segunda-feira, outubro 30, 2006

JUKEBOXE 7 - 4ª Lição: O Rock'n'Roll do Outro Lado do Espelho

O Rock'n'Roll foi um ressurgimento intempestivo do romantismo. Sinal disso mesmo é a recusa da realidade e o recurso às drogas catalizadoras.

(Jefferson Airplane - White Rabbit)

Beco sem saída

Talvez umas modificaçõezinhas no léxico acalmassem os fornicoques fracturantes...
Por exemplo, em vez de “interrupção voluntária da gravidez” rotulavam o fenómeno como “deslocalização da mãe fábrica”; ou “despedimento do embrião com justa causa”; ou ainda “ rentabilização dos recursos pré-humanos, por imperativos de mercado”. No fundo, se formos a ver bem, esse até é um dos argumentos basilares da mamã desembaraçada: não permitir que um alião* inoportuno venha estorvar toda uma saga agenciadora de ego-recreação, riqueza e prazer.
Visto sob esta nova nomenclatura, há até uma vantagem que desde logo se impõe: os aborcionistas de esquerda, junkies empedernidos do reflexo condicionado, num ápice, transferir-se-iam de armas e bagagens para a barricada oposta. Alguém tem dúvidas? Em menos de nada, desatavam a bradar contra o neoabortismo selvagem, os monopólios intra-uterinos e suas perversões exploradoras. O que, convenhamos, não deixava de ter a sua piada.
O pior é que, ao mesmo ritmo e com velocidade não menos alucinante, grande parte da direita contra-aborcionista migraria no sentido inverso. E desataria, numa algazarra ainda mais desvairada, a clamar pela redução do défice, pela purga do estado (de gravidez) e pela adjudicação da culpa ao mais fraco e indefeso.
E tínhamos assim, de novo, a questão fracturante. Uma maçada, pois é. E um beco sem saída.


* Alião - Alien, na linguagem dragoniana. (Devo todavia reconhecer que surripiei o termo ao léxico Caguinchiano).

