«O mostrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar;
à roda da nau voou três vezes
voou três vezes a chiar,
E disse:" quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo
mus tectos negros do fim do mundo?»
E o o homem do leme disse, tremendo:
»El-Rei D.João Segundo!"
E o o homem do leme disse, tremendo:
»El-Rei D.João Segundo!"
- Fernando Pessoa, "Mensagem"
A figura do mostrengo é eloquente. Ainda hoje brame, para quem o quiser ouvir. Ainda hoje apavora quem o escuta e, pelo zoar do seu estrugir desumano, o imagina envolto em fiapos de tormento e cortinas de pesadelo.
Em Quinhentos, nesse tempo de coragem, de Audácia, mais que de ganância, os mares ressumbravam, infestados. Ao longe, nos oceanos, que iam vomitar-se lugubremente no abismo tartárico, senão na goela insaciável do próprio inferno em chamas, uivavam abominações medonhas, habitavam pavores inomináveis. Sob o manto vertiginoso das águas, moravam braços descomunais, tentáculos mortíferos, mandíbulas escancaradas prontas a devorar, a varrer e a despedaçar, sem dó nem piedade, a casca de noz e o insecto que se atrevessem, que experimentassem a viagem, que ousassem sequer o pensamento. Enfim, emboscados, sempre à espreita, famintos de dor e carne humana, cardumes de horrores patrulhavam os mares ignotos. Para quem escondia os olhos –como hoje ainda esconde -, o mostrengo era tudo isso. Escutava-se e dava vontade de nunca ter nascido.
Mas, na verdade, o mostrengo não habitava os mares: rodopiava fantasmagórico na alma dos homens. Tolhia-lhes o ânimo e quebrantava-lhes a força. E chiava –oh, com que tenebror ele chiava! - a enregelar o coração e a liquefazer a espinha. Que até os dentes crepitavam, os cabelos encaneciam e o chão nos chamava, em refúgio, para o mais humilde e obscuro dos seus orifícios.
Só que havia uma semente - uma centelha de odisseia - que Ulisses deixara por estas bandas. E uma semente pode muito. Mais que todos os medos. Mais que todas as filosofias, literaturas e ciências! Mais que a treva e os abismos. Porque uma semente sabe o caminho do céu. Rompe a lama e as angústias, fende os ares e as neblinas e estende os braços, feita árvore, a abraçar a luz e o firmamento. A saudar o sol e as estrelas. A respirar o sopro divino que dá vida ao mundo.
As sementes são a lenha dos sonhos. Os portugueses de Quinhentos foram a carne dessa semente.
E do chão agreste, triste, sujo e escuro, onde o medo os agrilhoava e mantinha encarcerados, rasgaram horizontes e elevaram-se para uma luz que os guiava a sul de todos os crepúsculos, à procura de edens e fontes sagradas, em busca de tesouros, de aventuras, de terras exóticas, mas, acima de tudo, ou como estrela guia para tudo isso, do mais bem-aventurado e exótico de todos os tesouros: a verdade.
Foram banhar-se no sonho e no abismo. Foram para o mar enfrentar o mostrengo que levavam na alma.
Guardamos essa memória nas veias e sabemos que não foi fácil. Sabemos que não foi uma coreografia sonoplástica e narcótica, como os filmes de hollywood. Que não foi insípido e inodoro. Que o cheiro a merda e sangue, a escorbuto e malária, a desespero e desinteria se misturaram muitas vezes, quase sempre, com o perfume da maresia, que entra pelos pulmões e descongestiona a alma. Que as lágrimas das mulheres salgaram o cais e as maldições dos velhos crismaram o vento. Que isso toldou o horizonte e açulou o mostrengo que de dentro de nós –nós naquele tempo – assombrava o mar.
Mas nós –nós naquele tempo – nós sem automóveis, televisões, figoríficos, nós sem electricidade nem água canalizada, nós sem subsídios nem peritos de pintelhices a granel, nós sem doutores da mula russa a parirem reformas de empreitada, nós sem formação profissional nem confortos, sem sindicato nem segurança social, nós sem computadores nem cinemas, nós sem petróleo nem diamantes, fomos capazes de uma obra colossal, fomos capazes dum milagre, a semente fez-se árvore.
