«Nunca poderei comparar Gaidar a Lenine, por uma questão de escala. Mas eles têm de qualquer forma uma coisa em comum; tanto um como o outro se comportaram como o fanático que, obcecado pela sua ideia fixa, empunha sem a mínima hesitação o escalpelo e se põe a cortar e a retalhar o corpo da Rússia. Seis anos depois, a expressão de maliciosa auto-satisfação que se lê no rosto deste político não revela qualquer sombra de vergonha, quando foi ele quem precipitou na miséria dezenas de milhões dos seus compatriotas, levando a economia à ruína e, desse modo, reduzindo a nada os fundamentos da famosa "classe média" que jurava estar a criar. Seis anos depois continua-se a falar em criar essa "classe média", quando era precisamente a pequena empresa que era necessário encorajar, e não o surgimento de magnatas financeiros de apetite insaciável.
A propriedade privada é o meio justo e natural de favorecer a actividade humana; desenvolve o gosto pelo trabalho, o interesse naquilo que se faz; mas tem forçosamente de ser acompanhada de uma legislação muito rígida. É criminoso o governo que, na ausência de qualquer lei, deixa a riqueza nacional entregue à pilhagem e os seus concidadãos entregues às garras de predadores.
Na confusão e na pressa, começou-se a sacudir a economia até fazê-la partir-se em bocados. Esta devastação foi apresentada como A Reforma tão esperada, uma reforma cujos fundamentos teóricos não podiam ter ficado mais vagos, para não falar de um programa elaborado e coerente - de resto, como se soube mais tarde, não havia sequer qualquer programa. («Navegávamos com terra à vista, não tínhamos tempo de pesar as nossas decisões.») Admitiu-se que seria preciso passar por uma "terapia de choque" (expressão que se adoptou por empréstimo, sem se levantar muitas questões, aos teóricos da economia ocidentais); no entanto, na véspera de ser posta em vigor (29 de Dezembro de 1991), o presidente comprometeu-se perante nós: «Vai ser duro, mas não durará muito tempo. Uma questão de seis ou oito meses.» (As previsões de Gaidar eram ainda mais cor-de-rosa: os preços iam baixar em três meses - mas de onde é que ele deduziu que os preços iam baixar quando ele os tinha liberalizado para os monopólios de produção, na ausência de qualquer concorrência?) Foi prometido que iriam até ao ponto de "pôr a cabeça no cepo" no caso de a reforma falhar.
Sob efeito destes electrochoques incessantes, incapaz de reagir, o povo foi como que vencido por esta trapaça sem precedentes. Não se pode explicar de outro modo (a menos que os resultados do referendo tenham sido falsificados) que o povo tenha podido aprovar, em Março de1993, «reformas» que o lançavam na miséria. (Pode ser também, enfim, que isso reflectisse a nossa confusão e a nossa inconsciência.) Naturalmente, o súbito confronto de um povo acabado de sair do comunismo com a dinâmica da economia de mercado era inelutável e não podia deixar de engendrar um efeito de choque, mas seria preciso, para isso, ter ido até à electrocussão?
Mas a multiplicação por cem, por mil, das taxas de inflação constituía apenas o início das provações. O povo recebeu com alegria o anúncio da distribuição equitativa entre todos os cidadãos da riqueza nacional através da atribuição a cada um de obrigações com um nome um pouco bárbaro de vouchers; munido destes documentos, cada um podia supostamente adquirir, se lhe apetecesse, dois carros de luxo, ou então garantir um rendimento vitalício. A confusão instalou-se nos espíritos, milhões de ingénuos deixaram-se enganar; outros, num número ainda mais elevado, deram cabo da cabeça a pensar nos meios de utilizar esses vouchers. De facto, esses meios não existiam: os infelizes que aplicavam as suas obrigações em quaisquer «fundos» ou empresas apercebiam-se de que tinham investido num utensílio de produção obsoleto que não trazia qualquer benefício. Quanto aos novos proprietários, gatunos ávidos desprovidos de qualquer experiência de gestão de empresas e que se estavam nas tintas para isso, não só não faziam qualquer investimento produtivo, como chupavam até à medula tudo o que a empresa ainda podia dar, prontos a abandoná-la de seguida. Um pequeno número de especuladores hábeis que dispunham de algum capital compraram grandes quantidades de vouchers a pequenos titulares desamparados, para de seguida adquirirem as partes dons bens nacionais que cobiçavam.
