«É uma parábola antiga: ‘um dia, Deus, bom pastor, decidiu recuperar a ovelha perdida. Ponderou que estava na hora do céu festejar o regresso do filho pródigo. Já era tempo do remorso e o arrependimento, a provação e o desterro, terem feito o seu trabalho. Chamou Abel e disse-lhe: “Vai procurar teu irmão que eu ostracizei para longe do meu rosto. Perdoa-lhe e diz-lhe que volte, pois é tempo da alegria voltar a céu!” Abel assim fez. Desceu ao Vale da Morte, nos confins da Ignomínia, onde o Rosto de Deus nunca se debruça, e encontrou o irmão, de semblante carregado e esgar meditabundo, sentado num degrau, junto às portas da cidade. Abel exultou e, de olhos radiantes, exclamou: “Ah, meu irmão, que saudades eu já tinha! Alegra-te! É tempo de deixares cair esse luto que te cobre o rosto. O Senhor nosso Pai enviou-me e eu venho para te dizer que te perdoo. Estás perdoado, meu irmão! Agora levanta-te e vem comigo para que o nosso Pai te reveja e o céu celebre o teu regresso!...”
Donde estava, Caim fitou Abel. Fitou-o de muito longe, dum confim gelado e sombrio. Depois falou:
-“Passaram-se muitos anos. Ajuda-me a levantar, que já estou velho e trôpego.”
Abel acudiu, solícito. E quando ele se baixou para amparar o irmão, Caim, com arte refinada, matou-o, agora a sangue frio, pela segunda vez.’’
(...)
Donde estava, Caim fitou Abel. Fitou-o de muito longe, dum confim gelado e sombrio. Depois falou:
-“Passaram-se muitos anos. Ajuda-me a levantar, que já estou velho e trôpego.”
Abel acudiu, solícito. E quando ele se baixou para amparar o irmão, Caim, com arte refinada, matou-o, agora a sangue frio, pela segunda vez.’’
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E nem sequer é o “homem lobo do homem”, como dizia o hirsuto Marx: é que, ao menos, os lobos têm a ética suficiente para não se comerem uns aos outros. Ao contrário dos homens.
Portanto, tendo em conta tudo o que, desde a História ao quotidiano, parece firmar-se como lógica recorrente e obsessiva, é-nos francamente permitido inferir uma primeira evidência, no que concerne às finalidades cleptocratas: independentemente de quais elas sejam, constata-se, com clareza e antes de tudo, que nunca se alteraram, mantêm-se as mesmas desde épocas imemoráveis. As razões e os motivos da violência – sendo que reside na violência o cerne emblemático da operação cleptocrata –, resistem intactos, incorruptíveis ao tempo e ao uso, quer um quer outro, ininterruptos. Apenas a violência aumentou, desenvolveu-se, exorbitou, numa espiral frenética e orgástica, festim macabro, espécie de cataclismo inesgotável –Antropomoto – em que as sucessivas e cada vez mais destruidoras réplicas outra coisa não repercutem que as ondas, sempre amplificadas, do primeiro golpe. Como se no mundo humano, que a toda a hora se inflama e recrudesce, o fratricídio primordial constituísse, obscuramente, a versão perversa mas efectiva de todos esses princípios originais e activantes que a filosofia ( e a própria ciência) inventariam: do “motor imóvel” Aristotélico ao Big-Bang astrofísico, sem esquecer o “dominó divino” do Mundo-máquina de Descartes. Quer dizer, é como se nesta maquinaria infernal em que, paulatina e inexoravelmente, se vai consubstanciando o mundo, fosse o sangue o combustível energético; e o gesto do fratricídio inicial, congregasse no mesmo acto a infâmia e a demiurgia. Simultaneamente, insinua-se e adivinha-se nesse mesmo mundo a resposta de Caim à maldição divina*:
-“De futuro, serás amaldiçoado pela terra, que, por causa de ti, abriu a boca para beber o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, não voltará a dar-te os seus frutos. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra”. – Sentencia-o Deus.