Nós –naquele tempo muito mais magros, destituídos, ainda mais indigentes e pequenos que hoje – fomos capazes. Porque é que hoje não somos? Não somos capazes porque nem sequer somos nós. Entre aquele tempo e este tempo interpôs-se um limbo onde vagamos quais sombras penadas. Sobra-nos a matéria, o esterco que nos amortalha; sobram-nos bugigangas em catadupa, adubos, pesticidas e cuidados de flores de estufa, mas falta-nos o essencial: a vontade, esse gume afiado do espírito. Falta-nos aquele que a vaca da Isabel Católica, ao saber da sua morte, disse: “Morreu o Homem”
Mas não apenas o homem-rei, símbolo de um povo, da união sagrada entre terra, mar e gente, e duma vontade colectiva; também, e sobretudo, o Homem dentro de todos nós, o homem que sonha, o homem que navega, o homem que acredita.
Porque em vez dele, a velar o seu sono forçado, soltando peçonha e susto, reina o mostrengo. Adeja, rodopia e chia sem parar. Entoa a sua umbrífera lengalenda, que cobre, como uma névoa tóxica, venenosa, o sol e as estrelas, e entranha-se nos ossos, nos músculos, nas mentes, a roubar-nos toda a coragem, a decantar-nos toda a esperança.
“Sois fracos!”, chia ele, escarninho. “Sois débeis! Sois poucos! Sois pobres! Sois atrasados! Sois obsoletos! Sois a escória da Europa! Sois vis! Sois preguiçosos! Sois desgovernados, desorganizados, viciados, dependentes, individados, mesquinhos, intriguistas, fala-baratos, quezilentos, alarves, pacóvios...sois o desespero de Cristo!...” As suas asas negras esvoaçam por cima de nós, sombrias e, à noite –nesta infinita noite em que se tornou a nossa vida-, pressentimos que ele poisa, de colmilhos afiados, para nos vampirizar os sonhos. Mas mesmo nessa pausa hedionda, a sua cantilena exasperante não cessa: repercute em ecos descarnados, lutuosos, nas abóbadas do nosso pavor.
Mas que pensáveis vós que ele, esse mesmo mostrengo chiante, uivava há quinhentos anos atrás? -A mesmíssima gosma paralizante, a gémea baba de aranha dissolvente. Sem tirar nem pôr.
E os homens - daquele tempo em que ainda havia homens - deixaram para trás as lágrimas das mulheres, as maldições dos velhos, o espanto maravilhado nos olhos das crianças e saíram mar a fora, levando todo o medo consigo, e foram enfrentar a ululante avantesma lá onde o mundo acaba e o abismo começa. Saíram as naus da barra e o mostrengo infame ia por cima delas, como uma sombra de Outro-Mundo.
Choraram as mulheres porque viam ambos, praguejaram os velhos porque viam a abominação, maravilharam-se as crianças porque eram seus os sonhos que iam dentro dos homens, com a forma de mastros e velas.
Os homens não voltaram. Só o mostrengo voltou.
A figura do mostrengo é eloquente. Ainda hoje brame, para quem o quiser ouvir. Ainda hoje apavora quem o escuta e, pelo zoar do seu estrugir desumano, o imagina envolto em fiapos de tormento e cortinas de pesadelo.
Em Quinhentos, nesse tempo de coragem, de Audácia, mais que de ganância, os mares ressumbravam, infestados. Ao longe, nos oceanos, que iam vomitar-se lugubremente no abismo tartárico, senão na goela insaciável do próprio inferno em chamas, uivavam abominações medonhas, habitavam pavores inomináveis. Sob o manto vertiginoso das águas, moravam braços descomunais, tentáculos mortíferos, mandíbulas escancaradas prontas a devorar, a varrer e a despedaçar, sem dó nem piedade, a casca de noz e o insecto que se atrevessem, que experimentassem a viagem, que ousassem sequer o pensamento. Enfim, emboscados, sempre à espreita, famintos de dor e carne humana, cardumes de horrores patrulhavam os mares ignotos. Para quem escondia os olhos –como hoje ainda esconde -, o mostrengo era tudo isso. Escutava-se e dava vontade de nunca ter nascido.