domingo, outubro 29, 2006

Um país de artistas

Aqui há tempos, vai para coisa de quatro meses, vivia-se então a epopeia do mundial futeboleiro, uma alma benemérita, provavelmente preocupada com o meu afastamento das coisas mundanas, como sejam as cavalidades que quotidianamente se aspergem sobre as massas, enviou-me, via email, um artigo dum tal José Manuel Barroso. Comecei por experimentar um calafrio inaudito, ao ler o nome do escriba: tratar-se-ia do Zé Manel Durão Barroso, o maoista arrependido? Persignei-me e corri a armar-me duma grinalda de alhos, bem como dum sortido variado de martelos e estacas. Graças a Deus, não era. Era outro. Todavia, segundo averiguei, faz parte do painel de (a)luminárias que bolsa regularmente no DN, o que só por si é uma promessa de náusea garantida... e superlativa.
Este Zé-Manel, ao que tudo indica, pertence à facção Delgados, Amarais & Afins, a qual, como todos sabemos, simula uma alternativa à Côncio, Lopes e Assados, mas, na verdade, mais não exerce do que contracenar num épico de imbecilidade conjunta cujos limites desafiam as megalomenorreias mais exacerbadas de um Cecil B. DeMille a dieta rigorosa de LSD, psicolaxante e água das malvas. Todos juntos, devem rondar os quarenta - entre charlatões, pilha-galinhas e génios da lâmpada, cada qual mais obcecado que o compadre em armazenar, à maneira das pegas, pechisbeques e marroquinarias num cavername ignoto, sob a basbaquerie gulosa dos Ali-Babás, Bebés, Bibis, Bobós e Bubus da paróquia.
A mim, porém, conhecedor calejado e veterano destas hortofrescuras, é que já não me apanham desprevenido. Blindado pela ascese, jamais dispenso o capacete do método. Assim, reconhecida a autoria do despejo, cartografado o chiqueiro onde regularmente refocila, preparei-me para o pior. O chorrilho que de seguida sobrevoei, de narinas bem apertadas, não me desiludiu. Uma descarga dignas das melhores suiniculturas, benza-a Deus.
O Zé-Manel, pasme-se, tem um país e decidiu tirar-se de cuidados, pousar por momento os lavores, para nos falar dele.
Ora, no país do Zé-Manel, a que ele, com imensa graça, chama Portugal, «milhares de portugueses aprenderam a cantar o Hino e a usar os símbolos nacionais com orgulho, por causa do Euro 2004 e agora do Mundial.» Nem mais. Que maravilha! Significa isto, que, de dois em dois anos, são organizadas magníficas jornadas de alfabetização simbólica. As massas aprendizes, sequiosas de cultura heráldica, são acantonadas em estádios-escola onde aprendem a cantar o hino e a agitar as bandeiras ao vento. Afinal, não é o fado que induca nem o vinho que instrói: é o futebol que trata de ambas as tarefas. Verdadeiro dois em um: shampô e amaciador de cerebelo.
Esta euforia cantadeira e bandeirante, segundo o insigne Zé-Manel, tricotador de bacoquices fulgurantes, revela, sem margem para qualquer dúvida ou hesitação, que «a ideia profunda de País e de Nação venceu a ideia rasca e anti-portuguesa do antinacionalismo».
Portanto,a "ideia profunda de país e de Nação" - o país e a nação do Zé Manel, nunca é de menos destacar -, consiste em cantar o hino e brandir a bandeira -e, já agora, pintar o cabelo, as ventas, o traseiro, as mamas, etc - com as cores ditas nacionais, patrióticas, defronte duns marmanjões pagos a preço de ouro que se entretêm a preencher de pontapés uma esfera de ar encadernada a couro. Curiosamente, a "ideia profunda de país e nação" dos Zé-Manéis em nada se distingue dessa mesma ideia, tão abissalmente profunda, dos angolanos, dos japoneses, dos mexicanos, dos brasileiros, dos ingleses, etc, etc. Aliás, no caso dos angolanos, mexicanos, brasileiros e alguns outros, a ideia ainda é mais profunda, pois eles não só trinam e desfraldam bandeiras com idêntica fúria, como ainda dançam, deliram e festejam até à exaustão. Os ingleses, esses, supervisores da democracia e da civilização na Europa, sempre zelosos dos seus privilégios, vão ainda mais longe: escavacam coisas, urram em bandos e mergulham em coma alcoólico. Mais profundo que isto é difícil.
Mas Zé-Manel é coerente nas suas extravagâncias. Celebra, com fanfarra e majoretes, que «esta ideia de Pátria, de Nação, de País está de novo caminhando.» «Não tanto, ainda, pelo que conseguimos fazer de bom na economia, na educação ou noutros campos (e é universalmente reconhecido pelos portugueses) (...)», nem, tão pouco, reconhece ele, com olímpica displiscência, «pelo culto positivo da nossa história, da nossa literatura, da nossa língua e da nossa cultura». Para tipos profundos, como os Zé Manéis do Zé-Manelogal, tudo isso são minudências, detalhes despiciendos. Que interessa a economia, a educação, a história, a literatura, a língua, a nossa cultura, quando existe o futebol e os estádios-escola onde os nacionalistas dos abismos podem aprender a cantar o hino e a ondular a bandeira? Melhor economia, educação, história, literatura, língua e cultura não se conhece. O povo, como eu sempre profetizei, após não sei quantas campanhas de dinamização falhadas, descobriu a pedra filosofal: auto-educa-se. Depois da descoberta que o universo se auto-engendrou, maior e melhor revelação não era possível.
Pois bem, certamente na senda desta magnivisão Zé-Manuelina, arauta e tabernacular do nacionalismo benigno, eclodiu recentemente na RTP uma iniciativa patriótica de análogo jaez e não inferior pedigree. Intitula-se “Os Grandes Portugueses” e pressupõe uma eleiçoeirice qualquer para entreter as massas, desocupadas que se encontram estas, no intervalo entre as bandeiro-cantorias do último mundial e as cantarolo-bandeiradas do próximo europeu. Há que manter viva a chama. Não deixar arrefecer os ânimos.
Para o efeito criou até, aquela estação pública, uma página na Net com uma lista de realces históricos, acompanhados de biografias altamente esclarecedoras.
Foi quando, por mera curiosidade, consultava uma destas, que garimpei a pérola que aqui venho, em êxtase, ostentar. É acerca duma das figuras por quem tenho especial admiração: Nuno Álvares Pereira. Transcrevo:
«"Estava sempre pronto para servir a pátria", diz Hélio Loureiro, cozinheiro da Selecção Nacional de Futebol.»
Devo subentender que o cozinheiro da Selecção nacional é um licenciado - senão mesmo mestre - em História, daqueles milhares que vulgarmente penam no desemprego, mas que, por sortilégio óbvio de apelido, lá desenrascou um providencial tacho como cozinheiro federativo? Ou então tratar-se-á apenas de um cozinheiro excepcionalmente erudito, membro dum colégio de catedráticos que, num rasgo de dedicação patriótica, condescenderam em acolitar humildemente os pés, as panças e sabe-se lá mais o quê dos supremos heróis da nação?
Seja como for, fico em pulgas para saber o que nos tem a dizer o roupeiro sobre Afonso de Albuquerque, o massagista acerca de D.Afonso Henriques, ou o apanha-bolas em favor do Príncipe Perfeito, do Infante ou de Fernando Pessoa. E o cabeleireiro da Selecção Nacional, meu Deus, o cabeleireiro, por que Torres do Tombo terá estagiado ele?!...
Mais palavras para quê? Não é apenas um artista português: é todo um país superlotado deles.

Hobby perfeito

Há quem se divirta a ler o que eu escrevo; e há quem, à falta de sentido de humor, se descabele e abespinhe. Quem se diverte justifica-me; quem se descabela dá-me gozo. É um hobby perfeito.
Fora isso, naturalmente, um blogue não é uma coisa séria. A própria vida cada vez o é menos.

Sursum Rigor

Em todo o tipo de impressos onde se peça a nacionalidade, eu passei a escrever “desempregado”.

sábado, outubro 28, 2006

JUKEBOXE 6 - 3ª Lição: A Genealogia do Rock'n'Roll

Assim como a Pop é um derivado dos estrogénos, o Rock'n'Roll é um destilado da testosterona. Tem um peso específico, uma brutalidade e crueza características. Mas, melhor que isso tudo, o Rock'n'Roll é nietzschiano: se a guerra -dos povos - é a higiene, o Rock'n'Roll -da guerra - é a banda sonora.

(Rolling Stones -"Paint it Black")

sexta-feira, outubro 27, 2006

JUKEBOXE 5 - 2ªLição: Protopedagogia do Rock'n'Roll

Os autênticos. Estes sim, dignos de figurar em murais sacros e pinturas urbano rupestres.
(ZZ Top - "La Grange")

Batraquiomaquia sport

Entretanto, prossegue a bom ritmo a renhida partida entre os embriofilos e os embriofobos. Neste momento não sei em quanto vai o resultado. Mas, de parte a parte, multiplicam-se os cestos, as bicicletas e os passing-shots. Temo bem que o placard não resista.