Mas, também aqui, era apenas o início das calamidades. Com efeito, como se pode facilmente adivinhar, a totalidade das obrigações emitidas não representava em valor mais do que apenas uma ínfima parte da riqueza de um país como a Rússia: a «partilha» anunciada ao povo referia-se apenas a menos de um por cento desta riqueza. Em meados do ano de 1994, o muito ouvido vice-primeiro-ministro Anatóle Tchubais, desejando demonstrar a sua «vontade de aço» a uma população que, no passado, tinha sido tão habituada a isso, torna oficial a «segunda etapa da privatização» cujo objectivo era fazer passar os bens do Estado para as mãos de um pequeno grupo de financeiros (esta intenção era declarada abertamente pelas pessoas que o rodeavam). Além disso, a palavra de ordem era que a privatização devia fazer-se de uma vez, quase imediatamente, apanhando toda a gente desprevenida, e declarou orgulhosamente na televisão: «O Mundo nunca viu uma privatização conduzida a um tal ritmo!» (Sim, sem dúvida nenhuma, um disparate de tal modo criminoso, o mundo nunca viu. Correndo com demasiada velocidade, muitas vezes espalhamo-nos.) A privatização foi posta em acção em todo o país com a mesma demência cega, a mesma precipitação destrutiva que a nacionalização em 1917-1918 e a colectivização de 1930. Tinha-se simplesmente invertido o sinal.
A «segunda etapa» começou portanto a partir do Verão de 1994 e, em poucos meses, procedeu-se à distribuição gratuita de todos os bens do estado em benefício de alguns intriguistas escolhidos a dedo. De longe em longe, a imprensa fez eco desta inacreditável pilhagem da riqueza nacional entregue a etes predadores. O povo, esse, embora não estivesse dentro do segredo das jogadas financeiras e combinações, adivinhou no entanto perfeitamente o que se estava a tramar e designou todo este processo pelo termo "predatização".
(...)
O entusiasmo internacionalista que conquistou, a partir dos anos 80, o meio intelectual de Moscovo, não teve praticamente nada a invejar ao entusiasmo dos primeiros bolcheviques. Os liberais e radicais-democratas russos acreditaram que, a partir de então e para sempre, se abria uma era de felicidade para o planeta inteiro: agora, todos os povos, todos os homens políticos se inspiravam exclusivamente nos valores universais, e todos, de mãos dadas, iríamos servir esta nobre causa. Daqui resulta que qualquer política externa mais firma da Rússia releva do imperialismo ou do contra-senso, e que um poder forte na Rússia tem de ser tirânico.»
- Alexandre Soljenitsyne, "A Rússia sob a avalanche" (trad. port. da Quetzal)
Depois deste testemunho sobre as tropelias de Yegor Gaidar e do frenético Tchubais (qualquer reencarnação ao vivo dos "Demónios", de Dostoievski continua a não ser mera coincidência), os leitores podem sempre confrontar com a elegia fúnebre que lhe é feita, ao Gaidar, no "The Economist". Naturalmente, para a seita do Big Nose o homem foi um herói, um palhadino contra o nacionalismo hediondo sempre em ganas de imperialismos ferozes.
Mas os Russos, decididamente, são o mais resistente dos povos. Foi isso, aliás, que os próprios alemães, na 2ª Grande Guerra, descobriram, quando encetaram experiências com prisioneiros de guerra. Faziam testes pera ver quem é que aguentava mais tempo emerso em água gelada. (Fazia parte do programa de testes para equipamentos de pilotos em caso de queda oceânica). Conseguiam matar todos, com alguma rapidez até, menos os russos. E de facto, resistir 70 anos à peste comunista e depois mais vinte à lepra "reformista" mercantilheira não é para meninos. E conseguirem sair de todo isso vivos e verticais, como está a ser o caso, é obra. A povos que padeceram, e padecem, embora em quantidades menos industrias, tamanhos flagelos, o exemplo não deixa de ser animador. Mesmo para nós, entregues ainda ao repasto entre os inimigos e os traidores, que nos sirva de farol na tempestade. É certo que só tivemos ano e meio de comunismo, mas, em contrapartida, já vamos com quarenta anos de "reformas". Que Deus nos envie um daqueles Homens que só ele sabe como produzir. Porque do Demo (e respectiva cracia) já sabemos que só vem merda.
PS: A sabedoria da política externa portuguesa, no tempo em que havia Portugal, era perceber claramente que navegar era preciso, não por Cila nem, tão pouco, por Caribdis, mas, precisamente, no espaço bonançoso em que ambos se neutralizavam. Entre ambos fica a rota, a possibilidade da viagem - do odos (do caminho), em suma, da odisseia. De encontro a qualquer uma dessas monstruosidades fica apenas o naufrágio e a morte.
