quarta-feira, abril 30, 2008

Animal zenital


«In the modern and scientific study of race we have long discarded the Adamic theory that man
is descended from a single pair(...)
«We now know, since the elaboration of the Mendelian Laws of Inheritance, that certain bodily
characters, the so-called unit characters, such as skull shape, stature, eye color, hair color, and
nose form, are transmitted in accordance with fixed mathematical laws (...)

«Onde o altruísmo, a filantropia ou o sentimentalismo intervêm com a melhor das intenções, e proíbem a natureza de penalizar as dasafortunadas vítimas da procriação descuidada, a multiplicação de tipos inferiores é encorajada e promovida. Esforços para preservar indiscriminadamente os bebés entre as classes mais baixas resultam frequentemente em danos sérios para a raça.
Erros no que se acredita serem leis divinas e uma crença sentimental na santidade da vida humana, tendem a impedir a eliminação de crianças deficientes e a esterilização de adultos sem qualquer valor para a comunidade. As leis da natureza requerem a obliteração dos inaptos, e a vida humana é valiosa apenas quando é útil para a comunidade ou a raça.
(...)
Um sistema rígido de selecção através da eliminação daqueles que são fracos ou inaptos –por outras palavras, falhanços sociais -, resolverá todo o problema em cerca de cem anos, ao mesmo tempos que nos possibilitará livrar-nos dos indesejáveis que se acumulam nas prisões, hospitais e manicómios. (...) Esta é uma solução prática, piedosa e inevitável de todo o problema, e pode ser aplicada a um círculo alargado de descartáveis sociais, começando sempre pelos criminosos, os doentes e os loucos; e estendendo-se, gradualmente, aos tipos que podemos classificar mais como fracos que defeituosos e, talvez, por fim, às raças imprestáveis.»
- Madison Grant, "The Passing of the Great Race" (Pode ser lido/consultado on-line, AQUI.)

Publicado em 1916, "The Passing of the Great Race", constitui o manual de eugenia que virá a ser aplicado pelo regime de Adolf Hitler. Está lá tudo e foi seguido à risca.
Todavia, por muito ignóbil que tenha sido neste campo o nacional-socialismo, e foi-o sem sombra de dúvida, tão infame e certamente mais estúpida é aquela ladainha que apregoa que resultou, tão vil monstro, de irracionalismo, ateísmo e mais não sei que parvoíces para entreter papalvos. Quando, bem pelo contrário, é mais que patente que foi corolário lógico do pensamento mecanicista, "científico" e da nova religião que lhe anda dependurada a servir, simultaneamente, de chifres e cauda. Direi mais: modelo mais cristalino de coerência é difícil. Pura axiomática em movimento, benza-a Deus.
Da mesma forma que Grant é o culminar de Darwin e de todos os seus predecessores e derivações. A sua piedosa teoria, impregnada daquele horror à procriação tão típica do húmus protestante (Malthus está em Darwin, como Darwin e Malthus estão em Grant), é plenamente racional e científica. E moralmente neutra, como lhe compete. Todo ele, de resto, transpira método, objectividade pura. Grant, além disso, como me vem explicando furiosamente a récua de peritos em ciência de pacotilha, é um cientista imaculado. Não tem culpa das aplicações criminosas da sua teoria. E criminosas, diga-se, apenas porque os aplicadores perderam a guerra. Caso contrário, estou seguro, "The Passing of the Great Race" faria parte da cartilha da instrução primária.
Por outro lado, animemo-nos: o manual da nova eugenia que se pressente já ao virar da esquina, tem um título bastante mais apelativo:
«The Passing of the Great Market».

terça-feira, abril 29, 2008

Do Reino Animal ao Terceiro Reino

Devolvido ao reino animal, sujeito às leis mecânicas da restante bicharada, o homem torna-se apenas um espécime mais desenvolvido -um animal superior - cuja alma é produto apenas do seu corpo. Por um lado, isto significa que o homem se torna "o animal doméstico de si próprio"; por outro, que adquire as características típicas dos animais domésticos, designadamente, a raça. Podem, assim, e doravante, criar-se e melhorar-se homens como se criam e melhoram cães, ou cavalos, ou ovinos. Este será o fascínio de Francis Galton, primo de Darwin e pai da eugenia. Mas juntamente com ele, em paralelo com ele, ou movidos de semelhante axiomática, na senda da nova antropologia racial, outros peregrinos avançam. Especialmente na Alemanha, onde Haeckel estabelecera a história do homem como mero fragmento da história do mundo orgânico. Como é o caso de Woltmann. Abandona os elementos psico-culturais em prol da estrutura física. Condena o método de escrever história como relato da evolução das instituições e ideias políticas. Advoga, ao invés, uma modalidade que proporcione uma descrição da evolução das diversas raças humanas. Segundo ele, estas encontram-se tão sujeitas às leis naturais - hereditariedade, variação, adaptação, selecção natural, hibridismo, progresso e decadência - quanto quaisquer outros organismos vivos.
No virar do século, Woltmann, que estudara com Haeckel, é tido como o campeão da ideia da "raça nórdica superior", cuja defesa e manutenção propala na revista racista Politisch-anthropologische Revue, por ele próprio fundada em 1902. Antes disso, em 1900, participa no concurso académico patrocinado por Alfred Krupp, sob o tema: "O que podemos aprender dos princípios do Darwinismo para aplicação ao desenvolvimento político interno e às leis do Estado?"
Em obras posteriores, todavia, esforça-se por fundir as ideias de Marx com as de Haeckel. Embora crítico das posições deste em relação ao socialismo, aceita a sua tese fundamental que estipula um paralelismo exacto entre as leis da natureza e as leis da sociedade. A partir daí, Woltmann transforma o conceito marxista da "luta de classes" no conceito mais darwinizado da "luta mundial de raças". E é a essa luz que descreve os alemães como o padrão mais elevado da humanidade. Segundo ele, a suas perfeitas proporções físicas expressariam uma superior intelectualidade e um espiritualidade mais profunda. Avisa dramaticamente contra as misturas, nefastas contaminações que só podem causar a deterioração desta raça superior.

Outro antropólogo racial alemão, ainda mais próximo do social-darwinismo de Haeckel, é Otto Ammon. Acredita igualmente que as leis da natureza - luta pela existência, desigualdade, etc - são as leis da sociedade humana. Na senda de Haeckel, advoga que o Darwinismo deve tornar-se a nova religião alemã. E vaticina que, graças ao monismo evolucionista, chegará o dia em que filosofia e religião chilrearão de contentamento e unanimidade. Acredita também que a "luta de raças" traduz uma necessidade de apuramento da espécie humana. Apenas quando as raças mais débeis desaparecerem, diagonstica, poderá extrair-se o cabal benefício de todo esse formidável processo para toda a humanidade. Naturalmente, Ammon também reconhece nos alemães o exemplo acabado da superioridade racial e sugere mesmo um retorno à matriz tribal alemã, de vitalidade brava ainda não arrefecida pelos equívocos da civilização cristã.

Galopantemente, portanto, a ciência deslumbra-se com o invólucro humano. Mais importante e determinante que a alma, outrora legada por Deus, torna-se agora a embalagem fabricada pela natureza. A aventura iniciada no Homo-faber medieval atinge finalmente o seu desenlace lógico: a Homo-factura. O pensamento pode medir-se e avaliar-se agora a peso -da massa encefálica -, e a metro - da caixa craneal. De Lapouge, outro destes prospectores visionários da raça, di-lo expressamente em 1888, na Revista de Antropologia, sob o título "A hereditariedade na ciência política": "Quase todos os grandes homens pertencem à raça dolicocéfala, de cabelo louro, ainda quando alguns pareçam pertencer a outro povo. Não me surpreenderia que a cultura desenvolvida por algumas outras raças, se deva à circunstância de se terem misturado elementos dolicocéfalos de cabelo louro com outros de sangue mais espesso, mistura, essa, que foi dissimulada pelo passar do tempo. Esta mesma raça de cabelo louro constituía provavelmente a classe dirigente do Egipto, Caldeia e Assíria. O facto está quase demonstrado para a Pérsia e para a Índia, e é possivelmente certo na antiga China. A sua importância na civilização Greco-Romana está praticamente demonstrada, e nos tempos modernos a influência das diversas raças vivas é directamente proporcional ao número de dolicocéfalos louros nas classes dirigentes da sua população. Desta raça provêm os elementos gauleses e francos que propulsionaram o esplendor da França; o mesmo povo dava vida e movimento às massas na Alemanha.»

Finalizo com um excerto duma obra publicada em 1899. Haveria de tornar-se um dos alicerces teóricos da arquitectura mental do Terceiro Reich... E qualquer derivação de todo este húmus que vimos analisando não é pura coincidência.

«Não falo de teorias, discuti-las-ei mais adiante; mas seja qual for a forma que a teoria assuma, daqui em diante será sempre “mecânica”, isto é, a inexorável exigência do pensamento Teutónico, pois apenas assim pode ele manter o mundo externo e o mundo interno agindo e reagindo beneficamente entre si. Isto é tão constantemente verdadeiro a nosso respeito que eu não posso de maneira nenhuma perspectivar a doutrina do mecanismo como uma “teoria”, e, consequentemente, como pertencendo à “ciência”: penso que devo antes vê-la como uma descoberta, como um facto estabelecido. O filósofo pode justificar isto, mas o progresso triunfante das nossas descobertas tangíveis é suficiente garantia para o homem comum; pois o pensamento mecânico, fielmente seguido, tem sido, desde os primórdios até hoje, o fio de Ariadna que nos tem guiado seguramente através das inúmeras vias do labirinto do erro. (…) Aquilo que no mundo da experiência empírica nos tem conduzido e nos continua a conduzir para fora das trevas e na direcção da luz foi e continua a ser a nossa firme adesão ao mecanicismo. Através disto – e apenas disto – adquirimos uma massa de percepções e um comando sobre a natureza jamais igualados por qualquer outra raça humana.
O mecanicismo na filosofia e o materialismo na religião são eternamente irreconciliáveis. Aquele que interpreta mecanicamente a natureza empírica, tal qual esta é percepcionada pelos sentidos, adquire uma religião ideal ou nenhuma religião; tudo o resto é consciente ou inconsciente auto-decepção. O Judeu desconhece qualquer tipo de mecanicismo: desde a criação ab nihil até aos seus sonhos dum futuro messiânico, tudo nele revela o regime livre duma arbitrariedade toda poderosa; essa é a principal razão porque ele nunca descobriu nada; para ele apenas uma coisa é essencial: o Criador; isso explica tudo. As noções mágicas e místicas sobre as quais se baseiam todos os nossos sacramentos eclesiásticos, assentam num plano ainda mais baixo de materialismo; pois eles significam principalmente uma mudança de substância e são, por conseguinte, nada mais nada menos que alquimia das almas. O mecanicismo consistente, em contrapartida, como nós, Teutões, o criámos e do qual já não podemos mais escapar, é compatível apenas com um ideal puro - isto é, transcendente - de religião, como aquela que Jesus Cristo ensinou: o Reino de Deus está em vós. A Religião para nós não pode ser relato crónico, mas apenas experiência – íntima e directa experiência.
Durante quantos mais séculos teremos que arrastar o grilhão da fraude consciente de acreditar em absurdos como a verdade revelada? Não sei. Mas espero que não seja por muito mais. Pois o desejo ardente de religião está a crescer tão forte e imperiosamente nos nossos peitos que, necessariamente, chegará um dia em que esse anseio derrubará o carunchoso e obscuro edifício, e então nós sairemos para o novo, brilhante e glorioso reino que há muito nos aguarda. Essa será a coroa para o trabalho teutónico da descoberta.»
- Houston Stewart Chamberlain, "Foundations of the Nineteenth Century" (trad. livre)