Outros tempos, outras modas

Na minha última rusga pelos alfarrabistas, deparou-se-me o seguinte cartapácio: "Dois anos junto de Hitler", de Nevile Henderson. Este cavalheiro foi o embaixador de Sua Majestade Britânica em Berlin, desde 1937 até à declaração da 2ª Guerra Mundial. O livro lê-se bem, conto acabar hoje com ele e, a certa altura, na página 31, o digníssimo embaixador escreve o curiosíssimo trecho que passo a transcrever:
«Os ditadores só se transformam num mal para os seus povos e num perigo para os seus vizinhos quando o poder lhes sobe à cabeça e quando a ambição e o desejo de durar os levam à opressão e à aventura.
Mas mesmo quando são duradouras, nem todas as ditaduras podem ser censuradas. Ataturk (Mustafá Kemal) construiu uma nova Turquia sobre as ruínas da antiga, e toda a gente esqueceu ou perdoou as suas medidas de expulsão dos gregos as quais, provavelmente, sugeriram a Hitler a ideia de que podia fazer o mesmo com os judeus. É impossível, apenas porque se trata dum ditador, contestar os altos serviços que Mussolini tem prestado à Itália. da mesma forma o mundo reconheceria em Hitler um grande alemão se ele tivesse sabido moderar-se a tempo. A moderação deveria ter-se iniciado em seguida a Munich e às leis de Nuremberg contra os judeus.
O doutor Salazar, ditador de Portugal, soube traçar ele próprio os limites da sua acção e manter-se dentro deles. É por isso, decerto, um dos homens de estado europeus mais equilibrados no período que se seguiu à última guerra.»


Chamo a atenção que o livro é de 1940.

As conjecturas deixo-as a cada qual. Por mim, ouso apenas uma breve nota:
A ideologia não difere muito da alta costura. A reger o império dos homens, na antiguidade clássica, havia a Moira; agora, na comtemporaneidade, há a Moda. No momento actual os ditadores estão démodés. Mas um dia destes - caos e excesso oblige - voltam a estar na berra. É cíclico. Não constitui especial novidade ou, sequer, sordidez acrescentada. Repugnante, repugnante mesmo, será verificar que aqueles que hoje em dia se enfarpelam beatorramente em traparia democrática serão os primeiros a correr às fardas despóticas, mal os estilistas mundiais o decretem e os mass-media, em apoteose salvífica, entre foguetes e aleluias, o anunciem.
A mentalidade parasita acompanha a besta hospedeira para onde quer que ela se tresmalhe.

quinta-feira, outubro 26, 2006

JUKEBOXE 4 - 1ª Lição: INTRODUÇÃO AO ROCK AND ROLL

Finalmente, para a ala masculina que padece de surdez funcional... Iniciamos aqui o processo educativo propriamente dito. O Rock and Roll é um estilo musical inexplicável, pelo que me poupo a mais palavreados. Explicá-lo seria complicá-lo. E o Rock'n'Roll é simples. E quando bem tocado, como é o presente caso, empolgante e devastador.
Estes são os Led Zeppelin, uns rapazes desembaraçados. O vocalista sempre me irritou um bocado, sempre o achei um bocado paneleirote. Mas os outros três mânfios compensam com juros. Acreditem. Por conseguinte, subam o volume, ponham-se de joelhos e celebrem.
Em registo pesado, melhor que isto, nunca mais ninguém conseguiu.
Morte ao pop!!

(Led Zeppelin - "Rock and Roll")

O Ministro à entrada do labirinto



Assim, de ricochete, pareceu-me ouvir o ministro da Finanças, no Jornal da tarde da RTP, a proferir, com quantos dentes tinha, que ia taxar a banca, tal qual taxa qualquer outra empresa. Naturalmente, escandalizei-me. Fervilhei logo de indignação. No ponto em que isto está, o Governo a declarar que vai tributar a banca é uma imoralidade só equiparável ao Papa a intimar Deus para pagar imposto.
Olha que aborrecido!...

Suspeito que depois de fazerem do cidadão otário, querem fazer do otário parvo.
JUKEBOXE 3 - Ainda para as leitoras, elas merecem.

Radiohead - "Creep"
JUKEBOXE 1 - Ainda especialmente dedicado às estimadas leitoras

The Moody Blues - "Nights in White Satin"(a 1º versão do vídeo, gravada em Paris)
JUKEBOXE 0 - Especialmente dedicado às queridas leitoras

Procol Harum -"A Whiter Shade of Pale"

Educação musical



Os meus leitores, pessoas inteligentíssimas todos eles, geniais não raramente, poços de sensibilidade e perspicácia a quase todas as horas, padecem, alguns, e todavia, de problemas sérios do foro da otorrinolaringologia. A começar no católico sinistro que idolatra Pet Shop Boys e a acabar nos jovens arianos que me apelidaram de caquético, anquilosado, fóssil e mais não sei quantos, tem sido um verdadeiro desfile de deficiência auditiva e paralisia melómana em último grau.
Não desespereis, caros leitores! Sabeis que o Dragão vela por vós. Não quero que nada vos falte: muito menos o sentido melódico.
Assim, em forma de terapia sonora, de molde a atenuar essa grave maleita que vos tolhe e enquadrupedesce, decidi inaugurar, aqui nesta nave espacial, uma rubrica de "educação auditiva". Até já tenho o título para a mesma : Jukeboxe!
Supimpa, não?
Vou-vos enfardar nesses orelhões entupidos até que imploreis por misericórdia, ou eu não me chame César Augusto Dragão!
Em suma, há merdas que eu não admito. Que as pessoas não partilhem das minhas ideias políticas, acho muito bem. Reconforta-me e enche-me de alacridade. Sou mesmo da opinião que ninguém deve partilhar das ideias políticas de outrém. As ideias políticas são como as cuecas, cada qual anda com as suas, senão é uma porcaria e torna-se deveras suspeito. Estou a falar a sério. Agora que não comunguem dos meus gostos musicais, isso não admito. Não só não admito, como não tolero. Fico fodido e torno-me violento! Capaz de sabe-se lá que hecatombes, defenestrações e razias! Nazismos, fascismos, comunismos, neoconismos, psicopatias e coisas assim, tudo bem, até compreendo, transijo, contemporizo. O Homem erra, erra muito, se é que não é mesmo - todo ele - um erro da Natureza. Agora, mau-gosto... Porra!, mau-gosto, foleirada, matarroanice é que não! Nem um mílimetro! Nem nada! Não passarão!...
Se não gostam, bico calado! Se são completamente destituídos de gosto, ao menos não o sejam de vergonha.
Eu meto-me com os vossos gostos políticos? Bem, até meto. Sempre que me apetece, pois é... Ora, mas eu sou eu. Stirner explica bem o que isso significa. Agora vocês, que sois vocês, não tendes nada que meter prego nem estopa nos meus decretos estéticos universais, pelo que só vos competem duas coisas: maravilha e deslumbramento. Com os meus gostos musicais, naturalmente.