-“Eu, que não tenho lugar, desterrado e filho de despejado, vou construir o meu próprio lugar. Eu, a quem o sangue do meu irmão veda o cultivo da terra, vou cultivar o sangue do meu irmão.” – Parece ter sido, arrepiante, a resposta. Deveríamos entendê-la, pois vivemo-la na sua insofismável actualidade e presença. A raça de Caim é uma raça irascível e belicosa: “Matei um homem porque me feriu, e um rapaz porque me pisou –se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete.”, garante e prescreve o seu quadrineto. Nem o tempo, nem a história atenuarão a violência, ou abrandarão a cólera e o rancor.
De resto, como já anteriormente explicámos, o mito é intemporal: não refere propriamente um passado, feito e acabado, mas profere, veladamente, um ciclo intempestivo, perene. Aquilo que uma cronovisão botiqueira como a actual chama de “presente” e “futuro” não está imune nem impermeável ao mito. Longe disso. Por muitas barreiras e vedações que se projectem e erijam entre os momentos, na forma de horas, dias, meses, anos, gerações, séculos, por muito que se tente manter os seres ostracizados e aprisionados nessas celas estanques, nem uns nem outros –os momentos e os seres –, são domesticáveis ou encurraláveis a esse ponto. Tais baluartes e estrebarias não passam de ficções grosseiras e aleijadas, convenções utilitárias e mercantis que em nada revelam de autêntico. Manipulam, manobram, manifestam, em suma, ajustam-se e adaptam-se à “mão”, mas não ao espírito. O que quer que está, e sempre esteve, para lá desses embustes, provavelmente flui, sem intervalos nem retalhos, indiferente ao “antes” e ao “depois”, ao “agora” ou “antigamente”. Quiçá, na profundeza, o trajecto de cada existência, mais que um sucesso separado e autónomo, antes traduz um re-viver eterno, uma restauração do ser enquanto apuramento, em suma: uma analépsia pela catarse. Essa seria a dimensão trágica da existência, que os antigos percebiam claramente. E não podia podia estar mais longínqua da actual, tecnoeficiente, cinemática, onde a amnésia e a hibridação imperam. Não obstante, quem olhar sem segundas intenções, lobrigará que detrás dum pseudo-progresso em permanente remodelação e reinvenção é, ainda e sempre, Caim que opera. Apenas a multiplicação se altera, pela mera aceleração: “setenta vezes sete”, ou “setecentos vezes setenta”, ou “sete mil vezes setecentos”, a operação nunca mais pára, numa exorbitância sem fim, numa conta sempre a levedar, com juros e moras. Porque tanto quanto irascível e belicosa, a raça de Caim é uma raça de cobradores. No acto de matar e roubar é também uma forma de indemnização que se consuma: a desforra duma ofensa, prejuízo, carência ou inferioridade. Da mesma forma que uma misofratria que se resolve. Daí ao Blobglob, quintessência daquele homem que não deve nada à vida e ao cosmos, mas a quem tudo e todos devem, com hipoteca e prémio, vai um caminho lógico e uma linhagem insigne.
Essa convicção sublime, também ela incorruptível à experiência e aos tempos, gera frutos providenciais. O primeiro deles é de índole psicológica: o cleptomaníaco (independentemente do grau hierárquico que ocupa na cleptocracia) convence-se que não rouba, apenas cobra. A sua parte, entretanto, deixa de ser a “parte confiada pelo destino” para passar a ser a quantidade que ele tem capacidade de cobrar. Quanto ao alcance e regras da cobrança, são definidos através de contratos, onde ficam consignados a força e a justificação de cada qual. Em suma: estabelece-se o quinhão respectivo. Aparentemente, o contrato estipula a força; mas, efectivamente, é na verdade o contrário que se passa. A evolução histórica comprova-o e concretiza-o.»
- in "O Tratado da Besta" (Helionecrose e Hegemonia - Iª Parte: Ocídio e Odisseia)
Caim construiu cidades para nelas cultivar Tribunais; e fez da sua própria alma uma cidade, que, ano após ano, com energia de formiga e astúcias de aranha, labirinta e fortifica. Nesses tribunais, - no açougue que funciona no rés-do-chão, mais precisamente-, toda a carnificina tem como fulcral intuito o mero ensaio para um único, exclusivo e imarcescível réu: Deus.
"Se, no primeiro dia, expulsaste o meu pai do Teu Paraíso, eu, no último, hei-de expulsar-te do meu Inferno!"
Caim não esquece. Nem perdoa.
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