segunda-feira, abril 28, 2008

Novos comentários

Foi feito um upgrade no sistema de comentários aqui do batel. Evoluímos para o Haloscan. Um comentódromo, reconheça-se, muito mais vantajoso: além da censura, permite a edição - que é, como todos sabemos, uma solércia muito mais moderna e progressista. Eu trato da primera, o Engenheiro Ildefonso trata da segunda.
Entretanto, num ímpeto assassino digno dos melhores devaneios de Darwin, o Haloscan deu sumiço aos outros comentários. A ideia era manter as duas modalidades. Mas, pelos vistos, o Haloscan era mais apto e, na luta pela existência, trucidou o mais fraco.

domingo, abril 27, 2008

Do Reino divino ao Reino animal

«Enquanto o interesse táctico ordena que as correntes anti-semita e anti-cristã não se aliem abertamente, tecem-se, entre a opinião anti-semita e a reflexão no domínio das ciências naturais, relações complexas. A tese darwinista da "sobrevivência dos mais aptos" conquistara os espíritos no novo Reich, tanto mais facilmente quanto a fundação do Estado-nação alemão, que consagra a vitória sobre o "inimigo hereditário" francês, parecia oferecer a confirmação política desta teoria biológica. Por conseguinte, foi o zoólogo de Iena, Ernst Haeckel, que insuflou no darwinismo alemão um impulso anti-cristão. (...) Neste final de século, o homem que acredita na ciência encontra no monismo panteísta, tal como é descrito, em 1899, por Haeckel, em Os Enigmas do Mundo, uma lei conveniente. O monismo, definido como "um laço entre religião e ciência", coloca como "núcleo da verdadeira religião (...) uma ética baseada numa antropologia racional".
A crença num "Deus criador personificado e taumaturgo", em suma, na "mitologfia cristã", é, apenas, para os monistas, "superstição" desusada, pois todos sabem, doravante, que o Homem resulta de um desenvolvimento natural na evolução do reino animal e que a alma se reduz a uma - efémera - "função da crosta cerebral".
De uma maneira geral, os monistas não se empenham no movimento anti-semita. Contudo, esta corrente recebe a simpatia de Haeckel que vê nela um factor de reforço do sentimento nacional.»
- Éduard Conte; Cornelia Essner, "A Demanda da Raça"


Para aqueles que possam pensar que Haeckel distorceu ou abusou das teorias de Darwin, convirá talvez ponderar no que o próprio Darwin escreveu aquando da publicação da principal obra de Haeckel, "História da criação natural":
«Se este livro tivesse surgido antes de eu ter escrito o meu ensaio ("Sobre a descendência do homem"). provavelmente não o teria terminado nunca. Quase todas as conclusões a que cheguei, encontro-as confirmadas por este naturalista, cujos conhecimentos, em muitos pontos, são mais extensos do que os meus.»

sábado, abril 26, 2008

Evolução, revolução, metavolução






Bem, se se chama evolução à transformação dum T.Rex num galináceo então já nada me surpreende. A não ser, talvez, o desembaraço no formidável -e, pelos vistos, fatal -processo. Assim, por exemplo, aquilo que o terrível dinossauro só logrou ao fim de milhões de anos de ginásticas e contorções, os portugueses conseguiram quase instantaneamente, num só dia. Justo foi que lhe chamassem revolução. E em menos de trinta anos, pasme-se, de galináceos evoluíram consistentemente para gastrópodes. Isto, a generalidade da população. Porque as elites, essas, já evoluem num grau ainda mais avançado: lumbricóides.

Dia da Carochinha (rep)



Nem reparei, mas parece que ontem foi Dia da Carochinha...
Cantemos, pois:

Da Nação fizeram Nacinha.
Por via de Revolução?
Não,
por via de revolucinha.

Do farão ficou farinha.
Cabe dentro dum caixão?
Não,
cabe dentro duma caixinha.

Da intenção restou sentencinha.
Trataram do povão?
Não,
trataram da vidinha.

E a Grande Marcha (do Pogresso) ficou murchinha.
Perderam a tesão?
Não,
perderam a espinha.

Salvou-se a corrupção agora rainha.
Venderam-se em leilão?
Sim,
e mais à puta da alminha.

sexta-feira, abril 25, 2008

As regressões evolutivas

Por especial prece do Despastor, mas também porque, a esta hora, alguns abutres eruditos e outros sorbonícolas de arribacinha que sempre pairam em anunciação pingada já não devem aguentar mais as comichões, antecipo um capítulo assaz nevrálgico: recebeu Nietzsche influências de Darwin e da sua "lei da selva"? Adianto que não foi uma nem duas vezes que vi escrito em livros que sim. Os passarões de plantão até já devem estar a casquinar: "ah, sempre quero ver como este energúmeno vai descalçar a botifarra!..."Pois bem, sem mais delongas nem acepipes, respondo já frontalmente: entendo que não.

E convoco à barra o próprio:

«Se alguns filósofos viram - se não puderam impedir-se de ver -o elemento decisivo da natureza humana, naquilo a que se chama instinto de conservação -, devemos encontrar aí um sintoma; é que estavam precisamente em plena angústia. E se as ciências naturais se complicaram tanto nos nossos dias com o espinosismo (o darwinismo dá o mais recente e mais grosseiro exemplo no incrível sectarismo da sua doutrina da luta pela vida), isso deve-se muito provavelmente à origem da maior parte dos nossos sábios: pertencem ao "povo" neste domínio; os seus antepassados eram pobres e gente simples que tinham conhecido de muito perto a dificuldade de governar a vida. Todo o darwinismo britânico está mergulhado num bafio inglês de ar viciado, de superpopulação, de miséria, de tacanhez. Mas quando se é naturalista devia-se saber sair do seu recanto humano; o que reina na natureza não é a penúria, a tacanhez: é o excesso, o desperdício, uma loucura de desperdício. »

(-Nietzsche, "A gaia ciência", frag.349)

Em suma, Nietzsche refere algumas tipicidades já aqui apontadas em relação ao darwinismo, a saber, a) malthusianismo encapotado; b) demo-sofística sufragante (isto é, uma sapiência/ciência que inverte a via eruditiva/aristocrática: conquista primeiro a população e só depois, a partir dessa pressão popular, avassala a academia, ou seja, é propaganda científica antes de se tornar ciência consagrada - como foi precisamente o caso do darwinismo na Alemanha, por dinamização de Haeckel); c) sectarismo. Mas adiciona uma outra pista deveras interessante: espinosismo. E, de facto, o panteísmo imanentista de Espinosa havia preparado e fertilizado o terreno para a Natura Lex que Darwin, doravante, planta no trono absoluto da existência e que encontra no monismo de Haeckel uma expressão particularmente emblemática. A matéria torna-se a substância dum universo atomizado.
O leitor menos familiarizado com estas matérias interrogar-se-á que raio quer dizer isto de espinosismo. De modo a facilitar-lhe a digestão, direi que, muito sucintamente, o que Espinosa faz é minar (há quem diga demolir) o edifício filosófico-político erigido sobre o fundamento da transcendência - Deus, Razão, natureza (nas suas respectivas derivações: rex, livre arbítrio e ordem jurídica natural); e junto com isso o essencial da teleologia anexa. O Deus de Espinosa não está fora do mundo: é o próprio mundo na sua substância. Por via duma causalidade imanente, o todo da Natureza Naturante e da Natureza Naturada constitui a unidade eterna e infinita cujo nome é, segundo Espinosa, Deus. Daí a expressão que ficou famosa Deus sive Natura - Deus, ou seja, a Natureza. É por isso que no darwinismo e na generalidade do materialismo naturalista do século XIX há muito Espinosa regurgitado. Como Nietzsche, sagazmente, passe a redundância, aponta.
E mais adiante, para ficarmos com uma ideia ainda mais abalizada da estima que lhe merecia o "evolucionismo darwinóide", diz ele a propósito de Herbert Spencer, o filósofo evolucionista, progenitor do "darwinismo social":
«O que provoca, por exemplo, o entusiasmo particular do pedantesco e britânico Herbert Spencer, que delira à sua maneira, o que lhe faz traçar a linha de horizonte, a linha de esperança no limite do desejável -quero dizer, essa reconciliação do "egoísmo" e do "altruísmo" com que divaga -, não desperta em nós, ou quase, senão nojo: a humanidade que só tiver como horizonte definitivo as spencerianas perspectivas há-de parecer-nos digna de desprezo e aniquilamento!»
E daqui, Nietzsche avança com a artilharia contra a questão de fundo (do mecanicismo materialista), e aponta o camartelo ao barracão da confraria (o cientismo contabilista):
«O mesmo sucede com a fé com que se satisfazem hoje tantos sábios materialistas que acreditam que o mundo deve ter a sua medida às nossas pequenas escalas e o seu equivalente no nosso pequeno pensamento; acreditam num "mundo do verdadeiro" que a nossa pequena razão humana, a nossa pequena razão grosseira, poderia finalmente vencer... Pois quê! Queremos nós verdadeiramente deixar que assim se degrade a existência? Deixá-la rebaixar ao nível de exercício de cálculo, fazer dela uma pequena punição para matemáticos? Em primeiro lugar, é preciso recusar a todo o custo despojá-la do seu carácter prometaico; é o bom gosto que assim o exige, meus senhores, o respeito por tudo o que ultrapassa o vosso horizonte! Que só valha uma interpretação do mundo que vos dê razão a vós, uma interpretação que autorize a procurar e a prosseguir trabalhos no sentido que vós dizeis científicos (é mecânico que vós pensais, não é verdade?), que só valha uma interpretação do mundo que não permita senão contar, calcular, pesar, ver e tocar, é despropósito e ingenuidade quando não é demência ou idiotia. Não é provável, pelo contrário, que a primeira coisa, e talvez a única, que se possa atingir da existência, seja a que ela tem de mais superficial, de mais exterior, de mais aparente? A sua epiderme apenas? As suas manifestações concretas? Uma interpretação «científica» do mundo, tal como o entendeis, meus senhores, poderá ser, portanto, uma das mais estúpidas entre todas as que são possíveis: seja dito isto ao vosso ouvido, à vossa consciência, mecânicos da nossa época que vos misturais de tão bom grado com os filósofos e que imaginais que a vossa mecânica é a ciência das leis primeiras e últimas e que toda a existência deve assentar nelas, como numa base necessária. Um mundo essencialmente mecânico! Mas havia de ser um mundo essencialmente estúpido
(-Nietzsche, "A Gaia Ciência", frag.373)