Já de seguida, dedicado às minhas queridas leitoras, umas santas e esbeltas criaturas que nada têm que ver com estes sarrabulhos, passo a emitir a primeira edição da Jukeboxe. A primeira e, se calhar, a segunda, a terceira e quantas me der na real gana. Comigo é sempre o prazer primeiro e o trabalho depois. Um cérebro de Ulisses enxertado num arcaboiço de Hércules.
Os audio-entrevadinhos que esperem! Até porque não perdem nada pela demora.

PS: se algum fdp me vier com conjecturas políticas acerca de música, eu vou-me chatear. Vou mesmo! Aliás, indigito desde já um certo orifício, ao fundo das costas dele, onde pode, por antecipação e apartado, enfiar as tais "conjecturas".

quarta-feira, outubro 25, 2006

Tens que entrar para sair...

Uma versão de 1999 duma música de um dos melhores albuns da história da música rock: "The Lamb Lies down on Broadway".

Parafilias e taramanias


Cinco a dez portugueses morrem, todos os anos, por -pasme-se! - asfixia auto-erótica.
Consiste esta, segundo um especialista nestas frescuras, em a criatura esganar-se à medida que se masturba, ou vice-versa. O orgasmo no limiar do delíquio, reclamam os devotos praticantes e confirma o cientista, será mais intenso. Confesso que nunca tal coisa me tinha ocorrido. Sabia que, por altura dos dependuramentos extremos, os enforcados, referem as crónicas, ejaculavam. Dizia-se até que no local do solo fertilizados pelo sémen vertido nascia a mandrágora, planta de propriedades mágicas, muito requisitada por bruxas e alquimistas. Mas daí a pensar em punhetear-me dependurado pelo pescoço, francamente, é bizarria fora do meu alcance. Mesmo em garoto, quando o vício, por vezes, se abeirou perigosamente do tique, à falta da endiabrada mãozinha da Fernanda, limitei-me a confiar a imperiosa tarefa à minha própria destra. Não era a mesma coisa, nem nada que se parecesse, mas o pior que me podia acontecer, acreditava eu naquele tempo, era ficar tuberculoso. Ou ceguinho. O que sempre tinha a utilidade de me frear os ímpetos. De todo o modo, nunca me deu para confundir a cabeça de baixo com a de cima, e garrotar esta em vez daquela. É que nem morto.
Outras parafilias (nome técnico para estas grandessíssimas taras) igualmente praticadas, mas só agora merecedoras de divulgação, são a formicofilia e a clistofilia. A primeira, diz o perito, consiste em entregar os genitais e outras zonas erógenas aos jogings, afagos e micro-carícias de certos insectos rastejantes ou gastrópodes viscosos; a segunda pode ser descrita como masturbação à força de clisteres. Eventuais vítimas destas garridices, a notícia não menciona. Facilmente sugestionável e dotado duma imaginação imarcescível, eu, porém, não me custa muito -aliás, não me custa mesmo nada - conceber as mais abstrusas emergências, culminadas nas mais convulsivas aflições: uma balzaquiana vinilizada, aos uivos, com um louva-a-deus catrafilado ao clitóris; um executivo bancário com um escaravelho-das-bolas minando para lá do parque das ditas e dos limites convenientes do anillingus - ou melhor será dizer animaxilingus -; etc, etc.
Mas se estas estapafúrdias bizarrias são praticadas -quero crer - por uma percentagem pouco significativa da lusa população, outras há, pelo contrário, que o são endemicamente.
A mais grave de todas, ninguém duvide, é a chamada condução auto-erótica, que consiste em o aborígene se masturbar com a respectiva viatura automóvel. É geral, compulsiva e desvairada de norte a sul do país. Nos casos mais agudos, o mesmo indivíduo chega ao extremo de onanizar-se com vários automóveis, barcos, motas-de-água e jets privados.
Já a mais agressiva é a denominada governação auto-erótica. É em tudo semelhante à formicofilia. Só que em vez de formigas, utiliza pessoas. E, bem entendido, o voto dos eleitores, os cargos da administração pública e os cofres do Estado.
Eu ainda ia falar da estirpe mais avançada da clistofilia, que consiste na postagem, leitura e comentário em blogues de referência, mas acho melhor deixar para outro dia.

terça-feira, outubro 24, 2006

Realidade e ficção



Quando a realidade se torna mais alucinada e umbrosa que a ficção tétrica, os profissionais desta podem queixar-se de concorrência desleal dos magarefes daquela. É o que Stephen King faz em relação a George W.Bush. Por este andar, os livros de King nem como literatura infantil se safam!...

