Para aqueles que acham que as teorias científicas são uma espécie de supra-sumo angélico acima das contingências do mundo, da propaganda e das manias dos homens, nada como relembrar-lhes a recepção das ideias de Darwin na Europa do seu tempo.
Em Inglaterra, os amigos de Darwin - Huxley, Hooker e Lyell -, como lhes competia, prepararam o público para a Boa Nova. Desdobraram-se em artigos transbordantes de lógica e persuasão retórica no The Thimes, Saturday Review, London Review, Atheneum, Edinburgh Review e vários outros. Buckle, Mill e Spencer apoiaram. De todo este "darwinismo", verdade se diga, o menos frenético e efervescente era o próprio Darwin. A velha distância entre o profeta e os sacerdotes, quiçá... Contra Darwin, todavia, também se pronunciaram vozes, e não apenas as esperadas do clero mais cioso. Destacaram-se, entre os discordantes, Owen, Mivart e o duque de Argyll. Mas, por fim, dado que se tratava duma mui natural excrescência mental sua, a Inglaterra utilitária e pragmática compenetrou-se da nova teoria.
Em França, porém, onde imperava a tradição de Cuvier, e a claridade de expressão, a exactidão do método e a experimentação ditavam as regras, as novas ideias foram recebidas com olímpica frieza. Os sucessores de Cuvier - Fourens, de Quetefrages, Milne-Edwards, Brogniard, Barrande, entre outros-, recusaram a nova concepção. Claude Bernard e Pasteur, os principais patronos do pensamento biológico francês, na época, foram antidarwinistas (o que não admira, dado tratarem-se claramente de dois energúmenos obscurantistas). A Academia francesa alinhou pelo mesmo diapasão e não passou cartão ao caso. Tirando alguns escritores populares, o zoólogo Martins e o filósofo Soury, mais três ou quatro científicos obscuros, Darwin não convenceu os franceses.
Em contrapartida, na Alemanha a nova teoria viria a transformar-se em verdadeira escola de pensamento. Foram os escolares alemães quem lhe conferiu uma forma lógica e dogmática. Os jovens cientistas que queriam estudá-la passaram a deslocar-se à Alemanha, onde recolhiam os novos ensinamentos junto de Haeckel, Weismann e outros. O entusiasmo alemão por Darwin foi enorme e muito superior à própria Inglaterra, onde o darwinismo nunca foi ensinado como um sistema científico.
Mas o mais curioso foi como a própria teoria se viu recebida pelos dois campos rivais, ao tempo, no pensamento alemão: os aristocráticos e os democráticos - respectivamente corporalizados na filosofia e nas ciências exactas -, bem como a subsequente querela no seio dos segundos.
Com efeito, a filosofia cultivava ainda aquele preceito antigo do desprezo pelo trabalho manual e pelo serviço prático, mais típico do escravo que do homem livre. Acreditava que mediante processos puramente intelectuais poderia deduzir leis para as ciências e para a ética -num certo sentido, em seu entender, aos cientistas competia-lhes recolher os dados e apresentá-los; aos filósofos competia-lhes pensá-los e organizá-los sistematicamente. Colocar os cientistas a fazer o trabalho dos filósofos era o mesmo que entregar a arquitectura aos trolhas e mestres-de-obras. Daqui resultava uma natural preponderância do intelectual sobre o prático, bem como a sujeição do homem mediano ao génio extraordinário. Hegel, com raro mérito neste particular caso, funcionava como patrono desta perspectiva.
Naturalmente, quem não estava pelos ajustes eram os trolhas e mestres-de-obras. Ambicionavam o estirador e a assinatura dos projectos. Ou achavam que dispensavam bem essas subtilezas. Protagonizados por Vogt, Moleschott, Virchow, Brüchner e outros génios imortais, sutentavam que o conhecimento devia impregnar todo o povo e perseguir fins utilitários e práticos. Ao contrário dos filósofos, escreviam num estilo fácil, dirigido ao público em geral e debruçavam-se sobre tudo e mais alguma coisa, inclusivé filosofia, alma, governo e outras matérias pouco "práticas". Ficou famosa a ideia de Moleschott que propôs a dado momento que os cemitérios fossem usados para a agricultura já que estavam muito bem adubados. A metáfora, todavia, era dupla: significava também submeter todo o edifício cultural do passado, com todos os seus ilustres defuntos, à charrua dos novos cavadores utilitaristas e lavradores demagogos. Esta boa gente, naturalmente, e por dever de coerência, tratou de embrenhar-se pelos meandros da política com à vontade dos pragmáticos.
Pois bem, quando o darwinismo atingiu a Alemanha, o campo democrático, ao contrário do campo filosófico/aristocrático (que vaiou e vituperou), devotou-lhe uma recepção francamente amistosa. Dum modo geral, aceitaram-no, com maior entusiasmo ou alguma prudência (como foi o caso de Virchow).
Contudo, para quase todos estes cientistas a teoria devia seguir os trâmites normais das novas teses, cumprindo como qualquer outra a via sacra académica: ser analisada e discutida exaustivamente nas universidades e, posteriormente, daí filtrada para as publicações populares e a divulgação mais generalisada. E digo quase todos, porque houve um que fez a diferença: Haeckel. Começara por ser aluno e depois assistente de Virchow; era dotado dum espírito particularmente obstinado, enérgico e dogmático. Na sua mente peculiar, uma ideia, uma vez adoptada, tornava-se artigo de Fé quase imediato. Quando descobriu Darwin, não demorou a cofeccionar um perigoso caldo mental com as ideias deste mais as de Virchow. Em conformidade, passou a considerar como dogmas irrefutáveis e axiomas basilares do saber humano: 1. que não existia mais que átomos e seus movimentos; 2. que o homem descendia do macaco. Daí a partir em campanha pública pela nova devoção foi um instante. Com um entusiasmo só ao alcance dos fanáticos e uma convicção digna dos profetas, desatou a ensinar publicamente que «o maior triunfo do espírito humano, que é o conhecimento das mais fundamentais leis da natureza, não deve ser património exclusivo duma classe intelectual privilegiada, mas, ao invés, deve converter-se em propriedade comum de toda a humanidade.»