O que não deixa de ser espantoso é ser esta, ainda hoje, o essencial da crítica que pode fazer-se -e que, de resto, eu venho fazendo -, aos epígonos da má raça. Basicamente, porque, dir-se-ia, entraram estes em regressão esquizóide. O que se por um lado em nada abona das putativas evolucionices, por outro só revela do carácter requentado, serôdio e patarata da modinha. São as nostalgias douradas do ferro-velho, os tremeliques palingenéticos das sucatarias ideológicas.
E o maior atestado de imbecilidade, canineira e tronchice desta acéfala choldra é que ainda não percebeu donde lhe chove. Condicionados às suas zaragatas de liliput, confundem a micção de Guliver com gafanhoteio criacionista do bando de micróbios rival.

terça-feira, abril 22, 2008

A evolução da espécie

Para aqueles que acham que as teorias científicas são uma espécie de supra-sumo angélico acima das contingências do mundo, da propaganda e das manias dos homens, nada como relembrar-lhes a recepção das ideias de Darwin na Europa do seu tempo.
Em Inglaterra, os amigos de Darwin - Huxley, Hooker e Lyell -, como lhes competia, prepararam o público para a Boa Nova. Desdobraram-se em artigos transbordantes de lógica e persuasão retórica no The Thimes, Saturday Review, London Review, Atheneum, Edinburgh Review e vários outros. Buckle, Mill e Spencer apoiaram. De todo este "darwinismo", verdade se diga, o menos frenético e efervescente era o próprio Darwin. A velha distância entre o profeta e os sacerdotes, quiçá... Contra Darwin, todavia, também se pronunciaram vozes, e não apenas as esperadas do clero mais cioso. Destacaram-se, entre os discordantes, Owen, Mivart e o duque de Argyll. Mas, por fim, dado que se tratava duma mui natural excrescência mental sua, a Inglaterra utilitária e pragmática compenetrou-se da nova teoria.
Em França, porém, onde imperava a tradição de Cuvier, e a claridade de expressão, a exactidão do método e a experimentação ditavam as regras, as novas ideias foram recebidas com olímpica frieza. Os sucessores de Cuvier - Fourens, de Quetefrages, Milne-Edwards, Brogniard, Barrande, entre outros-, recusaram a nova concepção. Claude Bernard e Pasteur, os principais patronos do pensamento biológico francês, na época, foram antidarwinistas (o que não admira, dado tratarem-se claramente de dois energúmenos obscurantistas). A Academia francesa alinhou pelo mesmo diapasão e não passou cartão ao caso. Tirando alguns escritores populares, o zoólogo Martins e o filósofo Soury, mais três ou quatro científicos obscuros, Darwin não convenceu os franceses.

Em contrapartida, na Alemanha a nova teoria viria a transformar-se em verdadeira escola de pensamento. Foram os escolares alemães quem lhe conferiu uma forma lógica e dogmática. Os jovens cientistas que queriam estudá-la passaram a deslocar-se à Alemanha, onde recolhiam os novos ensinamentos junto de Haeckel, Weismann e outros. O entusiasmo alemão por Darwin foi enorme e muito superior à própria Inglaterra, onde o darwinismo nunca foi ensinado como um sistema científico.
Mas o mais curioso foi como a própria teoria se viu recebida pelos dois campos rivais, ao tempo, no pensamento alemão: os aristocráticos e os democráticos - respectivamente corporalizados na filosofia e nas ciências exactas -, bem como a subsequente querela no seio dos segundos.
Com efeito, a filosofia cultivava ainda aquele preceito antigo do desprezo pelo trabalho manual e pelo serviço prático, mais típico do escravo que do homem livre. Acreditava que mediante processos puramente intelectuais poderia deduzir leis para as ciências e para a ética -num certo sentido, em seu entender, aos cientistas competia-lhes recolher os dados e apresentá-los; aos filósofos competia-lhes pensá-los e organizá-los sistematicamente. Colocar os cientistas a fazer o trabalho dos filósofos era o mesmo que entregar a arquitectura aos trolhas e mestres-de-obras. Daqui resultava uma natural preponderância do intelectual sobre o prático, bem como a sujeição do homem mediano ao génio extraordinário. Hegel, com raro mérito neste particular caso, funcionava como patrono desta perspectiva.
Naturalmente, quem não estava pelos ajustes eram os trolhas e mestres-de-obras. Ambicionavam o estirador e a assinatura dos projectos. Ou achavam que dispensavam bem essas subtilezas. Protagonizados por Vogt, Moleschott, Virchow, Brüchner e outros génios imortais, sutentavam que o conhecimento devia impregnar todo o povo e perseguir fins utilitários e práticos. Ao contrário dos filósofos, escreviam num estilo fácil, dirigido ao público em geral e debruçavam-se sobre tudo e mais alguma coisa, inclusivé filosofia, alma, governo e outras matérias pouco "práticas". Ficou famosa a ideia de Moleschott que propôs a dado momento que os cemitérios fossem usados para a agricultura já que estavam muito bem adubados. A metáfora, todavia, era dupla: significava também submeter todo o edifício cultural do passado, com todos os seus ilustres defuntos, à charrua dos novos cavadores utilitaristas e lavradores demagogos. Esta boa gente, naturalmente, e por dever de coerência, tratou de embrenhar-se pelos meandros da política com à vontade dos pragmáticos.
Pois bem, quando o darwinismo atingiu a Alemanha, o campo democrático, ao contrário do campo filosófico/aristocrático (que vaiou e vituperou), devotou-lhe uma recepção francamente amistosa. Dum modo geral, aceitaram-no, com maior entusiasmo ou alguma prudência (como foi o caso de Virchow).
Contudo, para quase todos estes cientistas a teoria devia seguir os trâmites normais das novas teses, cumprindo como qualquer outra a via sacra académica: ser analisada e discutida exaustivamente nas universidades e, posteriormente, daí filtrada para as publicações populares e a divulgação mais generalisada. E digo quase todos, porque houve um que fez a diferença: Haeckel. Começara por ser aluno e depois assistente de Virchow; era dotado dum espírito particularmente obstinado, enérgico e dogmático. Na sua mente peculiar, uma ideia, uma vez adoptada, tornava-se artigo de Fé quase imediato. Quando descobriu Darwin, não demorou a cofeccionar um perigoso caldo mental com as ideias deste mais as de Virchow. Em conformidade, passou a considerar como dogmas irrefutáveis e axiomas basilares do saber humano: 1. que não existia mais que átomos e seus movimentos; 2. que o homem descendia do macaco. Daí a partir em campanha pública pela nova devoção foi um instante. Com um entusiasmo só ao alcance dos fanáticos e uma convicção digna dos profetas, desatou a ensinar publicamente que «o maior triunfo do espírito humano, que é o conhecimento das mais fundamentais leis da natureza, não deve ser património exclusivo duma classe intelectual privilegiada, mas, ao invés, deve converter-se em propriedade comum de toda a humanidade.»
Com que tipo de átomos imaginava ele o espírito humano não vem agora ao caso. O certo é que a sua estrénua e entusiástica prédica não foi em vão. Vários filósofos facilmente sugestionáveis trataram de engravidar pelos ouvidos e correram a abraçar o apostolato da causa. Através de cursos, livros e artigos na imprensa, Jaeger, Seidlitz, Dodel, Dumont, Büchner, Schmidt, E. Krause, von Hellwald, Preyer, Rolle e vários outros, cuidaram de transmitir todo o seu arrebatamento ao bom povo alemão. Krauser fundou mesmo a revista Kosmos, em 1877, exclusivamente dedicada à difusão da correcta crença. O "Despertai" das testemunhas da macacada, por assim dizer. O ambiente de cerrado materialismo e lesto radicalismo que se vivia na época favorecia todas estas propagações e mais algumas. Um proselitismo febril apoderou-se de certas redacções...
Não tardaria, porém, a eclodir outro cisma. Agora entre os próprios "democratas". Por um lado, devido ao exagero radical de Haeckel e suas hostes, que já devaneavam e propugnavam pela inclusão urgente do darwinismo - essa certeza indiscutível, essa revelação absoluta! - nos programas do ensino secundário (qualquer semelhança com neo-catecismos hodiernos é pura coincidência). Por outro, devido ao visível idílio que decorria entre a nova teoria e os "sociais-democratas" - aqueles simpáticos cavalheiros que enxameavam em redor das teses de Marx e Engels. De facto, encantados com as faculdades materialistas, anticlericais e mundi-visionárias da teoria darwiniana, os socialistas acolhiam-na e afagavam-a como se de uma aliada valiosa se tratasse. Isso mesmo denunciou Virchow, que reconhecia agora no socialismo um perigo real e no darwinismo os desvarios duma crença. Uma tal associação, em seu entender, só podia redundar numa coisa: revolução. Perante esta alarmante denúncia da conexão entre a democracia social e a teoria evolucionista, Schmidt, um dos partidários de Haeckel, prontificou-se a desmentir qualquer possibilidade de idílio. Declarou peremptoriamente que não era razoável qualquer afinidade entre o socialismo e o darwinismo. Pois neste, a não ser nos estágios mais básicos do desenvolvimento dos animais sociais, a igualdade indiferenciada cedia passo ao egoísmo galopante dos indivíduos. Além de que as ideias igualitárias socialistas contradiziam os factos da selecção natural.
Mas a polémica estava lançada: a doutrina darwinista era essencialmente democrática ou aristocrática?
Manifesto era que nela se salientavam algumas concepções anti-aristocráticas, a saber:
1. A selecção dos mais aptos baseava-se num cego processo mecânico de luta pela existência. O basilar de qualquer pensamento aristocrático não estava presente: o triunfo decorrente dum mérito individual resultante dos próprios meios. Além disso, a Aristocracia é um conceito fundamentalmente ético. Ora, Darwin retirava a ética da natureza. Imperava doravante a brutalidade pura.
2. A noção da influência determinante do meio sobre o organismo.
Poderíamos ainda referir a matriz preponderantemente democrática do pensamento socio-político dos principais promotores do Darwinismo, desde o fundador ao próprio Haeckel.
Não obstante, na medida em que os socialistas eram vistos por todos eles como uma evidente ameaça ao Estado vigente, que de facto até eram, havia necessidade de cultivar uma separação e afastamento bem vincados. Caso contrário, era a própria divulgação evangélica que ficava em risco, por desconfiança e repressão das autoridades. Haeckel e os seus sentiram-se assim no dever de reforçar a propaganda da nova teoria como uma doutrina de cariz profundamente desigualitário, celebradora do individualismo egoísta, no estreito cumprimento das inexoráveis leis naturais, repito, estritamente mecânicas. Saliente-se que Haeckel procedia a uma transposição radical que o texto da "origem das espécies" apenas esboçava: integrava, sem grandes ressalvas ou critérios, a espécie humana no concerto geral das restantes.
Enquanto isto, os socialistas pressentiam as potencialidades "democráticas" (entenda-se: terraplenantes) da nova filosofia; coincidiam com os darwinistas na luta contra a Igreja e a filosofia idealista; e concordavam com as suas perspectivas completamente materialistas sobre a humanidade. E se os seus principais representantes (dos darwinistas) eram oriundos do hegelianismo, isso em nada os perturbava: não tinham por lá gatinhado também materialistas de boa cepa como Strauss e Feurbach?
O resultado de toda esta caldeirada foi o darwinismo, na Alemanha (ao fim e ao cabo, a sua incubadoura científica) ter-se tornado duma abrangência altamente ambígua, aparentemente paradoxal: de facto, enquanto grelha a aplicar ao homem, híbrido de pseudo-aristocracia com democracia comunista. Uma mistura explosiva que havia de consolidar e fermentar ao longo dos decénios seguintes. Até que, desse tronco quimérico, por via dos enxertos da eugenia e das modas racialógicas, acabaram por brotar frutos bizarros.
Lá iremos.
Ensinou-me o meu avô: convém malhar enquanto está quente.