«"If I know anything, I know scary," King emailed. "And giving this president and this out-of-control Congress two more years to screw up our future is downright terrifying. Thankfully, this national nightmare is one we can end with—literally—a wake up call".»
Esta, subentende-se, é a música ambiente deste blogue...

O da voz ficou famoso, mas chamo particular atenção para o rapaz da bateria...
12.47 minutos que valem até à última gota.
Momento musical

Uma das minhas músicas preferidas... da minha banda prefilecta.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Tempo de Antena - Obus Gay, Ilda Anormal e LGTB-GTI

(O tempo de antena que se segue é da exclusiva responsabilidade da Obus-Gay, Ilda Anormal e LGTB-GTI)



Astérix é xenófobo! incute nas criancinhas aversão ao estrangeiro, ao multiculturalismo e à babel do arco-da-velha.
Astérix é um nacionalista feroz! - conspira contra a proto-globalização, consubstanciada na comunidade romana da época, muita mais evoluída tecnológica, social e politicamente.
Astérix é retrógrado e reaccionário! - opõe-se ao progresso, à melhoria das condições de vida dos aldeãos através do investimento externo e da prestação de serviços, apoia a monarquia, a superstição religiosa e contribui para a alienação do operário Obelix, seu ordenança analfabeto e mão-de-obra gratuita para os permanentes raides violentos e operações anti-Mercado em que ambos, com troglodita obstinação, se encarniçam.
Astérix é galofaxista! - a aldeia é um antro de terroristas empedernidos, todos eles fanatizados, que urdem planos maléficos, projectos sabotadores e acções demolidoras contra a Civilização Ocidental e o seu superlativo modo de vida.
Astérix é anti-semita! - a aldeia não tem nenhum simpático judeu, que trate de emprestar dinheiro a juros, que faça progredir as ciências ou que dirija os media do lugarejo.
Astérix é um perigoso comunista! - o banquete final e a poção mágica são colectivos, fraternais e não, como se impunha, distribuídos segundo o pedigree, o curriculum vitae, os contactos ao mais alto nível ou a ambição de cada privado. Além disso, a irredutível aldeia fundamenta-se na tribo e não na Sociedade Anónima.
Toda a aldeia é homofóbica, maltratando e oprimindo o bardo-gay!


Os livros de Astérix deviam ser equiparados ao "Mein Kampf", pois em nada se distinguem. Com a agravante de aspergirem a sua nefasta influência sobre mentes ainda tenras e indefesas.
Apelamos desde já à Fernanda Câncio para que apele ao boicote imediato e total dos livros de Astérix! Basta desta pedopornografia bélica! Queremos adoptar crianças não poluídas e pervertidas por estas rudes axiomáticas trauliteiras! Basta!

A não ser que, no número deste Natal, o autor se retrate, ou seja, que Astérix e Obelix assumam a sua relação, sejam casados pelo Druida e adoptem um pretinho Núbio (pode ser, por exemplo, aquele que faz de gajeiro no navio pirata) e tudo termine, não com um banquete de alarves carnívoros, mas num piquenique romântico a dois, ou melhor, a três, já que o bardo também participará, a título de artista convidado. Aliás, a quatro. Já nos esquecíamos do pretinho Núbio...
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A mensagem que acabaram de ler foi da exclusiva responsabilidade dos intervenientes.