Mas, na verdade, o mostrengo não habitava os mares: rodopiava fantasmagórico na alma dos homens. Tolhia-lhes o ânimo e quebrantava-lhes a força. E chiava –oh, com que tenebror ele chiava! - a enregelar o coração e a liquefazer a espinha. Que até os dentes crepitavam, os cabelos encaneciam e o chão nos chamava, em refúgio, para o mais humilde e obscuro dos seus orifícios.
Só que havia uma semente - uma centelha de odisseia - que Ulisses deixara por estas bandas. E uma semente pode muito. Mais que todos os medos. Mais que todas as filosofias, literaturas e ciências! Mais que a treva e os abismos. Porque uma semente sabe o caminho do céu. Rompe a lama e as angústias, fende os ares e as neblinas e estende os braços, feita árvore, a abraçar a luz e o firmamento. A saudar o sol e as estrelas. A respirar o sopro divino que dá vida ao mundo.
As sementes são a lenha dos sonhos. Os portugueses de Quinhentos foram a carne dessa semente.
E do chão agreste, triste, sujo e escuro, onde o medo os agrilhoava e mantinha encarcerados, rasgaram horizontes e elevaram-se para uma luz que os guiava a sul de todos os crepúsculos, à procura de edens e fontes sagradas, em busca de tesouros, de aventuras, de terras exóticas, mas, acima de tudo, ou como estrela guia para tudo isso, do mais bem-aventurado e exótico de todos os tesouros: a verdade.
Foram banhar-se no sonho e no abismo. Foram para o mar enfrentar o mostrengo que levavam na alma.
Guardamos essa memória nas veias e sabemos que não foi fácil. Sabemos que não foi uma coreografia sonoplástica e narcótica, como os filmes de hollywood. Que não foi insípido e inodoro. Que o cheiro a merda e sangue, a escorbuto e malária, a desespero e desinteria se misturaram muitas vezes, quase sempre, com o perfume da maresia, que entra pelos pulmões e descongestiona a alma. Que as lágrimas das mulheres salgaram o cais e as maldições dos velhos crismaram o vento. Que isso toldou o horizonte e açulou o mostrengo que de dentro de nós –nós naquele tempo – assombrava o mar.
Mas nós –nós naquele tempo – nós sem automóveis, televisões, figoríficos, nós sem electricidade nem água canalizada, nós sem subsídios nem peritos de pintelhices a granel, nós sem doutores da mula russa a parirem reformas de empreitada, nós sem formação profissional nem confortos, sem sindicato nem segurança social, nós sem computadores nem cinemas, nós sem petróleo nem diamantes, fomos capazes de uma obra colossal, fomos capazes dum milagre, a semente fez-se árvore.
Nós –naquele tempo muito mais magros, destituídos, ainda mais indigentes e pequenos que hoje – fomos capazes. Porque é que hoje não somos? Não somos capazes porque nem sequer somos nós. Entre aquele tempo e este tempo interpôs-se um limbo onde vagamos quais sombras penadas. Sobra-nos a matéria, o esterco que nos amortalha; sobram-nos bugigangas em catadupa, adubos, pesticidas e cuidados de flores de estufa, mas falta-nos o essencial: a vontade, esse gume afiado do espírito. Falta-nos aquele que a vaca da Isabel Católica, ao saber da sua morte, disse: “Morreu o Homem”
Mas não apenas o homem-rei, símbolo de um povo, da união sagrada entre terra, mar e gente, e duma vontade colectiva; também, e sobretudo, o Homem dentro de todos nós, o homem que sonha, o homem que navega, o homem que acredita.