segunda-feira, abril 21, 2008

A lei da selva



Poderíamos pensar que o sucesso da teoria de Darwin teria que ver apenas com o ajustamento da explicação à realidade. Mas na verdade, como todas as teorias, muito provavelmente, tem mais a ver com a sujeição da realidade de todos os tempos à forma de ver a realidade predominante na época do teórico. A moda faz o mundo. O todo submete-se à projecção ao espelho da parte. O método, cada vez mais entranhado, é o da cama de Procusto.

«Tais (malthusianismo, liberalismo e historicismo científico) eram os pensamentos que dominavam a Inglaterra quando apareceu Darwin. É certo que Darwin não era um político profissional nem um economista. É possível que não tenha lido nunca Bentham ou Smith; nada nos fala da influência de Mill sobre as suas opiniões. Mas tinha lido Malthus; fala de Malthus em 1838, quando já leva um ano de estudo sobre a origem das espécies. A influência que as ideias de Malthus exerceram sobre ele, constata-se na segunda edição do seu Diário. É bem conhecido o facto de que aceitou as opiniões malthusianas acerca da sobrepopulação, deduzindo delas a luta pela existência. O que já não é tão conhecido é que a influência sobre ele destas teorias da economia política foi muito grande. Tanto a sua concepção geral da natureza, como a sua visão científica global estavam dominadas por elas.
Todos os autores pré-darwinistas, Lamarck incluído, consideravam na natureza individualidades animais e vegetais, cujos corpos e funções orgânicas são semelhantes e estavam sujeitas a leis análogas, o que as congregava numa indestrutível unidade. Frequentemente, falavam de "natureza", mas entendiam sob este conceito um princípio espiritual (embora mecânico) que obrava de acordo a leis definidas, de modo análogo aos fenómenos do mundo físico. O indivíduo, fosse planta, animal ou homem, não era, para esses autores, nada mais que a expressão duma lei eterna. A destruição de um, de muitos ou mesmo do mundo inteiro não significava nada mais que o desaparecimento das manifestações visíveis dessas leis eternas, leis independentes da vida e da morte.
Em contrapartida, para Darwin, filho dilecto da prática Inglaterra, a natureza consiste em partes separadas. A morte dum indivíduo representa uma mudança na natureza; a de uma centena significa uma mudança em centuplicado. Darwin mirava o mundo dos seres vivos do ponto de vista da economia política. Esse mundo, para ele, consistia numa sociedade num Estado constante de plantas e animais particulares, cada um dos quais seguindo o seu próprio impulso individual. Os economistas representam o Estado como uma sociedade constituída por indivíduos, cujo egoísmo só está contido nos seus limites por força do egoísmo dos restantes. Desse modo, Darwin entende a Natureza como formada de indivíduos, cada qual seguindo o seu interesse e vivendo a sua própria vida. E assim chega Darwin a uma nova e admirável concepção, que considera as plantas e os animais como membros de uma comunidade - a comunidade da Natureza. O liberalismo da época negava ao Estado o direito de limitar a liberdade individual. Darwin combateu a crença numa lei superior que governaria a Natureza e regularia as relações dos animais uns com os outros. As leis, segundo ele, nascem apenas das tendências individualistas de cada planta e animal.
É impossível compreender como poderia Darwin influir tanto nas teorias sociológicas, se não se admitir que a sua doutrina constitui, na realidade, uma sociologia da natureza, através da qual se limitou a aplicar à natureza as ideias políticas predominantes na Inglaterra do seu tempo.
De Malthus tomou o modelo lógico. Parte de um único e definitivo facto baseado na observação, a saber: o facto de que o número de indivíduos aumenta rapidamente. Considera qual teria sido o resultado desta tendência, em resultado duma acção sem freio, e chega à conclusão de que teria conduzido à luta pela existência; e a esta dedução chama "lei natural". Laissez faire, laissez passer; la nature va d'elle même; tal era o famoso lema daqueles tempos. Os políticos consideravam a doutrina no seu sentido prático de impedir ao Estado uma influência activa sobre os direitos dos cidadãos. Laissez faire, laissez passer, constituía a negação da antiga lei de direito divino dos reis. Darwin aceitou na sua teoria a segunda parte da sentença e escreveu o seu livro sob o tema: La nature va d'elle même. Na natureza não existem leis divinas.»
- E.M. Radl, "História das teorias biológicas"

Em resumo, depois de introduzir a lei da selva na sociedade humana, o liberalismo materialista exportou-a para o mundo natural. Após varrer a hierarquia do céu e do mundo, tratou de extirpá-la da natureza. E nessa nova natureza igual ao mundo - entregue à pura lei do mais apto/forte, num tempo em que o dinheiro mede a força/aptidão - reimplanta o homem, agora convertido a mera proliferação desarvorada de egos. É nisso que vamos. Pelo caos a fora.
Percebem agora o fascínio serôdio mas sempreviçoso de toda esta macacada energúmena e grunha com o querido Darwin? Aquilo mima-lhes os aleives - a besta até se derrete. Perdido o Marx, agarram-se ao Darwin com patas e dentes. Hirsutismo mental, do chifre ao casco!...

Conversa de Gigantes (rep)



«Galileu acreditou que as teorias matemáticas de onde deduzia as observações representavam a realidade permanente, a substância subjacente dos fenómenos. A natureza era matemática. Esta ideia devia-a, em parte, ao platonismo que havia estado em voga em Itália, sobretudo em Florência, desde o século XV. »
- A.C.Crombie, "História da Ciência – De Stº Agostinho a Galileu"

Para Aristóteles, a Fysis (correspondente grego à "natureza" latina e medieval) era de ordem orgânica, ou seja, manifestava um cosmos entendido como "zoon", ser vivo.
Com a Ciência moderna, o organismo degenerou em esquema. Nem sequer sistema, mas multiplicidade, aglomerado de esquemas. Cada ciência tem o seu, sendo certo que a Ciência se pulverizou numa miríade de ciênciazinhas, cada qual às voltas com o seu pequeno osso. A sabedoria antiga, que demandava a plenitude, deu lugar ao saber às fatias, galeria-labirinto de guichés e chafaricas. Uma burrocracia de anõezinhos, moços de frete e malabaristas do conceito. Um circo de barraca armada no Largo da Contingência, para os operários do Bairro da Indústria e para as rameiras do Beco do Progresso. Um rilhafoles completo onde os internados se babam e deslumbram, fixados alhures nas virtualidades mágicas e incomunicáveis da sua monomania.

Entretanto, sobra-nos uma pergunta, talvez mesmo um enigma:
O cerne do pensamento Ocidental residirá nessa discussão entre Platão e Aristóteles que, por entre ruídos, burburinhos e notas de rodapé, atravessa os séculos?

domingo, abril 20, 2008

Mitos e lendas

Agora, vá de estudarem e descobrirem cientificamente o contrário daquilo que apregoavam antes. Afinal, a soja geneticamente manipulada produz menos que a soja natural (peço desculpa se ofendo alguém ao escrever "natural").



Mas lá está a questão filosófica: a finalidade da Manipulação genética. Manipularam-na para dar mais produção ao agricultor? Não manipularam-na para resistir ao herbicida vendido pela Monsanto, ou seja, para dar mais lucro ao proprietário da tecnologia. Note-se, entretanto, a ambiguidade e a ambivalência científica: por um lado, a ciência a soldo da indústria, na manipulação genética; por outro, a ciência desmascaradora do mito e denunciadora do embuste, por intermédio da Universidade. Moral da história?...

