da sua imensa constelação de defeitos, arvorava uma virtude cintilante: desprezava olimpicamente Rousseau. Mas atentemos na fórmula mais usual da falácia, pela voz do bipolar psicopata que a garatujou: "a democracia é a pior forma de governo, excepto todas as outras". Isto tem tanto ponta por onde pegue como um monte de bosta fumegante. Nem no domínio da abstracção pura, ou seja, da lógica proposicional, é defensável, quanto mais na realidade concreta. Volta a concluir do particular para o universal, reincide no fazer do acidental o essencial. O silogismo aciganado é mais ou menos este: Todas as formas de governo são más, a democracia é a menos má; logo, a democracia é a melhor. Da melhor à única aceitável é um passe de mágica. Da única aceitável ao paraíso na terra que urge defender contra todas a horda de papões e gambozinos que imaginar se possam, um instantinho. Nem se trata sequer duma falácia, mas dum monturo delas. Sendo que até o monturo é falsificado.
Logo à partida, no expediente duma suposição tresloucada: a forma de governo como forma de flagelo. A democracia é santa porque nos flagela menos. Que reconforto! Que conquista civilizacional! O Marquês de Sade, lá das profundezas, sorri, embevecido. E preside ao panteão dos taumaturgos padroeiros da nova-religião. Embora algo contristado com a clara cedência desta Justine sodomita aos escrúpulos retrógrados: a vaselina institucional.
Depois, a sarrabulhada a priori, isto é, a experiência dispensada pelo preconceito. O passado é reduzido aos seus defeitos, reais e imaginários - uma mera sucessão de males, desgraças e opressões; o presente promove-se como um cancro benigno. Comparam-se duas vigarices, de modo a impingir a actual. O facto, é que não sabemos exactamente como se processou o passado e ainda menos como se processa o presente. Baseado nesse desconhecimento geral e agudo, somos levados a crer, por toda a espécie de dogmas de ocasião e preconceitos de conveniência, na benignidade do cancro. Os preconceitos da tradição são simplesmente usurpados pelos preconceitos da abstracção. Isto é, os preconceitos que lavavam séculos a criar são substituídos por preconceitos de aviário, semi-instantâneos e de consumo massificado. Desemboca-se assim numa espécie de vazadouro geral do preconceito, ou ETAR (estação de tratamento de angústias residuais): a Ciência. Com uma estirpe a vapor à cabeça: a Ciência política. Outro sofisma, já que não é ciência nem é política. Entretanto, outra má notícia: no império do preconceito passou-se da república à tirania.
Por fim, a transfiguração do "nosso regime" como o "único regime". Fora dele é o caos, o indiferenciado, o "todos os outros". Donde que, na verdade, não acontece sequer uma comparação, mas uma pressuposição, uma assumpção unilateral e ditatorial duma determinada circunstância arvorada em verdade exclusiva e indiscutível. Daí ao dogma não vai distância nenhuma: já se lá está hospedado, de armas e bagagens. Não existe dedução, apenas redução - a falácia ou estratagema do reductio ad vicarium (redução á vigarice).
Mas falácia não significa, na nossa língua, apenas sofisma, engano, arteirice. Significa também falatório, ruído de muitas vozes. O que nos remete para a fala e o falar. Curiosamente, falar não partilha a mesma raiz de falácia. Falar devém do latino fabulor. Fabula, em latim, traduz conversa, conversação, ou narrativa, lenda, peça teatral. Nas fábulas, no sentido mais importante que a nós chegou, acontecem conversas entre os animais. Por exemplo, na conversa fabulosa entre o cordeiro e o lobo, este procura recorrer a várias falácias, mas a moral da própria conversa é tudo menos falaciosa. Todavia, o cordeiro tenta falar com o lobo, tenta comunicar com ele, convocando-o até a uma certa razão. Numa certa medida, o cordeiro demanda colocar-se num plano moral, real, do direito até. Debalde o tenta. A fera está confinada ao seu próprio aleive. Não comunica, não debate: apenas informa; e decreta. Vem para expropriá-lo da sua vida. Quer simplesmente apropriar-se da sua carne, para mera cevadura dum apetite. Uns anos depois, um outro Cordeiro, mais sábio, prescindiu da argumentação. Com César não se discute. Dirigiu-se, em silêncio, para o suplício. Um silêncio que ainda hoje reverbera e repercute... pelo menos nesta página.
