«Bailly, que passa as noites na sua comissão de abastecimento, enquanto Lafayette dá ordens às patrulhas, conhece bem a verdade. Ouviu rondar esse homem invisível que trafica nas épocas de crise: o especulador. (...)
«Em dois meses, expedem-se duzentos mil passaportes. Os nobres emigram, arruinando todo um comércio que lhes alimentava os prazeres. O dinheiro segue o mesmo caminho e o numerário torna-se raro. A desocupação é geral. Acabam a criar-se, em Paris, oficinas nacionais: as oficinas de caridade, para dar trabalho a cento e vinte mil desempregados. Nem por isso se tornam menos frequentes os ajuntamentos, que precediam os motins. Bailly confessa que se alegrava com "os dias de chuva". A situação financeira é lamentável. O deficit (um deficit que hoje nos faria rir) é de cinco milhões de libras. Os impostos são opressivos e arbitrários. O regime fiscal destrói o país, provoca o desemprego, o marasmo dos negócios, o descontentamento geral.»
Nestes trechos, Henri Robert faz-nos uma descrição sucinta do ambiente que precedeu a Revolução Francesa. Concentremo-nos, para já, na frase "o regime fiscal destrói o país". Terá acontecido então, no crepúsculo do século XVIII, mas experimentamo-lo também agora, na aurora do século XXI. Pelos vistos, repetem-se as cenas históricas, como se repetem as crises e alguns dos seus ingredientes característicos. E não deixa de ser espantoso como o "estado" dum determinado país atenta contra ele, país, e, por conseguinte, e a limite, contra si próprio. Enigma capital: o que levará um aparelho de estado ao suicídio - à cegueira de não ver que quando agride alarvemente aquilo que o sustém é a sua própria derrocada que escava? Em suma, o que é que transporta aquilo que é suposto ser uma sofisticação civilizacional, num súbito roldão, à barbárie revisitada?
Note-se que quando digo "barbárie" não quero significar apenas o tumulto asselvajado nas ruas, vulgarmente conhecido como "revolução". A revolução é apenas uma barbárie decorrente, uma prossecução, senão fatal, seguramente lógica. Não: é a barbárie inaugural, desencadeadora (e "legitimadora") de todas as outras, que sobremaneira alvejo e que se traduz, por exemplo, em fórmulas aparentemente assépticas como "regime de impostos". Quando este "regime de impostos" mais não camufla que um "esquema de metapredação", não há volta a dar, estamos de regresso à barbárie que só não é pura porque é sofisticada, que só não é selvagem porque é burocrática. Ora, um Estado que assim se coloca fora da civilização, porque atentador-mor contra a vida dos próprios povos, é um mecanismo pária, hipertrofiado e insaciável que, tanto quanto justifica, convoca à legítima defesa. Até porque um Estado que assim age não serve os interesses da sua própria comunidade nacional, mas os meros apetites de partes corruptas dela, bem como as estratégias de potências externas. Como se procede à legítima defesa? Fazendo uma revolução? A revolução é só o culminar da acção desagregadora do Estado. Chamar-lhe solução para o problema é o mesmo que confundir o colapso final dum organismo com o remédio santo da sua cura. A verdade é que não existem remédios santos, abracadabras mágicas nem panaceias instantâneas para infecções e neoplasias cuja génese decorre há séculos. Tão pouco dispomos de ciências, ainda menos históricas, com capacidade de decifração exacta e infalível (que é como quem diz, matemática) da imensidão de factores, condicionantes e incógnitas em jogo. Não é apenas mega-iludido quem assim pensa: é criminoso. E gera, regularmente, ruínas, quando não catástrofes.
O facto é que os reinos, ao descambarem em nações, contraíram o Estado Moderno como quem contrai um cancro - daqueles em forma de necrose particularmente autofágica. De resto, o Estado e o "Mercado" não poderiam ter germinado e crescido um sem o outro (isto é, sem uma circulação desembaraçada de capitais e uma protecção proficiente e estratégica das rotas e das lógicas comerciais) . Estado e Finança são inseparáveis. Entretecem-se e reforçam-se. Afinal, sempre foi preciso financiamento para exércitos e obras públicas. Só que como o Estado em relação à Nação, também a Finança começa por servir o Estado e acaba a servir-se dele. Por outras palavras, assim como a Nação desenvolve um Estado, o Estado desenvolve uma Finança. À medida que se hipertrofia o Estado, hipertrofia-se ainda mais a Finança. Necrose com necrose se paga. Quanto mais o Estado devora a Nação, mais a Finança digere o Estado. De modo que a sujeição nanificante (e nadificante) da nação a um estado descomunal agrava-se pela subserviência deste a uma Finaça desorbitada e exorbitante. E tanto assim é, e tem sucedido, que podemos hoje em dia testemunhar o nosso próprio Portugal a ser estrangulado por um Estado que a Finança traz pela trela.
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