domingo, outubro 22, 2006

A Entrevista de Ab, dito Lecrercq, ao Dragão



- É solidário com os 'ocupantes' de um certo teatro do Porto?
- Isso do Porto é o quê? Fica aonde? Julguei que o assunto se esgotava numa marca de Vinhos e num clube de futebol. Há mais alguma coisa de interesse?... Duvido. Os problemas da província nunca me interessaram muito. Aliás, em termos de províncias, sempre preferi as ultramarinas.
- Acha que eles têm razão?
- Eles vivem. Eles blogam. Eles governam. Eles ocupam. Eles discutem. Devo surpreender-me se eles têm razão? Não é difícil ter razão. Hoje em dia toda a gente tem razão. Quanto mais não seja, por definição específica.
- Acha que os contribuintes devem continuar a 'subsidiar' peças de Bertold Brecht?
- A capacidade de subsidiar que os otários detêm é assombrosa. Os otários até subsidiam, alarvemente, os bancos. Portanto são capazes de subsidiar qualquer coisa. As peças do Brecht também. Não me chateia muito. Desde que não me obriguem a vê-las.
- E Meyerhold (coitado, teve o fim que teve)?...que tal?
- Desconheço completamente esse Meyerhold e rogo-lhe que não quebre o encanto, o repousante sortilégio desta minha ignorância. Levar-lhe-ei a mal se o intentar. Tenciono morrer neste belo estado.
- Acha que se deve continuar a discutir o existencialismo ateu?
- Sem dúvida. O ateu, o teu e o matateu. Todos. Com certeza não concebe que se censure qualquer tipo de discussão, pois não? Cairia o Carmo e a Trindade. Até porque os portugueses alcançaram um estado frenético em que devotam à discussão a mesma monomania desenfreada que os atenienses antigos devotavam aos tribunais. O português cada vez faz menos e cada vez faz pior, mas, em compensação, cada vez discute mais. Discute tudo e mais alguma coisa. Qualquer micropintelho ou reles minhoquice lhe serve, lhe faz deflagrar as meninges e efervescer os azeites. É um povo bipolar: oscila entre décadas de unanimismo e decénios de discórdia. O tuga coevus tem mesmo a capacidade peregrina de discordar consigo próprio: uma coisa que diz hoje, rebate-a sem apelo nem agravo amanhã; uma que sustenta de manhã, fá-la em fanicos à tarde; a verdade que jura ao domingo, renega-a olimpicamente à segunda-feira. O desígnio nacional agora é "sursum discorda!" Deus nos proteja desta gente.
- Acha que a 'História da Humanidade é a História da Luta de Classes'?
- Atenho-me à minha própria experiência. Sou forçado a inclinar-me mais para uma “luta de anos” em vez da famigerada “luta de classes”. Recordo-me que era no terceiro ano do liceu (do antigamente) que nós eramos mais oprimidos pelos do 6º e 7º, uns calmeirões do diabo que, entre outras brutalidades unilaterais, nos punham a medir o perímetro da sala de convívio com um pau de fósforo. E se era grande a Sala de convívio do Liceu D.João de Castro! Era desumano. Foram três anos da minha vida em que militei convictamente nas fileiras dos cobardes profissionais. Portanto, nem direi que a “luta de anos” seja a história da Humanidade, mas antes da “desumanidade”. Confunde-se muito a “História da Desumanidade” com a “História da Humanidade”.
- O que acha da obra do sr.Pinter?
- Acho que é excelente, na medida em que não conheço nada dela. Enquanto as coisas se mantiveram nessa idílica conjuntura, nada terei a obstar-lhe e desejarei mesmo ao nobelado autor um feliz Natal e um próspero Ano Novo.
- Será que deve haver Ministério da Cultura? (se sim, em que moldes e com que política?)...ou chegaria uma Secretaria de Estado? Ou nem uma coisa nem outra?
- É o que se chama fechar a entrevista com uma pergunta de ouro. Uma não, um cluster delas. Respondendo: Sim, devia haver Ministério da Cultura, se eu fosse o Ministro vitalício e plenipotenciário. Em qualquer outro caso, não. De maneira nenhuma! É absolutamente inútil e desnecessário.
Bem, mas sendo eu o Ministro, garanto desde já que uma única Secretária de Estado seria, de todo, insuficiente, escassíssima. Teriam que ser necessariamente várias, altas, curvilíneas, seleccionadas segundo os mais elevados padrões estéticos e rodando trimestralmente. Se não há estética no Ministério, como poderá haver estética na Cultura? Aliás, sem estética nem sequer há cultura.
Quanto aos moldes, entendo que os moldes de harém eram os que mais se lhe adequavam: o Ministério como harém do Ministro. Poderá conceber-se coisa mais justa? Penso que não. Quanto à política, seria simples: nada de subsídios aos empréstimos bancários de toda uma horda de gente putativamente delicada e artista, mas que, na maior parte dos casos, nunca devia ter saído do Alentejo, onde os seus reais talentos bem melhor seriam empregues na agro-pecuária ou no contrabando. A função do Ministério, enquanto entidade subsidiante, restringir-se-ia ao subsídio dos devaneios e fantasias do Ministro. O lema deste não enfermaria das habituais labirintices, mas resumir-se-ia numa fórmula límpida, absolutamente transparente e particularmente feliz: "A Cultura sou eu".
Acresce a tudo isto a vantagem inaudita de, um Ministério da Cultura comigo a titular, dispensar e tornar redundante todo o restante governo, Primeiro-ministro incluído. A poupança que não era para os otários deste país!...

sábado, outubro 21, 2006

Momento de poesia

«Cara de réu com fumos de juiz,
figura de presepe ou de entremez,
Mal haja quem te sofre e quem te fez
já que mordeste as décimas que fiz.

Hei-de pôr-te na testa um T com giz,
Por mais e mais pinotes que tu dês;
E, depois, com dois murros ou três
Acabrunhar-te os queixos e o nariz.

Quem de cachola vã te inflama o gás
E a abocanhares sílabas te induz,
Oh dos brutos e alarves, capataz?

Nem sabes o A B C, pobre lapuz;
E pasmo de que, sendo um Satanás,
Com tinta faças o sinal da cruz!»

- Manuel Maria Barbosa du Bocage

sexta-feira, outubro 20, 2006

A Bem da eulalia e da subtileza (bem como da moral e bons costumes)...



«Não digais: "Tenho vontade de foder". Dizei: "Sinto-me nervosa".

Não digais: "Vim-me como uma louca". Dizei: "Sinto-me um pouco cansada".

Não digais: "Vou-me masturbar". Dizei: "Volto já."

Não digais: "Quando eu tiver pintelhos nos cu". Dizei: "Quando eu for crescida".

Não digais: "Gosto mais da língua do que da pissa". Dizei: " Só gosto dos prazeres delicados:"

Não digais: "Entre as refeições só bebo esporra." Dizei: "Tenho uma dieta especial."

Nõ digais: "Ela vem-se como uma égua a mijar." Dizei: "É uma exaltada".

Não digais: "Quando se lhe mostra uma pissa, fica zangada." Dizei: "É uma original."

Não digais: "É a maior puta da terra." Dizei: "É a melhor menina deste mundo."

Não digais: "Vi-a foder pelos dois lados." Dizei:"É uma eclética."

Não digais: "Deixa-se enrabar por todos quantos lhe façam minete." Dizei: "É um pouco namoradeira."

Não digais: "Ele entesoa como um cavalo." Dizei: "É um jovem perfeito."

Não digais: "A pissa dele é grande demais para a minha boca." Dizei: "Sinto-me uma criança, quando falo com ele."

Bão digais: "Ele veio-se-me na cara e eu na dele." Dizei: "Trocámos algumas impressões."

Não digais: "Quando se o chupa, descarrega logo." Dizei: "É um repentino."

Não digais: "É uma fressureira endiabrada." Dizei: "não é nada namoradeira."

Não digais: "Dá três sem a tirar." Dizei:"É um simplório."

Evitai as comparações temerárias. Não digais: "Dura como uma pissa, redondo como um colhão, molhado como a minha racha, salgado como esporra, não maior que o meu grelinho", e outras expressões que não são admitidas pelo Dicionário da Academia.»