Em todo o caso, o domínio da fala e da falácia não são coincidentes. Longe disso. E precisamente pela razão apontada no início deste postal: é que a falácia exclui a fábula no sentido original de conversa, porque implanta a falsidade pura no sentido da propaganda corrente como consagração estrita da vontade. Assim, embora a fala demande algo mais que uma simples manifestação de ruído, dado que base de comunidade e comunicação, o facto é que a falácia mais não urde que o confinamento da fala aos seus desígnios particulares. Ou dito noutras palavras, o controlo absoluto da fala pela falácia. E, com isto, eis que aportamos à 3ª grande Falácia do nosso tempo: a equivalência entre democracia e estado de direito.
Em primeiro lugar, a democracia é um estado falaz, ou seja, não de direito mas de falácia. Aliás, a própria embrumação da "democracia" mais não corporiza que a falácia com que um determinado estado trata com as pessoas, doravante abaixo de súbditas: apenas "legalmente subjugadas". Direito pressupõe uma qualquer justiça a montante e a jusante, enquanto princípio e finalidade, sendo o direito apenas a causa eficiente. Ora, na ideologia democraticóide, o direito desliga-se da justiça e arvora-se como princípio e causa absolutos, necessários e auto-suficientes; sustentando-se num aviário jurídico, onde a monstruosidade apenas se perpetua e consagra através da proliferação artificial, por partenogénese burocrática, da falácia. O que administra não é o bem comum, mas o mal comum, único vínculo e elo de ligação entre as partes. O que implementa não é a comunidade nem, tão pouco, a comunicação: mas exclusivamente a contrafacção de ambas na forma da chamada "comunicação social" - a qual, sem excepção nem pausa, apenas desagrega a sociedade e envenena a comunicação. Deste modo, em vez de estimular a fala e, nela, a cultura, a democracia, de falácia em falácia, alcança o seu estado final: o de falência. Falência moral, cognitiva, histórica e, por fim, económica. Quer dizer, o título pelo qual se abdicou duma ética, duma memória, duma essência, finalmente, desvanece-se, como a mera ilusão de qualquer vítima duma grandessíssima vigarice. Como antes os paraísos socialistas, também agora os infernos climatizados dos neoliberais se esboroam numa mar de corrupção, miséria e caos social. Sim, estou a falar, objectivamente, e brada à evidência, dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Na fábula actual, em directo e a cores, o Estado lobo não comunica - tão pouco fala - com os cordeiros abaixo de seus súbditos: decreta-lhes apenas as suas necessidades de consumo, estipula-lhes unicamente os sacrifícios que as modas do instante a ferver com que mascara os apetites requerem deles.
Era Chesterton que dizia, com muita propriedade, "que não é por uma falácia se tornar moda que deixa de ser uma falácia". No tempo de Chesterton, porém, a falácia talvez ainda aspirasse apenas a moda; nos nossos dias já se ensoberbece armada em realidade, história, mundo. E quanto mais esfarrapada, esboroada e falida se arrasta, mais ruidosa, arrotante e propagandeada se manifesta. A algazarra como cura para o vazio; o estrépito gasoso para dissimular o óbito.
Entretanto, lá mais ao fundo, no dealbar grego, o rasto é ainda nítido: faylos já preconizava o que lá vinha. Significava feio, defeituoso, malévolo, frívolo, vil, grosseiro, insignificante, inferior, fácil, cómodo. Enfim, bem visto, tudo aquilo em que este nosso tempo de falácia se destaca e refina. Já a falácia os gregos diziam-na apathe. Logro, engano, cilada, artimanha, astúcia. Num certo sentido, uma decorrência de a-pater, ou seja, algo indigno de um pai. Ou, como diria o meu amigo Ildefonso, uma genuína filha da putice.