Íamos os dois, eu mais o Caguinchas, pela rua acima, com o frio a serrar-nos as orelhas. Seguíamos, como deveis calcular, em peregrinação devota a um bordel, coisa fina, coisa de classe, que um qualquer safardana das relações dele lhe havia apregoado como vaza-testículos do outro-mundo.
-"Ó Dragão, aquilo, disse-me o gajo, nem é mudar o óleo: é subir ao sétimo céu!..." – Bradara-me o Caguinchas, excitado, quase a babar-se, meia hora antes.
Envolto num tal chantilly metafísico, de fenómeno transcendente, lá acedi em acompanhá-lo ao interessante estabelecimento, não sem que antes ele me garantisse e jurasse a pés juntos, por alma da mãe, pelo menos umas vinte vezes, que o tabernáculo estaria apinhado de beldades exóticas, cada qual mais formidável que a anterior. Mas não julguem que me ia entregar ao deboche e ao adultério. Não; desta vez não. Desta vez eu era só mais um peão numa estratégia que seria maquiavélica, se não fosse Caguinchiana.
De facto, o Caguinchas engendrara um plano, um plano caviloso e mirabolante. Não sei que idílios putafágicos o outro lhe pintara, que delícias e volúpias estonteantes lhe descrevera. O que é certo é que ele, incendiado nos apetites, metera na cabeça uma daquelas ideias estapafúrdias que traz sempre engatilhadas e prontas para abater, sem dó nem piedade, qualquer esboço de sensatez. Esta não perdia para nenhuma das precedentes. Resumia-se ao seguinte: desta vez, nada de petiscos; destas vez tinha que ser um banquete. Traduzindo: o Caguinchas, assaltado por megalomania fornicadora, não se contentaria com uma das funcionárias: tinha que as comer a todas. E em simultâneo. Em suma: Cismara de açambarcar as putas.
De caminho, para melhor me convencer a secundá-lo e a assessorá-lo na empresa, ia apresentando razões eloquentes para o seu desvairado projecto de monopólio sexual:
-" Um gajo, ó Dragão, tem que mergulhar num mar de mulheres, pelo menos uma vez na vida. Senão não vai daqui baptizado..."
Para que aquele golfinho de bordel não encalhasse irrecuperavelmente nos baixios da heresia, eu contrabalancei com uma ondulação ligeiramente mais filosófica:
-"E há quem sustente, ó Caguinchas, que quem dominar as putas, dominará o mundo!"
-"Dominasse eu as putas e queria lá saber do mundo!..." –Atalhou ele, entre o alucinado e o visionário, qualquer um deles a transbordar de sinceridade.
Percebi que já nenhuma força humana poderia pará-lo. O destino servia-se dele e ele, insuflado pelo Destino, ardia por se servir das putas.
Lá fomos. Ou melhor, lá íamos, como eu principiei por dizer. Faltará talvez acrescentar, a bem da literatura, que palmilhava ele o empedrado tipicamente luso da calçada vestido de Sheik Árabe (pelo menos, ia convencido disso) e acompanhava-o eu mascarado de intérprete. Na complexa, mas todavia singela, lógica do Caguinchas, essa era, sem dúvida, a forma de melhor açambarcar as putas sem contradição. Em primeiro lugar, porque os árabes funcionam ancestralmente com haréns, ninguém lhes estranha por isso o capricho; e em segundo lugar, razão de ser do primeiro, porque são podres de ricos. A pretexto do harém, explicava ele, convocavam-se e açambarcavam-se as putas; a pretexto da riqueza, enganavam-se os donos ou donas delas. Claro está que o Caguinchas pretendia banquetear-se e sair, como sói dizer-se, à francesa. O seu lema predilecto, de resto, enunciava-o sem subterfúgios: "Foder à portuguesa e sair à francesa" (que traduzido dá: "foder e não pagar"). A minha missão naquele previsível embróglio (que só Deus sabe como iria acabar), era argumentar e negociar tudo isso com as indígenas e alcoviteiras, assim que chegássemos ao local do festim.