Argumentarium Ad bestias

Exulta um leitor, Darwinista compenetrado, com imensa propriedade:
«O próprio Dragão admite "uma espécie de kung-fu". Ou seja, primeiro partes-lhe a cara e depois, se ele ainda conseguir falar, ouve-se o que tem para dizer. E mesmo aí ouve-se apenas para arranjar justificação para lhe partir ainda mais a cara. O Dragão de facto não é muito de falar, é mais de andar à batatada (...)»

Ora, é sempre reconfortante verificar como os leitores reconhecem e apreciam o nosso esforço.
Tudo isto, bem entendido, enquadrado num conceito/lema que sobretodos prezo: a sova como forma de altruísmo. A verdadeira caridade da bordoada. Uma esmola urgente que tantos lombos pedintes e carenciados reclamam!... Tanta cavalgadura refractária a reclamar picadeiro.

Gulodice material

Há uma desagradável sensação que se instala ao discutirmos com estes acólitos desinsofridos da "ciência": a de que estamos a perder tempo com um misto de zombie-robô-teenager. Em forma de claque.
Mas o mais emblemático é a sua completa resistência à aprendizagem. Nesse capítulo, estão mesmo abaixo dos pequenos gatos ou cachorros domésticos. Porque estes, ao menos, quando lhes esfregamos as próprias fezes no focinho, aprendem rapidamente a não depô-las por onde calha. Já aqueles, os tais acólitos-zombis, debalde lhes friccionamos no próprio excremento as ventas: não os repugna nem os incomoda minimamente. Pelo contrário, delambem-se. Entendem como recompensa.

sábado, abril 19, 2008

Certame de fábulas

«Nunca poderemos saber verdadeiramente o que se passou na Terra há vinte mil anos atrás. Pois se nem o que se passa verdadeiramente hoje conseguimos apurar com exactidão... A História do passado como o jornalismo do presente enfermam de estrabismos idênticos e crónicos. Em grande medida resumem-se a produtos de confeitaria, fonofacção superficial, artificialidade conveniente, quer dizer: esquema, encomenda, culinária. Contemplemos alguns eminentes historiadores da nossa praça: inscrevem-se em seitas, saldam-se nas montras, frequentam capelinhas. Aliás, a dispensa do trabalho braçal e extenuante nunca foi gratuita. Todo o poleiro tem o seu preço. Para cantarem melhor, certas aves cegam-se.
Assim, encarado de uma forma séria e autêntica, que é senão ficção o nosso imaginário cientificante, que galopa a cavalo na mais solene verosimilhança? De facto, e sem exagero, em pouco difere da "tragédia grega", segundo as regras da poética aristotélica. Cada tese, cada fábula. Válida enquanto acreditamos nela, como em Deus ( ou mais exactamente, somos levados a acreditar). Inválida, quando deixamos de acreditar, quando já não convém, quando já não reboca, estorva. Passamos, aliás, como no teatro grego, grande parte do tempo convictos duma coisa, reis Édipos seguros e sagazes, até que a catástrofe eclode e reconhecemos horrorizados, mais que a verdade, a mentira em que piamente sempre acreditamos e vivemos. Até aqui, o chamado pensamento científico e as suas verdades metamorfas tecnoeficientes têm percorrido os episódios e sobrevivido às peripécias. Peripécias como Hiroshima, por exemplo. Aguarda-se, com mórbida expectativa, como reagirão à catástrofe.
Falar no Big-bang ou em Deus, a limite, é a mesma coisa: no fim, reduz-se tudo à fé. A limite também, radica igualmente tudo nesse abismo misterioso que habita a alma humana: essa necessidade duma explicação. Ora, em termos gerais, tanto a ciência como a religião pretendem ser explicações totalitárias, campos de concentração da verdade, fornos crematórios de quaisquer dúvidas. Diferem, não obstante, nos métodos: A religião simplifica; a ciência complica. Ambas imaginam.»

- in Tratado da Besta

sexta-feira, abril 18, 2008

Espelho meu, espelho meu, há alguém mais exacto do que eu?



Economia, psicologia, sociologia, antropologia, história, etologia et al, também são ciências ou não?
Existem umas ciências mais ciências que outras? Só umas é que são puras e dignas de altar? Quem é que faz a selecção e qual o critério? Cada seita ulula pela sua?...

A actividade científica não pode ser objecto duma economia, duma sociologia, duma história? O sujeito cientista não pode ser objecto duma psicologia ou duma antropologia? Em resumo, a ciência nunca se vê ao espelho?

A Máquina no Tempo

É um suspiro antigo: se ao menos inventássemos a Máquina do Tempo, podíamos viajar às profundezas do passado e presenciar em flagrante o nascimento das coisas e, quiçá, do universo. O caos a parturir o Cosmos, Deus a falar às trevas ou o fogo de artifício primordial da Grande Explosão. Se ao menos tivéssemos a Máquina do Tempo...
Mas o mais fascinante é que já temos... e viajamos constantemente nela. É a nossa própria Mente.
O problema é que nunca embarcamos sozinhos, nós e a nossa curiosidade. Connosco, carregamos sempre a panóplia completa e infinita de máquinas, ferramentas e tralhambeques do presente. Os nosso medos, vícios, arreios, programas e cangas implantadas daqui. E quando desembarcamos, lá, nos primórdios do Ser do Mundo, junto às fontes e mananciais da vida, nunca vemos o que realmente lá está, mas apenas a sombra reflectida da traquitana infernal que levamos connosco.

quinta-feira, abril 17, 2008

A ver se nos entendemos...



Dado que não há maneira de abrolhar o desejado consenso no que ao conceito de ciência concerne, julgo oportuno recapitular a definição mais recente e actualizada do termo, segundo o Dicionário Shelltox Concise do Dragão.


CIÊNCIA s.f., conhecimento certo e racional sobre mundos imaginários; investigação metódica das leis e fenómenos que podem ser subsidiados, comercializados e lucrativos; sofisma passageiro bem sucedido; cegueira deslumbrante; contubérnia da tecnologia; mito urbano; cosmética com a mania das grandezas; forma muito pruridante de acne mental

CIENTÍFICO adj., relativo à ciência; sem princípio nem fim; referente a um fragmento catalogado do acaso

CIENTISTA s. 2 gén. mercenário erudito e asséptico que não utiliza armas: apenas as inventa e desenvolve; funcionário da Indústria; estilista ou dermatologista da Natureza; astro-sofista; cabeleireiro de cometas; arúspice metódico; vidente meteorista


Uma vez o assunto assente em bases sólidas, penso que - agora com devido fundamento, finalmente estabelecidos os sobrevidentes axiomas -, já podemos iniciar uma discussão séria e compenetrada.

quarta-feira, abril 16, 2008

Brave New Word?...



Peço aos leitores peritos em matérias científicas (e aos outros também, mas mais descontraidamente) que se debrucem sobre esta curiosa notícia:

«A scientific technique that could allow same-sex couples to create their own biological child in a laboratory should be allowed under law, a group of influential scientists said on Monday.
The experts, all international leaders in embryology research, called on ministers not to restrict such "important" research.
The laboratory creation of eggs and sperm from other cells could offer hope to thousands of people unable to have children of their own.»


Notem bem, os cientistas - não são poetas, nem filósofos, nem sacerdotes, suponho - estão a requerer aos políticos para não "restringirem tão importante pesquisa". Calculam que dentro de 15 anos, poderão estar a criar fetos humanos em laboratório.

Isto é ou não é ciência? Isto é neutro? É bom, é mau, podemos ter opinião sobre isto? A ética não é para aqui chamada? E se é ciência, cai do céu aos trambolhões ou é fruto de homens, com uma motivação e uma intencionalidade prévia, orientadas por critérios, no mínimo, intrigantes?...
Podemos imaginar humanários (aviários de homens) ao virar da esquina?...
Pegando na lógica da pura neutralidade do produto e do acto científico: os cientistas criam os galináceos humanos. Depois quem os utilizar é que pode fazê-lo mal ou bem?

Reis do Cash ou Reis do Caos?

«Wall Street Winners Get Billion-Dollar Paydays ».

«Hedge fund managers, those masters of a secretive, sometimes volatile financial universe, are making money on a scale that once seemed unimaginable, even in Wall Street’s rarefied realms.»

6, esse número mágico...



Por falar em anjos...

Segundo um estudo-performance de Sidney Zabludoff, noticiado pela Forward, as perdas judaicas, em matéria de refugiados por via da criação do Estado de Israel, são consideravelmente maiores que as palestinianas. Feitas as contas, entre os judeus que tiveram que fugir dos países árabes para o estado de Israel e os palestinianos que tiveram que fugir do Estado de Israel, o balanço é altamente favorável aos últimos. Pelos singulares cálculos de Zebludoff, os israelitas ainda têm um prejuízo de - adivinhem - pois: 6 Biliões de dólares.
Aritmética ou cabala?

O Sexo da Ciência



Graças ao generoso contributo dos leitores amplamente peritos em tão inefável e escorregadio assunto, vamos descobrindo, a passos largos, entre arrebatados e embevecidos, o carácter puramente angélico da Ciência. Brevemente, começaremos a mais importante discussão de todas, aquela que vale mesmo a pena: o sexo da Ciência.

Princípio da irresponsabilidade




Elucida-me o leitor Pmn (no que sintetisa, parece-me, com rara beleza, a crença geral dos devotos epistemófilos):

Poderemos então também dizer o mesmo em relação à religião (à filosofia ou até à ideologia) - "Uma coisa é o produto da religião, outra é a forma incorrecta de a usar, sendo o seu uso algo que está fora do campo da religião.»

Assim, nem a ciência pode ser responsabilizada por Hiroshima, nem a religião pelas fogueiras inquisitoriais. Foram apenas formas incorrectas de usar as suas imaculadas produções.

Entretanto, cientificamente, podemos ainda, por via das dúvidas, pegar no exemplo empírico da bomba atómica a testar com ele a teoria do leitor Pmn: quando a ciência a produziu, todos sabemos, foi para colocá-la no Louvre. Os homens maus e incorrectos (políticos, militares e alguns poetas), é que foram atirar com ela aos civis japoneses.
Podemos, pois, dormir descansados.

terça-feira, abril 15, 2008

Dark Side

Bem, enquanto o pára-raios, o meu computador, os antibióticos, os satélites (não militares) e tantos outros prodígios devem - segundo a lógica soberana dos seus devotos - ser plenamente creditados à Ciência, já o que se segue, presumo, deve ser creditado à religião, à filosofia, à literatura e à mitologia...