Com que tipo de átomos imaginava ele o espírito humano não vem agora ao caso. O certo é que a sua estrénua e entusiástica prédica não foi em vão. Vários filósofos facilmente sugestionáveis trataram de engravidar pelos ouvidos e correram a abraçar o apostolato da causa. Através de cursos, livros e artigos na imprensa, Jaeger, Seidlitz, Dodel, Dumont, Büchner, Schmidt, E. Krause, von Hellwald, Preyer, Rolle e vários outros, cuidaram de transmitir todo o seu arrebatamento ao bom povo alemão. Krauser fundou mesmo a revista Kosmos, em 1877, exclusivamente dedicada à difusão da correcta crença. O "Despertai" das testemunhas da macacada, por assim dizer. O ambiente de cerrado materialismo e lesto radicalismo que se vivia na época favorecia todas estas propagações e mais algumas. Um proselitismo febril apoderou-se de certas redacções...
Não tardaria, porém, a eclodir outro cisma. Agora entre os próprios "democratas". Por um lado, devido ao exagero radical de Haeckel e suas hostes, que já devaneavam e propugnavam pela inclusão urgente do darwinismo - essa certeza indiscutível, essa revelação absoluta! - nos programas do ensino secundário (qualquer semelhança com neo-catecismos hodiernos é pura coincidência). Por outro, devido ao visível idílio que decorria entre a nova teoria e os "sociais-democratas" - aqueles simpáticos cavalheiros que enxameavam em redor das teses de Marx e Engels. De facto, encantados com as faculdades materialistas, anticlericais e mundi-visionárias da teoria darwiniana, os socialistas acolhiam-na e afagavam-a como se de uma aliada valiosa se tratasse. Isso mesmo denunciou Virchow, que reconhecia agora no socialismo um perigo real e no darwinismo os desvarios duma crença. Uma tal associação, em seu entender, só podia redundar numa coisa: revolução. Perante esta alarmante denúncia da conexão entre a democracia social e a teoria evolucionista, Schmidt, um dos partidários de Haeckel, prontificou-se a desmentir qualquer possibilidade de idílio. Declarou peremptoriamente que não era razoável qualquer afinidade entre o socialismo e o darwinismo. Pois neste, a não ser nos estágios mais básicos do desenvolvimento dos animais sociais, a igualdade indiferenciada cedia passo ao egoísmo galopante dos indivíduos. Além de que as ideias igualitárias socialistas contradiziam os factos da selecção natural.
Mas a polémica estava lançada: a doutrina darwinista era essencialmente democrática ou aristocrática?
Manifesto era que nela se salientavam algumas concepções anti-aristocráticas, a saber:
1. A selecção dos mais aptos baseava-se num cego processo mecânico de luta pela existência. O basilar de qualquer pensamento aristocrático não estava presente: o triunfo decorrente dum mérito individual resultante dos próprios meios. Além disso, a Aristocracia é um conceito fundamentalmente ético. Ora, Darwin retirava a ética da natureza. Imperava doravante a brutalidade pura.
2. A noção da influência determinante do meio sobre o organismo.
Poderíamos ainda referir a matriz preponderantemente democrática do pensamento socio-político dos principais promotores do Darwinismo, desde o fundador ao próprio Haeckel.
Não obstante, na medida em que os socialistas eram vistos por todos eles como uma evidente ameaça ao Estado vigente, que de facto até eram, havia necessidade de cultivar uma separação e afastamento bem vincados. Caso contrário, era a própria divulgação evangélica que ficava em risco, por desconfiança e repressão das autoridades. Haeckel e os seus sentiram-se assim no dever de reforçar a propaganda da nova teoria como uma doutrina de cariz profundamente desigualitário, celebradora do individualismo egoísta, no estreito cumprimento das inexoráveis leis naturais, repito, estritamente mecânicas. Saliente-se que Haeckel procedia a uma transposição radical que o texto da "origem das espécies" apenas esboçava: integrava, sem grandes ressalvas ou critérios, a espécie humana no concerto geral das restantes.
Enquanto isto, os socialistas pressentiam as potencialidades "democráticas" (entenda-se: terraplenantes) da nova filosofia; coincidiam com os darwinistas na luta contra a Igreja e a filosofia idealista; e concordavam com as suas perspectivas completamente materialistas sobre a humanidade. E se os seus principais representantes (dos darwinistas) eram oriundos do hegelianismo, isso em nada os perturbava: não tinham por lá gatinhado também materialistas de boa cepa como Strauss e Feurbach?
O resultado de toda esta caldeirada foi o darwinismo, na Alemanha (ao fim e ao cabo, a sua incubadoura científica) ter-se tornado duma abrangência altamente ambígua, aparentemente paradoxal: de facto, enquanto grelha a aplicar ao homem, híbrido de pseudo-aristocracia com democracia comunista. Uma mistura explosiva que havia de consolidar e fermentar ao longo dos decénios seguintes. Até que, desse tronco quimérico, por via dos enxertos da eugenia e das modas racialógicas, acabaram por brotar frutos bizarros.
Lá iremos.
Ensinou-me o meu avô: convém malhar enquanto está quente.