Entretanto, enquanto íamos andando, ele, debaixo do lençol branco, ia rosnando qualquer coisa.
-"O quê?!...", perguntei eu, sem entender.
-"Estou a ensaiar o árabe." – explicou-me ele.
-"Mas, que diabo, tu não sabes falar árabe!..." – Admoestei-o.
-"E tu, sabes?..." –Ripostou ele, sibilino.
-"Não..." –Tive que reconhecer.
-"Então como é que sabes que eu não sei? – Atirou-me, em triunfo. E desatou numa algaraviada abstrusa, verdadeiramente compenetrado. Arengava pelos cotovelos e gesticulava com eloquência, para dar mais ênfase ao discurso.
Ultrapassando uma breve perplexidade, decidi contra-atacar.
-"Ouve lá, ó Caguinchas: se eu não sei esse árabe que tu falas como é que traduzo o que tu dizes?"
Interrompeu-se, subitamente, a pensar. Mas não pensou muito, pois em menos de nada já me dizia:
-"Porra, ó Dragão, fazes como eu: inventas!"
"Este gajo deve andar a tomar coisas", pensei para com os meus botões. "Estarei a sonhar?..."
Mas não estava. Caminhava, isso sim, em bom ritmo, pela rua acima, direito a "Nãovosdigoonde". Um autocarro amarelo passou por nós e recolheu dois velhotes mais adiante. O Caguinchas continuava a palrar um árabe imaginário e eu, para não lhe ficar atrás, decidi experimentar o japonês de improviso. Ensaiava até, naquele ronco gutural característico, um "ó filho da puta, ainda falta muito?", e ia ele responder-me, presumo, naquele linguajar ululante, um "aguenta lá os cavais, está quase!", quando, ao cruzar-se com o placard publicitário da paragem do autocarro, onde uma Fernanda Serrano horripilantemente prenha se exibia em promoção a não sei que usurário, o Caguinchas estacou, perfilou-se muito sério, embasbacado e, pior que tudo isso, inexplicavelmente silencioso. Tirou mesmo os óculos escuros e pôs-se a mirar e remirar a futura mãe com a maior das atenções.
Eu, que já o conheço, temi. Temi e preparei-me. Pressenti que não ia brotar dali nada de bom. O ar aterrado com que ele se voltou para mim não tardou a confirmar os meus sombrios presságios. Com um misto de angústia e solércia a devassarem-lhe o olhar, o Caguinchas deixou bem claro que estava em vias de ir proferir qualquer prodígio. Eu segurei-me ao chão o melhor que pude e mentalizei-me para a catástrofe. Não em árabe imaginário, mas em portugês de Alfama, as palavras brotaram-lhe, por fim, geladas, abominatórias:
-"Ó Dragão, esta mulher...esta mulher está deformada! Macacos me mordam se esta mulher não foi alvo duma lipo-conspiração!..."
Fiz o melhor que pude para tentar recuperá-lo de volta à órbita terrestre.
-"É a Fernanda Serrano, pá: Está grávida."
Mas o Caguinchas já ia para lá de Júpiter, a caminho de Saturno. Atropelava satélites e pontapeava sondas. Apontando veementemente o infausto placard publicitário, quase vociferava:
-"Não brinques comigo! Eu ainda sei o que é uma mulher grávida. Uma mulher grávida é uma paisagem tranquila, reconfortante, tem luz nos olhos! Esta desgraçada não tem nada disso. Está deformada, exibe-se num estado grotesco. Foi vítima duma monstruosidade qualquer, caralho, difícil de imaginar!..."
-"Lá estás tu, ó Caguinchas!... –Tentei acalmá-lo. – Não vês que as mulheres engordam quando estão grávidas, desatam a enfardar que nem debulhadoras!?...São coisas do caralho, decerto, mas não é caso para um alarme desses!...Irra!"