11 comentários:
Brilhante e premonitório (no caso, para nós portugueses) excerto do magnífico livro (citado) de Soljenitsine, como igualmente brilhante e ilucidativo é o pós-texto e o post-scriptum do Dragão.
Fodam-se...
a Nato
a UE
e os Americonços
http://www.tsf.pt/sociedade/interior/fogos-russia-envia-dois-avioes-para-portugal-5335405.html
Caro Vivendi
Permita-me um comentário cínico.
Sabe porquê que a NATO, a UE e os americanos não enviam aviões contra os fogos? Não precisam, esses já têm o nosso território fotografado e cartografado...
Rui Alves,
Lá na Rússia não me digam que não têm acesso ao Google maps...
Já para não falar em toda a cartografia militar portuguesa que herdaram dos soviéticos, por cortesia do PCP...
Discordo, caro Dragão
a) Os russos não vão depender de informações fornecidas por uma ferramenta informática do país do inimigo.
b) A precisão das imagens civis da Google é inferior à precisão das imagens obtidas por equipamentos militares de ponta.
c) Quatro décadas depois, qualquer cartografia fornecida pelo PCP à ex-União Soviética está obsoleta em relação a novas estradas, pontes, aeroportos, antenas retransmissoras, torres de alta-tensão e outras infra-estruturas. Já para não falar nas mudanças nos agregados populacionais.
Completamente nonsense, Rui...
Até parece que os russos não têm o seu próprio arsenal de satélites para recolha de informação. De nome GLONASS, é o homólogo ao GPS controlado pelos EUA...
Phi
Phi
Pela sua ordem de ideias, já não seria preciso existir hoje em dia aviões espiões. Os satélites tratariam de tudo.
Contudo, a mim parece-me que as imagens de satélite, a dezenas de milhares de quilómetros de altitude, limitadas por núvens e pela visibilidade permitida pela atmosfera, não substituem o valor de imagens limpas, abaixo das núvens, e adquiridas muito mais próximo do solo.
Acha que os russos, por mais vasta e sofisticada que seja a sua rede de satélites, com uma oportunidade de entrar no terreno do adversário, vão desperdiçá-la, sobretudo nas actuais circunstâncias? Informação é poder, e nunca é demais.
Rui,
Nós não somos inimigo nem adversário de ninguém (muito menos dos russos), a não ser de nós próprios.
Deitamos fogo ao país todos os anos. E deixamo-lo arder todos os anos. Por nada, apenas por spleen. Por vício.
Rui, para se obter informações, como já fizeram, subcontrata-se um espião português!
Isto têm muito mais a haver com marcar pontos na opinião pública. E neste caso, abençoados sejam.
Se bem, que concordo consigo, o território russo têm-se movido a léguas em direcção às bases da Nato. Ou cousa parecida, whatever...
Phi
Dragão
Nós não somos inimigos dos russos, mas infelizmente a NATO e a Rússia são inimigos. Assim como também não tivemos interesse nenhum na trampa das sanções económicas à Rússia (os nossos agricultores e suinicultores que o digam), mas tiveram os americoisos e a UE.
Mas acabou de dizer uma coisa que assino por baixo. Nós não precisamos de inimigos para nos destruirmos. Digo mais, quem quiser Portugal arruinado e de joelhos a seus pés, não precisa de o invadir com tanques, barcos nem aviões. Só precisa de enfiar-lhe a democracia partidária.
Há algo de surreal, a Rússia é um país e a OTAN é apenas uma camisa de força imposta pelos americanos à Europa, desde a década 90. É que, o seu prazo de validade tinha caducado com o fim da Guerra Fria, contudo, como há demasiado tachos para os euro-boys, os quislings e yats dos países europeus, por um lado, e, por outro, o interesse dos americanos em perpetuar a sua ocupação e controlo da Europa, a vaca leiteira mais produtiva do império, daí a necessidade da Rússia ser uma inimiga para manter-nos enlatados.
Todavia, qual os interesses de Portugal em ter a Rússia como inimiga? A Grécia está como está foi devido ao esquema Ponzi de subprime e outros malabarismos de wall street e não ao putinismo. Portugal foi atacado pelas imprensa financeira ocidental e agencias de rating americanas em 2010, onde nos secou a vinda do capital internacional e levou ao aumento proibitivo das taxas de juro das nossas dividas soberanas.
Na verdade, quem é o inimigo de Portugal? A maioria ainda está a beber o kool aid da imprensa controlada pela quinta coluna.
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