- Pierre Louÿs, "Manual de Civilidade para Meninas"

Antropopitecos confusus

Neste país da treta, a compulsão com que certas antropopitecos liberalóides -panopinadores furiosos - pretendem submeter a cultura a critérios quantitativos puramente económicos só tem paralelo no idêntico frenesim com que os mesmos, mais outros semelhantes geralmente empoleirados na governação e na administração dos negócios do Estado, sujeitam a economia a critérios puramente ficcionistas, poéticos e dramatúrgicos. É uma pena - e um desperdício sinergético – que esta macacada nem domine a noção elementar que lhes compete: saber, ao menos, que galho é o seu.
Escapa-se-me o interesse, o assunto e a pertinência da apreciação da cultura por culturófobos, tanto quanto do exame da economia por poetas, aguarelistas ou encenadores. Redunda no mesmo rilhafoles que entregar o ensino primário a pedófilos ou canibais, e o patrulhamento das estradas a tetraplégicos.
E, todavia, não incorro em fantasia se disser que é num manicómio destes que o país zaranza. E patina pelo ralo abaixo.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Lójica au jumentine

...


Juízo de valor:
Fulano é cretino.

Juízo de facto:
A cretinice sequestrou Fulano.

Conclusão: O calcanhar de Aquiles de qualquer putativa objectividade é a linguagem.
Solução: (Wittgenstein e o Zé Povinho corroboram-se) caladinho é uma virtude. Em matraca fechada, não entra mosca nem sai asneira.

Juízo de Dragão: a mãe de Fulano, além da boca, devia ter fechado as pernas. Não entravam germes, nem brotavam asnos.

Lusofagia



Algures em Espanha, 9 de Dezembro de 1967...
«Depois, faço escorregar a conversa para o iberismo, para a obsessão constante da Espanha, através de séculos e séculos, em anexar Portugal, e que pressinto hoje tão viva como sempre. Muñoz-Grandes, pessoalmente um amigo e homem íntegro, reconhece que é assim. Comenta com óbvia franqueza: "Eu lhe digo. Há, em relação a Portugal, duas classes de espanhóis. Há os que querem a integração, a anexação, o desaparecimento político de Portugal, e isso quase imediatamente, e por quaisquer meios que forem necessários. E há os que desejam o mesmo objectivo, mas a conseguir gradualmente, em cinquenta ou setenta anos. Os primeiros são cerca de 90%, os segundos formam os restantes 10%. Isto faz parte da alma espanhola, não vejo como modificá-lo". E o capitão-general acrescenta muito seriamente, e com óbvia sinceridade, carregando no peito com a mão direita espalmada: "Acredite, eu faço parte dos dez por cento, não quero violências, tudo em amizade". Digo ao velho oficial que não duvido da sua franqueza sincera; mas peço-lhe que acredite também que o povo português não quer a união ibérica nem em cinquenta anos, nem em setenta, nem jamais.»

- Franco Nogueira, "Diário: 1960-1968"


Parece-me que estava a ser optimista, o Franco Nogueira. Ainda há dias, a propósito desta balbúrdia das maternidades, uma flausina qualquer de Elvas, que acabava de parir em Badajoz, desvanecia-se toda e bacorejava de volúpia com a qualidade do serviço.
Curiosamente, em 30 de Maio de 1961, já Benjamin Welles, correspondente do New York Times em Madrid e Lisboa, dizia a Franco Nogueira que a "Opus Dei preparava a sucessão de Franco (...) e, quanto a Portugal, era aguerridamente imperialista e iberista."
Bate certo. Os últimos anos, então, têm-no confirmado à evidência.
Entrevistas muito duvidosas...
Ocupação de empresa.

Berrar com voz de trabalhador e berrar com voz de faxista.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Como diria Mazarin...


Que ele o diz é um facto. Que os outros lho tenham dito a ele é uma bela questão. Se bem que, havemos de convir, uma guerra com Israel até era capaz de ser uma forma expedita dos franceses se livrarem daquela muçulmanada toda que lhes infesta o país. Dar-lhes uma boa ocupação, provavelmente, é o que eles precisam. Facultar-lhes o parque adequado para evacuarem toda aquela adrenalina gerada pela frustração e, ainda mais, pela vadiagem...

Eles - eles e os primos deles - que resolvessem lá aquilo entre eles.

E era excelente para a economia!

Chatices de um Chat



«Paul Gibbons, de 47 anos, de Bermondsey, Londres, atacou John Jones com uma picareta e uma faca, cortando-lhe a garganta, depois de ter ido a casa de Jones para pôr fim a uma discussão iniciada numa sala de chat online.»

Chamo a atenção para o detalhe da picareta. Delicioso! Épico!
É evidente que Gibbons estava decidido a tudo. A picareta é facilmente explicável: caso o outro se fortificasse hermeticamente no seu dómus -como, aliás, lhe competia! - Gibbons escavaria um túnel e surpreendê-lo-ia, de rompante, através do chão da cozinha. Lamentavelmente, ante tamanha displicência do adversário, tal estratagema tornou-se desnecessário.
Não beneficiou nada o espectáculo.
Moral da história: o mundo não está cada vez mais perigoso; está apenas mais anedótico.

Ainda por cima a picareta vai servir de agravante: a polícia vai acusá-lo de premeditação não só do crime, como de cavar do local do mesmo. E, se calhar, como a foto do cockpit de Gibbons (em epígrafe), de resto, comprova, também de escavar furtiva, ilícita e dolosamente para lá.