«O Admirável Mundo da Monsanto...»

É longo, mas acreditem que vale a pena ver até ao fim. Lá pela 1H11m, não percam: quando aparece a "gene-police". Ainda a malta se queixa da ASAE...

Ovolução

A teoria de que o Homem e o macaco partilham um antepassado comum sofreu um duro golpe. Ao ser confrontada com a prova viva de que o Homem e o jacaré partilham um contemporâneo comum...
A foto do fenómeno:

As Nuvens

« Estrepsíades - Realmente, por Apolo!, com tal argumento provaste muito bem essa coisa... E eu que dantes cuidava que era mesmo Zeus a mijar por um regador!... Mas... Explica-me mais uma coisa: quem é que troveja, que até me põe assim com o rabinho tefe-tefe?
Sócrates - Os trovões são elas a rebolarem-se.»
- Aristófanes, "As Nuvens"


Diz Francisco:

Não se podem fazer transposições assim, de chofre, entre uma perspectiva simbólica do mundo e uma perspectiva utilitária. Os antropólogos explicam-no bem. E soa a novo-riquismo epistemológico. Mas o ponto, para já, não é esse.
O ponto é que argumentação deste estilo conduz e autoriza conclusões inquietantes, como por exemplo:
-"Ah, quer dizer então que a ciência é basicamente uma meteorologia sujeita a sufrágio universal? Ou seja, anda ao sabor do clima e da opinião pública?..."
Curiosamente, às vezes, ao imaginar o que diria o inventor da mesma, o pai Platão, caso fosse confrontado hoje com o produto da sua semente, estou em crer que, antes de ter um colapso cardíaco, bradaria em desespero: "Hiperdoxa! esta filha não é minha" E tombaria fulminado diante da turbo-sofística em todo o seu explendor.
Mas, de todo o modo, fica o pormenor altamente sugestivo:
O Francisco, e grande parte das pessoas ocidentais com ele (e segundo ele) não acreditam em deuses nem dragões, porque acreditam na ciência. Até porque a ciência não lhes oferece apenas uma explicação mais credível: dá-lhes de bónus o pára-raios.

Fratricídios e axiomaquias

Chama-se "Fecho" e é o primeiro axioma da adição, segundo Hilbert & Bernays. Reza o seguinte: "Se x é um número e y é um número, então x+y é um número". É de axiomas e proposições plenamente intuitivas como esta que partem as demonstrações, quer ao nível da matemática, quer ao nível de outras ciências (chamando-se a esse método, o método axiomático).
Os axiomas, entretanto, são indemonstráveis. Ninguém duvida que o resultado da adição entre dois números é outro número e não batatas, grifos ou poemas. São, repito, proposições absolutamente intuitivas e indiscutíveis. O "Fecho" justifica, por exemplo, que o resultado da adição entre 2+2 seja, necessariamente, um número, neste caso o 4. Se eu disser "2+2 é igual a um rebanho" estou a extrapolar para fora do domínio e não encontro justificação lógica para tal passo. A fórmula pode até operar enquanto analogia, mas não enquanto demonstração lógico/aritmética, com base nos tais axiomas e em definições. Existe também, a título de exemplo adicional, o "princípio da identidade" -«numa expressão E com um ocorrência de '=', os símbolos à esquerda de '=' denotam ou nomeiam o mesmo objecto que é designado pelos símbolos à direita de '='.» O qual tem a sua formulação no sentido de assimilação da identidade lógica à igualdade nas Leis de Leibnitz:
1ºLei - cada objecto é igual a si próprio;
2ªlei - Dois objectos iguais a um terceiro são iguais entre si;
3ªLei - Se numa equação iguais são substituídos por iguais os resultados são iguais;
A 1ª Lei de Leibnitz justifica-nos que, por exemplo, 1=1.
Ora bem, os axiomas são proposições, pontos de partida, de fundamentação. Servem de alicerce, de verdade elementar. Não são objecto de dúvida nem de discussão, mas de partida. Assume-se que o resultado da adição entre dois números é um número, ou que cada objecto é igual a si próprio, e opera-se, elabora-se, constrói-se a partir daí. Na lógica, na matemática, na axiomática científica é geralmente assim. Por princípio, o axioma, uma vez assumido, é inquestionável. Há axiomáticas que se tornam eventualmente obsoletas sob determinadas circunstâncias, domínios ou perspectivas, mas são prontamente substituídas por outras.
Com a filosofia não é assim. Que cada objecto seja igual a si próprio não a satisfaz. Fica sempre, pelo menos, a pergunta "porquê?", tanto quanto a questão "com que finalidade?" São questões das quais a filosofia nunca está autorizada a abstrair-se. Impossível confiná-la ao laboratório. Reduzi-la a uma lógica ou lobotomizá-la a pau de cabeleira no flirt entre a ciência e o "real" é amputá-la da sua própria essência.
Por seu turno, a religião também tem axiomas.
"Deus criou o universo" é o primeiro de todos eles. A ciência pode não aceitá-lo ou contestá-lo enquanto tal - mas apenas enquanto axioma que não lhe serve operativamente, ou para o qual não verifica evidência inquestionável de modo a poder ser-lhe útil. A filosofia admite-o como hipótese, como aceita que "cada objecto é igual a si próprio", mas não se satisfaz.
O que não se pode é, grosseira e alarvemente, nem pela via filosófica nem pela científica, enfiar com a religião, por atacado, no caixote da simples irracionalidade ou da balbuciante alogia. A religião, tanto quanto a ciência, se bem que em molde e domínio diverso, é uma axiomática: se aceitarmos o axioma ou axiomas basilares, tudo o resto se extrai com perfeita lógica e acompanhado das devidas justificações. Não é a pura babel ou o aleatório caos. Bem pelo contrário. Chamar, por exemplo, irracional a todo o imenso edifício conceptual que acompanha o catolicismo é o mesmo que chamar entulho à catedral de Chartres. E digo isto com o à vontade dum crítico assumido da excessiva racionalidade em que se enredou o catolicismo. Dizer, pois, que a religião se restringe ao âmbito da fé, no caso Ocidental, é não saber pura e simplesmente o que se está dizer. Da mesma forma que não se pode pegar num qualquer bulldozer epistemológico e tentar varrer a religião para debaixo do estrito tapete dessa mesma fé. Não cabe lá. E é confundir ciência com uma nova barbárie terraplenadora.
Mas, só para terminar, falta ainda referir outra realidade bastante evidente: é que também as ideologias são, a seu modo (um modo algo semelhante e sucedâneo à religião), axiomáticas: uma vez aceite a verdade elementar e fundante, tudo aquilo se deriva e desnovela em perfeita lógica. E estou a referir casos tão óbvios e pitorescos como o comunismo, o nazismo ou o neo-liberalismo. Qualquer um deles, sem grandes embaraços, arroga-se duma axiomática científica inquestionável; e todos eles partilham o tique - revelador e comum - de decretar como certificada irracionalidade a mera deriva de axiomas diferentes dos seus - ou, dito sinonimamente, de sustentáculos dissemelhantes da fé inaugural.

Homicídio de cadáver

Lucky Lucke tinha os irmãos Dalton. Nós, que me lembre, nos últimos anos, com alguma notoriedade, temos tido os irmãos Cavaco, os irmãos Portas, os irmãos Pinto e, agora, num afã permanente, os irmãos Pedroso. O seu último alvo é o António Caldeira, do Portugal Profundo. Nos interstícios de flagelarem o próprio Estado e respectivo erário, estão a molestá-lo em tribunal, ao desvalido António, a pretexto de 43 crimes de difamação.
Estou em crer que há duas infelizes coincidências que convergem nesta sombria encruzilhada: por um lado a deficiente fulanoscopia do António Caldeira; por outro, a cara de caso do Pedroso que é Paulo. Dupla e problemática deficiência, portanto. Do Caldeira que, com os olhos que tem na cara, não reparou nas asas penugentas que o outro, bem amochiladinhas, carrega nas costas; do Pedroso que, com a cara que tem à volta dos olhos e a falta de barba para lá pôr, lembra mais cu que fronha de homem e induz em erro o transeunte. Resultou disto incriminado o António por via dos olhos que traz na cara, como incriminante é no outro a falta de cara onde traz os olhos.
Falta apenas dizer que, mais que tudo isto, o que me deixa perplexo é como é que se pode ainda processar alguém por difamação neste país. Especifico: como é que se pode julgar como crime algo que já alcançou foros de costume? Em que os eleitos existem para difamar, mais por acções que por palavras, aqueles que os elegem; e os eleitores existem para difamar, mais por palavras que actos, aqueles que acabam de eleger... Pelo que, vista friamente a coisa, difamar tornou-se um crime impraticável, equivalente ao homicídio dum cadáver.
Não; crime, agora, só se for falar verdade.

sábado, abril 12, 2008

A bem do rigor na semântica

Torna-se oportuno recapitular alguns conceitos, a partir do Dicionário Shelltox Concise do Dragão:


Darwinismo s.m., doutrina estabelecida por Darwin, cientista inglês (1809-1882) que tenta explicar a origem e evolução dos ingleses (e, quanto a mim, consegue-o plenamente), com base nos caprichos do seu antepassado primitivo: o chimpanzé. Contraria, com o seu optimismo, algumas teorias que sustentam residir esse ponto de partida nalguns répteis anfíbios dotados de polegar intransponível.

Debate s.m., conversa amena entre cómicos; concurso de anedotas; certame de histriões.

Delírio s.m., raciocínio; crença patológica em factos irreais ou concepções imaginativas desprovidas de base ou fundamento; vulgar estado de espírito nas sociedades ocidentais modernas, onde a generalidade dos cidadãos é mais ou menos delirante, tornando-se já praticamente impossível encontrar indivíduos imunes.
Demonstração s.f., operação mental que, num indivíduo convicto de determinada miragem mais ou menos trapalhona, consiste em convencer outros da perfeição deslumbrante do seu delírio; vulgarmente, aquilo que sucede à petição de princípio.

sexta-feira, abril 11, 2008

Unidade, sucessão, multiplicidade

2+2=4 porque 1+1+1+1=1+1+1+1
Quer dizer, 2+2=4 pela mesma razão que 1+1=2; e 1=1. Ou dito ainda, duma forma mais lógica, 1&1&1&1=1&1&1&1, ou seja, igual a 4, pela mesma razão que 1&1=1&1 ou seja, igual a 2; e, a limite, pela idêntica razão que 1=1.