Porque em vez dele, a velar o seu sono forçado, soltando peçonha e susto, reina o mostrengo. Adeja, rodopia e chia sem parar. Entoa a sua umbrífera lengalenda, que cobre, como uma névoa tóxica, venenosa, o sol e as estrelas, e entranha-se nos ossos, nos músculos, nas mentes, a roubar-nos toda a coragem, a decantar-nos toda a esperança.
“Sois fracos!”, chia ele, escarninho. “Sois débeis! Sois poucos! Sois pobres! Sois atrasados! Sois obsoletos! Sois a escória da Europa! Sois vis! Sois preguiçosos! Sois desgovernados, desorganizados, viciados, dependentes, individados, mesquinhos, intriguistas, fala-baratos, quezilentos, alarves, pacóvios...sois o desespero de Cristo!...” As suas asas negras esvoaçam por cima de nós, sombrias e, à noite –nesta infinita noite em que se tornou a nossa vida-, pressentimos que ele poisa, de colmilhos afiados, para nos vampirizar os sonhos. Mas mesmo nessa pausa hedionda, a sua cantilena exasperante não cessa: repercute em ecos descarnados, lutuosos, nas abóbadas do nosso pavor.
Mas que pensáveis vós que ele, esse mesmo mostrengo chiante, uivava há quinhentos anos atrás? -A mesmíssima gosma paralizante, a gémea baba de aranha dissolvente. Sem tirar nem pôr.
E os homens - daquele tempo em que ainda havia homens - deixaram para trás as lágrimas das mulheres, as maldições dos velhos, o espanto maravilhado nos olhos das crianças e saíram mar a fora, levando todo o medo consigo, e foram enfrentar a ululante avantesma lá onde o mundo acaba e o abismo começa. Saíram as naus da barra e o mostrengo infame ia por cima delas, como uma sombra de Outro-Mundo.
Choraram as mulheres porque viam ambos, praguejaram os velhos porque viam a abominação, maravilharam-se as crianças porque eram seus os sonhos que iam dentro dos homens, com a forma de mastros e velas.
Os homens não voltaram. Só o mostrengo voltou.
«O mostrengo que está pra cá do mar
Na noite de breu continu’a voar;
Por dentro da alma voa mil vezes
Voa mil vezes a agoirar,
E diz: “quem persiste ainda a sonhar
Com algo que não meu trono execrando
com céus acima deste pó imundo?
E a nau sem leme geme, sangrando :
Na noite de breu continu’a voar;
Por dentro da alma voa mil vezes
Voa mil vezes a agoirar,
E diz: “quem persiste ainda a sonhar
Com algo que não meu trono execrando
com céus acima deste pó imundo?
E a nau sem leme geme, sangrando :
”Quem há-de vingar D. João Segundo?...”
7 comentários:
Grandioso! Verdadeiro?!
Era assim, neste tom de eloquência seminal que a minha professora primária me(nos) ensinava História. Puxando para esse lado, o português heróico e fantástico, descendente do Condestável e que arribou em Aljubarrota e depois à janela por onde seiu Miguel de Vasconcelos! O sonho perpassava nas palavras e no encantamento dessa História.
Contudo, não sei hoje se foi bem assim. Tomara que fosse!
Hoje, o fantástico que me satisfaz plenamente é mais isto que é misterioso pela cadência das palavras ditas em alta voz e pelo encantamento da fantasia:
O CORVO *
(de Edgar Allan Poe)
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Fernando Pessoa
"O que é a verdade?"
perguntou Pilatos a Jesus.
E Jesus nada lhe disse;
Passou em silêncio, com piedade
e foi ser Verdade na cruz.
A Verdade só pode Ser. E eu não sei bem o que é.
Contento-me com verdadinhas como essa aí, de pé!
Quem dera que o português fosse como o descreves, outrora!
COmo sabê-lo,porém, se nós ´inda nem fomos embora?
Quando dizes, dizes bem, Dragão.
Que as gentes de agora são as mesmas de então.
Falta o Rei, falta a bandeira.
Vai folgada a brincadeira,
Sofre este povo enganado,
Armas sem Coroa,
em um pano verde encarnado.
Quem sabe... o que falta mesmo não será um novo adamastor?
nada de especial k porcaria
amo te IVO
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