-"Não me fodas, pá!... Ribombou, indignado, cada vez mais fora de si e quase a evadir-se da Via Láctea. – Não me atires areia prós olhos! Eu bem que desconfiava que andas a ficar nazi: olhas para uma desumanidade destas e achas normal, normalíssimo, trigo limpo farinha amparo!..."
-"Desumanidade?! – Enfureci-me com o exagero. – Então a rapariga toda contente, numa figura toda ufana, a embolsar uma pipa de massa e tu vens-me com desumanidades?!..."
-"Caralho! Foda-se! –Clamou, iracundo. –Olha-me bem para ela! Vá, assesta-me bem essas miras nesta infeliz: quem quer que a desfigurou a este ponto, a este monte de banhas caóticas, horrendas, não pode ser humano!...Isto só pode ser obra de extra-terrestres, alienígenas tarados, emprenhadores vindos de outra galáxia!...Um raio me parta se esta desgraçada, em vez de bebé, não carrega um "passageiro" dentro dela!..."
Esta teoria Caguinchiana da predação intrauterina e intergaláctica não era nova. Pacientemente, ele passava a vida numa espécie de recolhimento laboratorial, a aperfeiçoá-la, a reunir provas, a pesquisar notícias. Para ver se saíamos daquele impasse e ele se calava de vez, lá me dei ao trabalho de contemplar o putativo aleijão com todas as minúcias que me eram requeridas. Antes não o tivesse feito.
Olhando bem para a rapariga, absolutamente irreconhecível de facto, uma certa repulsa começou a entranhar-se-me no espírito. A beldade de outrora, com que a memória paliava a realidade actual, cedia lugar a um doloroso estafermo. Para meu grande espanto, a teoria do Caguinchas já nem me parecia tão absurda quanto isso. Lembrei-me então do anormal - do trondão alvar - com quem a moça casara. Resignado, tive que admitir:
-"Pronto, pá. O país e o planeta, realmente, estão cada vez mais infestado de extra-terrestres. És capaz de ter razão. Talvez tenha sido mais um caso daquilo a que os especialistas chamam "alien-abduction e tu classificas como "lipo-conspiração"!...Satisfeito?"
Só que uma imensa tristeza instalara-se no Caguinchas. Uma tristeza que nem o triunfo científico sem precedentes amenizava.
-"Isto dá-me arrepios." – Murmurou, soturno.
-" Pois, mas adiante! – Tentei animá-lo. – Deixa lá isso; as putas estão à nossa espera!..."
Mas debalde. O Caguinchas ficara mesmo impressionado com o desastre. Com um luto magoado na voz, pouco mais conseguiu que gemer:
-"Eh pá, Dragão... vamos deixar as putas pra outro dia. Isto até me tirou a tesão!..."
Só espero que não venha a sofrer de stress pós-traumático.
7 comentários:
Que maravilha!...
Leva o caguinchas a fazer um exame prostático...!
Como o seu amigo Caguinchas, também fiquei preocupado com o desfecho, dessa meditação sobre ‘O internacionalismo...’, nunca iv(m)aginara o Dragão num dilema semelhante... Já viu o estado em que ficariam as mãezinhas deles?... cheias de passageiros!?...
Sempre estou para ver qual será o desafio, que certamente irá propor ao seu amigo Caguinchas, para o livrar dessa fatalidade, o stress pós-taumático!?...
Embora muitas vezes; “por bem fazer, mal haver...” o certo é que “Amor com amor se paga...” E bendito quem tem amigos.
Bem haja, caríssimo Dragão.
Esse Caguinchas existe mesmo?... :):)
N.L.
Obrigada por esta 'peça'.
Pase un rato que piensa de �l, pero no trabaje demasiado dif�cilmente.Genuinely, Mayme norwalk tummy tuck
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