O que é que fica por explicar?

quinta-feira, abril 10, 2008

Pausa lúdica nos confrontos

Uma dúvida - provavelmente estúpida, mas recorrente - que sempre me importunou:
Porque é que 2+2=4?

Será que, para descomprimir do stress traumático, a boa gente familiarizada com as matemáticas me consegue explicar isto?

Decerto não há-de ser difícil. Terei mesmo que recorrer a objectos auxiliares, ou poderei resolver através dum puro esquema mental traduzível em simples algarismos?...

quarta-feira, abril 09, 2008

A santa ciência é uma crença - 2.Surprise!

Theodore Millon não é um poeta, não é um filósofo, nem é um religioso: é um cientista de renome mundial. Ph.D e D.Sc, Dean and Scientific Director Institute for Advanced Studies in Personology and Psychopathology; Retired Professor, Harvard Medical School (Psychiatry) and University of Miami (Psychology). É uma das grandes sumidades da psicometria e o autor principal do MCMI-III, o grande Manual vigente daquela área científica. Pois bem, foi desse MCMI-III, página 67, que eu retirei a definição de matemática (como pura metafísica) que constitui o meu penúltimo postal -"A Santa Ciência é uma crença" - ( com excepção do primeiro parágrafo, que apenas serviu para atiçar a macacada). É um facto que eu podia ter escrito aquela definição, com as mesmas palavras, sem retirar letra nem vírgula, porque traduz exactamente aquilo que penso sobre o assunto, mas a verdade é que não é minha. Eu apenas a expus como se fosse eu o autor. Fazia parte dum teste empírico. Até que ponto os testados reagiam ao texto ou ao autor; exerciam crítica racional ou mero espírito de bando; confrontavam uma ideia adversa ou hostilizavam um predador ameaçante (quem já assistiu a um daqueles documentários em que um bando de babuínos reage à aproximação dum leopardo, sabe o que quero dizer).
Procedi assim a uma experiência científica. O objectivo era avaliar o nível da resposta crítica resultante e oriunda das tais plateias e redacções putativamente especialistas em ciência, campeãs da linguagem cristalina e devotos da elevada argumentação objectiva.
Peço-vos agora a paciência de lerem ou relerem as centenas de comentários que esse postal e os anteriores sobre o mesmo assunto, no decurso da mesma polémica, motivaram. Nunca tal frenesim e algazarra se presenciara por estas bandas. Estimo que meditem sobre o espectáculo. As conclusões, sugiro que as gargalhemos em conjunto. Eu e os comentadores que, no meio da macacada, mantiveram humana postura, e a quem aproveito para pedir, desde já, desculpa pela cobaiada involuntária.


PS: Num próximo postal, tentarei elencar a quantidade opípara de falácias grosseiras contra mim arremessadas por toda esta tribo de mentecaptos exibicionistas.

O Olho livre

Enquanto a récua embasbacada, no postal anterior, prossegue os seus zurrados e resfolegantes esforços para tentar decifrar o que lá está escrito, chegam-nos notícias laicas da Dinamarca. Robert Lubarski, um sex-guru e conceituado epistemólogo da quéca, proclama que «ser sodomizado faz bem aos homens». E se no casal homossexual isso já era um dogma de fé, agora, o ilustre Júlio Machado Vaz escandinabo, transpõe a terapia para o casal heterossexual. Para o efeito, recomenda que a mulher se equipe a rigor, com godemiché a gosto, e trate de estimular virilmente o parceiro. Ou seja, pelo esfíncter acima. Ou abaixo, depende da página eleita do Kama Sutra.
Ora, diabos me levem se aqui não está uma ginástica altamente recomendável para todos os laicos modernaços, especialmente a seguir ao lavar da loiça do jantar e como alternativa ao discutir periódico e choramingante da relação.
Até porque a teoria -ou explicação, como diz o Ludovino -, vem devidamente escorada em exaustiva experimentação do investigador e creditada pela inerente validação empírica. Vá, ó engenheiros, deixem-se de obscurantismos e nevoeiros!... Façam como o paradigma. Pela vossa saúde!... Ide massajar a próstata! Essa histeria toda não engana. E como, visivelmente, estais imunes e impermeabilizados contra o conhecimento científico, uma boa dose de conhecimento bíblico, em supositorização reforçada, é capaz de ser a cura.
Já não falando na excelência da conjuntura, pois uma vez que do cinto de castidade fizestes venda, aproveitai tão soberana disponibilidade científica e plantai telescópio no olho cego. Nem hesiteis: nada como integrar o órgão do conhecimento no aparelho do pensamento.
Treme, Cosmos, que agora é que vais perder todos os teus segredos!...


PS: António, é já a seguir a este. Estou só -como se diz na gíria pescadora - a engodar mais um bocadinho.

terça-feira, abril 08, 2008

A Santa Ciência é uma Crença

Toda a pretensa objectividade da Santa Ciência e respectiva Igreja das Certezinhas Beatas é construída em cima dum andaime puramente metafísico: a matemática.
A matemática pode ser definida como um conjunto de sistemas de proposições bastante desenvolvido que através de provas dedutivas é considerado verdadeiro e universal. A matemática refere-se a entidades que apenas existem simbólica ou abstractamente e não no mundo natural. Neste sentido, pode-se considerar que a matemática consiste num conjunto bastante coerente, sem correlação empírica com o quotidiano ou com o universo físico. É inteiramente consistente, mas carece de realidade empírica.
Os pacientes que sofrem de perturbações delirantes -que é como quem diz, os esquizofrénicos - possuem quadros de referências altamente sistematizados que fazem sentido no mundo interior do paciente e que justificam acontecimentos objectivos duma forma que, apesar de ser internamente consistente, como acontece com o sistema de crenças da maioria dos indivíduos, é também obviamente falsa.

Falácia ordinária

Entretanto, o João Miguel, depois de -e muito bem! - denunciar a promiscuidade tachista do Bloco Central, corre a defender a promiscuidade coorporativa da coleguinha e, presumo, amiga (senão dele, seguramente minha) Nandinha Câncio. Sobre estas manhosices éticas tão típicas da fauna plumitiva nem me pronuncio. Moço de fretes é moço de fretes e serei sempre o último a surpreender-me, muito menos a escandalizar-me, com as micoquices inerentes à condição.
Mas há uma falácia grosseira e conclusiva que não posso deixar impune. É quando ele elabora e refuga o seguinte argumento:
«é que todo este episódio vergonhoso só existe para sugerir que José Sócrates andou a pressionar a RTP para fazer um favorzinho a Fernanda Câncio. Sócrates, que ainda há poucos anos era homossexual (lembram-se?, foi no tempo do amigo Santana), agora parece que se transformou num heterossexual furioso, empenhado em arranjar tachos à namorada.»
Ora bem, compete-me, antes de mais, dizer que a sexualidade do senhor Primeiro Ministro não me interessa para nada - quer dizer, o que faz nas horas vagas de foder o país, é lá com ele. Também não sei nem me preocupa com quem namora, noiva ou simplesmente pratica as badalhoquices que muito bem entende. Desde que não envolva menores, cadáveres ou velhinhas acamadas, por mim, nada a obstar. Direi mesmo, se delapidar em putas fogosas grossas maquias dos impostos, não vou ser hipócrita: até sobe na minha consideração. Eu, no lugar dele, era o que faria. Agora que me apresentem uma falácia tão ordinária como esta, isso não admito. Dizer que alguém passa de putativo homossexual a heterossexual furioso só porque, eventualmente, namora com a Câncio, é de bradar aos céus! Namorar com a Câncio não desmente, só confirma. Mais: reforça. É um atestado público de que não gosta de mulheres.

segunda-feira, abril 07, 2008

Qual é mais verdadeiro?

a) «Conhece-te a ti mesmo»
(Um dos mandamentos de Delfos)

b) «És tu próprio o assassino que procuras!»
- Sófocles, "Édipo Rei"

c) «Sabeis interpretar o aspecto do céu; mas, quanto aos sinais dos tempos, não sois capazes de os interpretar.»
- Mateus, 16:3

d) «E move [a causa final] por quanto é amada, enquanto todas as outras coisas movem por serem movidas.»
- Aristóteles, "Metafísica"

e) «Tu que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiátas de modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
p'ra que não vejam as nódoas de baixo!»
- Almada Negreiros, "A cena do Ódio"

f) «A selecção natural actuando somente pela vida e pela morte, pela persistência do mais apto e pela eliminação dos indivíduos menos aperfeiçoados...»
- Charles Darwin, "A Origem das Espécies"

g)«O papel do mais forte é dominar, não de se fundir com os mais fracos e sacrificando assim a própria grandeza. Só o débil de nascença achará essa lei cruel, mas porque ele mesmo é um homem fraco e limitado; se essa lei não prevalecesse, a evolução dos seres organizados seria inconcebível.»
- Adolf Hitler, "Mein Kampf"

h)«Num triângulo rectângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.»

i) E=mc2

A ciência e a moral

Se, por essência, o domínio da ciência é epistemológico e o da religião é moral donde surge, então, o litígio?... Porque a religião teima em exercer uma tutoria moral sobre a ciência, prejudicando assim a livre busca do conhecimento? Porque a ciência estabelece as regras e os limites, por isso não tem que se submeter a eles?
A verdade é que a ciência se submete à política e à economia. Tanto quanto um armazém de técnicas, teorias e conhecimentos, é um instrumento - a não ser que aqueles senhores de bata branca da Nasa, do Pentágono, dos laboratórios da grandes farmacêuticas, da Monsanto, da General Dynamics, etc., não sejam cientistas, ou mesmo as grandes universidades e centros de investigação científica por esse mundo fora, afinal, sejam mosteiros capuchinhos.
Mas, então, se aceita, canina e mansamente, o jugo da política e da economia porquê tamanha alergia e escândalo à moral? Na realidade, é a ciência ou a política através da ciência que está a tentar desembaraçar-se da moral?
Por outras palavras, se não existe isso de "busca livre do conhecimento" como é que a religião ameaça algo que não existe? E se a ciência não tem sequer autonomia epistemológica -basta atentarmos no circo da teoria do "aquecimento global"; ou nas "novas pandemias" -, como pode arvorar-se em baluarte da emancipação moral?
Vamos agora instaurar uma puta relaxada no pedestal da virtude só porque ela regala as elites?...

domingo, abril 06, 2008

Conselho grátis e livre de encargos

E nunca esqueçam, como diria Twain, que "um banqueiro é um homem que vos empresta o chapéu de chuva quando faz sol e que vo-lo tira quando começa a chover." Vão por mim.

Os ornitorrincos também se abatem

A revista "Atlântico" finou-se. O tico-tanque dos ornitorrincos espichou. É pena. Até porque devia constituir um caso raro no panorama editorial mundial: a única publicação que tinha quase tantos leitores quanto redactores. Afinal, parece que nem todos os redactores compravam a revista, pelo que a aparente vantagem - e garantia autofinanceante - de possuir uma chusma em vez dum corpo redactorial acabou por redundar em inusitado fiasco. Tudo leva a crer que o excesso numérico da hoste terá fomentado o excesso de confiança na tiragem: metade terá sempre confiado que a outra metade iria comprar.
Ídolo feroz, sanguinário e cruel, o Mercado, que, desta forma assaz impiedosa, devora e consome os seus próprios devotos e crentes!...
Uma certeza fica: eles vivem. E prometem voltar. Ninguém duvida. Até porque não é difícil resolver a contrariedade económica: basta exigir o pagamento adiantado aos redactores. Sim, isso e propinas.

sábado, abril 05, 2008

Quem os viu e quem os vê

«(...)o jornalista Ferreira Fernandes (DN), que foi um dos líderes dos SUV, organização de militares que marcou o Verão Quente de 1975 (...)»

Confesso que este não sabia. E se, por um lado, não o imaginava, por outro, passo a entender melhor certos encrespamentos folclóricos que ocasionalmente o eriçam.

sexta-feira, abril 04, 2008

Kentucky Fried Cience





Isto vai a mata-cavalos, porque me rareia o tempo e a paciência também já viu melhores dias.
Começo por uma evidência elementar: a propaganda ciêntifica, como literatura, é paupérrima; como religião, é excessivamente supersticiosa ; e como filosofia, chega a ser hilariante.
Portanto, ó caro Ludwig, pôr-se vossência com considerações da ordem do estilo é o mesmo que eu pôr-me a dar pareceres sobre teoremas matemáticos de terceira geração. Vale zero. Se é que não raia o número a beirar o irracional.
Já quando entra a galope pelas epistemologias em tom reader’s digest eu só tenho que lhe agradecer a lição. Havia preciosidades que eu desconhecia e passei a conhecer. Como seja, por exemplo, que «inferir que é inexplicável só por não se conhecer a explicação tem embaraçado muitos crentes e religiões ao longo da história.»
Compreendo agora, graças a si, que desconhecer a explicação ocasiona o inexplicável. Eu, estupidamente, a julgar que a explicação traduzia um conhecimento de qualquer coisa, quando afinal é o conhecimento duma explicação. Ah, assim é mais fácil, mais simples e, convenhamos, bem mais lógico. É tudo, como tudo na vida, uma questão de contactos. Arranja-se alguém que nos apresente uma explicação e já está. “Dragão, esta é a explicação do Big-Bang!”; “Explicação do Big-Bang”, este é o Dragão”. E pronto, liberta-se um gajo do inexplicável. Conhece-se uma boa explicação e fica debelada a angústia. É o “Abre-te Cézamo" da gnoseo-ascensão.
Eu também julgava -mais uma vez nesciamente - que se havia coisa que não atormentava os crentes era embaraços. Nem embaraços, nem dúvidas, nem nenhum desses agentes malignos do inexplicável. E precisamente porque, segundo eles, conhecem uma explicação completa – a explicação da Criação. Ou do Big-Bang. Conhecem-na é pouco: são amigos íntimos, coleguinhas de infância, compadres. Aqui há tempos, bateram-me até à porta umas tais Testemunhas de Jeová. Não me pareceram nada embaraçadas, devo dizer. Pelo contrário, com uma agilidade incrível, queriam explicar-me tudo. O passado, o presente, o futuro, em resumo, o inexplicável de fio a pavio. Não escapava nada. Tudo muito bem trituradinho e passevitado. Entendiam, por força e capricho missioneiro, apresentar-me a toda uma avassaladora explicação. Pretendiam, se bem as entendi, pejadas de boa intenção, salvar-me. A trabalheira que eu tive para me livrar delas. O que só alcancei, por fim, perdendo as estribeiras (convenhamos, comigo não é difícil) e rugindo-lhes ferozmente: “caralho, madames, não me dêem cabo do suspense desta merda, não me expliquem o filme todo. Assim perde a piada!...”
Entretanto, Vossência diz que a sua explicação é melhor que a deles. Que, cito, “a teoria da evolução de Lamarck era melhor que o criacionismo”, que o Darwin é melhor que o Lamarck e que não sei quantos são ainda melhores e mais supimpas. São “melhores”? Mais uma novidade para mim. Pensava eu que o âmbito da ciência era essencialmente epistemológico. Mas aprendo consigo, em boa hora, que é moral.
Mas “melhores”, já agora, porquê? Porque vosselência gosta mais delas? Porque são as do laboratório que delega e representa? Porque estão mais na moda? Porque têm mais eleitores?
Então, se, conforme atesta, explicar é conhecer uma explicação, eles conhecem a deles e vossência conhece as suas. A diferença, vista de fora, é que eles têm apenas uma e sempre a mesma, enquanto vossência conhece várias e sempre a mudarem. Devemos deduzir que o valor da explicação se mede pela quantidade - que quanto mais explicações conhecermos, melhor?
Mas, mais adiante, ainda é mais sugestivo. Proclama Vossência ao planeta e satélites em redor:
«É preferível explicar a mutilação do gado pela acção de corvos e furões do que por actos insondáveis de extraterrestres omnipotentes.»
Mais um juízo moral. “É preferível?!” É preferível, porquê? Explicar como a ou b, uma vez que a explicação é mero paleio, o que é que altera ou sequer alterna? Mas isto, Deus lhe pague (e se não existe, pior para si) tira-me uma grande superstição de cima. Eu julgava, mais uma vez ignaramente, que o que era preferível era investigar e demonstrar, ou seja, comprovar na realidade (empiricamente) se eram furões e não extraterrestres, ou se eram extraterrestres e não furões. Porque, presumia eu, devia partir-se para a investigação sem preconceitos. Mas ainda bem que uma explicação pronta-a-comer nos liberta dessa trabalheira toda. A todo este desembaraçado processo vamos chamar-lhe como? - Fast-cience? Ciência de conveniência? E a si - Luduvino McDonnald’s? Ludwig Hut?... Kentucky Fried Kripphal?...
Temos depois o momento subbuteo (ou matraquilho, para os menos eruditos):
«A biologia molecular explicou o mecanismo de hereditariedade que Darwin tinha deixado de fora e propõe várias explicações para a origem da vida. Chutou Deus para a química, que o passou à física que, com um remate pujante, o enfiou pelo Big Bang. Não é nada de pessoal. É assim que o universo é, é assim que temos que o descrever.»
Perdoe-me a indiscrição: O Ludwig estudou com quem, com o Gabriel Alves?... E pensa e escreve com qual dos pés? – com o que tem mais à mão?
Por fim, certifica, vossência, que «não foi a teologia que nos deu os antibióticos, nem a oração que revelou o motor de combustão nem a fé que pôs satélites em órbita.» Quer dizer, insinua que foi a ciência. Portanto, autoriza-nos daí a concluir que foi também ela que colocou a bomba atómica em Hiroshima. Ou os submarinos nucleares nos oceanos. Ou as armas bacteriológicas sabe-se lá onde. Ou os admiráveis "Amanhãs que cantam" ao virar da esquina.

No mínimo, um tal cadastro circunscreve os cientistas no rol das raças perigosas. E justifica alguns cuidados de segurança preventiva, como microship de rastreio, seguro canino e um bom açaime na via pública. Já que trela, essa, justiça lhes seja feita, sempre tiveram.


quinta-feira, abril 03, 2008

Os novos arquétipos da moral



«Pior escola do País condena expulsão de alunos violentos».

Bem, em certa medida concordo. Expulsá-los duma escola para outra escola, pouco ou nada adianta. Se ainda fosse expulsá-los do país...

Por outro lado, atentemos em dois passos especialmente encantadores do artigo:



Portanto, se bem percebo, os professores daquela simpática escola não estão a ensinar aos alunos as matérias curriculares -português, matemática, história, ciências naturais, enfim, todas essas inutilidades maçadoras -, porque, na realidade, e por imperativo social, estão primeiramente a ensinar-lhes a cidadania. Ou seja, se bem entendo, decidiram fazer de pais. A primeira pergunta que me ocorre é: "e então quem é que faz de professores, os polícias? Os gangues lá do bairro? A televisão?
Só que, entretanto, a fazer fé no quadro descrito em a) - "três rapazes com pouco mais de dez anos entretinham-se a deitar ao chão um colega e a pontapeá-lo nas costas" - parece que as "noções básicas de cidadania" também não estão a ter um aproveitamento lá muito brilhante. Ou os senhores professores já se dão por muito satisfeitos por não ser um deles a padecer o rude tratamento?
São casos destes que justificam plenamente quer o argumento liberal - "Quem é que paga um zoológico destes?" -, quer o argumento xenófobo - "Andamos a formar, a aparicar e a subsidiar futuros delinquentes particularmente racistas".
E o mais engraçado é que a velha e esfarrapada fábula determinista de que são mero fruto do meio ambiente não colhe de todo. Quem conheça os muceques africanos -e certamente que a nossa sociedade, por enquanto, ainda não é mais atroz, injusta e violenta que qualquer ogrocracia africana-, sabe perfeitamente que nas escolas lá do sítio os pretinhos não se portam desta forma javarda e asselvajada. Pelo contrário, chegam a andar quilómetros (com uma parca refeição ao dia) para se sentarem em latas a fazer de carteiras e aprenderem ordeiramente, com um respeito imenso aos professores, as contas e as letras. Não me contaram: vi. Então, onde reside realmente o problema?
Sinceramente, parece-me que eles são assim porque são altamente estimulados a serem assim. Porque descobriram que, sendo assim, recebem compensações. Atenções especiais e mordomias sobressalentes. Mas isso, por bizarro que pareça, nestes nossos tempos, não constitui aberração nenhuma. Pelo contrário, deriva do mais vigente e celebrado paradigma social: o filho da puta é aquele que é gratificado. Que é apajado e venerado. Das telenovelas aos governos, passe a redundância, há toda uma nova arquétipia moral em marcha.