Hebdomadário Dragoniano

Cansado de remar contra a maré, decidi ser pluralista. Quer isto dizer que em cada dia da semana serei sua coisa. Passo a enumerar...
À segunda-feira:
Adopto uma postura juvenilmente nacionalista. Com tatuagem e piercings a rigor, hesitarei entre dedicar-me à criação duma espécie de rafeiro lusitano com pedigree confinado ao rectângulo pátrio, ou uma variante espirituosa de tuga peregrinus, em romaria devota pelo melhor dos mundos. No pior dos casos, ultrapassarei o entorpecimento ancestral dos brandos costumes, urdindo cargas homicidas ou raides punitivos contra a claque do clube rival, ou daquele que estiver mais a jeito nesse dia.
À terça-feira:
Serei marxista-leninista-stalinista et al (caiado a parlamentarismo de conveniência). Acharei bem que se mate, interne ou dê sumiço a quem não concorde comigo porque põe em risco a revolução e o caminho para a redenção humana. Morrem, são lobotomizados ou evaporam-se por uma boa causa e o que conta é a intenção. Os fins justificam os meios. Ámen.
Às quartas:
Serei democrata-liberal, de manhã; e democrata-neoliberal, à tarde. Tecerei louvas e incensos ao indivíduo e prostar-me-ei, às toladas e vénias, virado para Wall Street, em vassalagem ao Alá-Mercado e à pedra negra da Sociedade Anónima. Nada de pegar em armas: apenas calculadoras, telemóveis e portáteis. As armas, abençoadinhas não obstante, apenas as venderei para que outros se matem. De preferência pretos, árabes, monhés, chinocas ou quaisquer dessas escórias que não o branco anglófono made em Harvard, Yale ou Oxford e a sua corte internacional de cheira-cus e beija-rabos. Aproveito a confusão para mandar matar também alguns, cada vez mais, muito maus, que se opõem à redenção da humanidade pelo Milagre do Mercado, e vou sacando matérias primas e mão-de-obra ao preço da uva mijona.
À quinta-feira:
Serei democrata-cristão. Militarei sob um permanente estado de espírito esquizofrénico: a minha metade liberal, qual Caim belicoso, tentará matar a outra metade devota; a parte de mim que venera Mamon, arma emboscadas à minha parte que louva a Deus. Durante o dia, aproprio-me o mais possível; durante a noite, em sonhos, por descarga onírica, distribuo. Pelos lençóis.
À sexta-feira:
Serei da esquerda evoluída, lacoste. Só matarei embriões e tipos vegetalizados em camas de hospital. Em suma: coisas que não se possam defender. Pensarei também, muito, nas indumentárias, maquilhagens e penteados que melhor se adequam à próxima manifestação: aquela em defesa de facínoras, psicopatas e serial-killers, coitados, que o sistema fassista quer condenar à morte, no Texas ou na Cochinchina. No fundo, serei uma espécie de marxista-leninista desossado. A deslisar, sempre viscoso e babujante, de corninhos retrácteis e a causa às costas.
Aos sábados:
Serei republicano laico e progressista. Aqui é muito simples: comer e buber, ó terrim-tim-tim, passear no mundo. De manhã, à tarde e á noite. Às expensas do erário, evidentemente.
Ao domingo:
Serei conservador. Vou à missa, comungo e confesso todos os meus pecados. Dou banho à alma. Sou absolvido e recomeço tudo de novo. No meio de tudo isto, é importante conservar os escrúpulos e a consciência distraídos com qualquer coisa.

Agora não me venham dizer que não sou um gajo moderno.
Se isto não é ser moderno, então não sei o que seja. E duvido mesmo que tal disparate exista.

terça-feira, outubro 17, 2006

Sou eu, o Feliz Contemplado!!...



Este é, sem dúvida, o melhor dos mundos, e o capitalismo é, ainda mais certamente, o melhor dos sistemas!

No espaço de um mês e picos, sem ter feito rigorosamente nada para isso, sem sequer ter mexido uma palha, bastando-me apenas existir e ter o email mais inteligente da internet, acabo de ser premiado com as seguintes taludas milionárias:

Em 18SET, a glamorosa Vivian Smith, da EARTHLING PROMOTION BV, notificou-me que eu tinha acabado de ganhar, num disputadíssimo sorteio, a módica quantia de USD 1.000.000 ;

Em 04OUT, a lindíssima Monica Felipe, da EURO MILLION CYBER PROMOTION , congratulou-me pela magnífica vitória noutra não menos providencial extracção, onde acabava de abichar € 553.842,34 ;

Em 05OUT, a WORD LOTTO INTERNATIONAL celebrou-me como o felizardo embolsador de um não menos fogoso prémio: € 500.000, todinhos para mim ;

Finalmente, em 14OUT, a glamorosa e ultra-generosa Vivian Smith, aquela simpática mocetona, Deus lhe dê muita saúde, tornou a premiar-me com mais USD 1.000.000. E juro que não lhe fiz nada. Que cornucópia prodigiosa!

Nem sei o que hei-de fazer a tanto dinheiro. Estou tão feliz!...

PS: para já, abro de imediato um concurso de sugestões na caixa de comentários. A melhor sugestão será premiada, sei lá, com € 100.000!... Ah, e terá direito a publicação na primeira página deste blogue. Em frente, leitores!...
Afinal a perfeição existe. A isto é que eu chamo justa redistribuição!...
PS 2: Já agora, o JCD, a troco de generosa gratificação naturalmente, bem que podia vir aqui fazer de meu contabilista e, operadas as necessárias aritméticas que tão bem domina, dizer-me, com todo o rigor:
a) o total, até ao momento, dos meus ganhos;
b) em dólares, em euros, em libras e em Yens.

Certidão de um Óbito Anunciado

«Lisboa, 13 de Novembro de 1966 - Não há dúvida: Portugal atravessa uma crise e uma encruzilhada histórica. Encontra-se com quase oitenta anos o Presidente do Conselho; a oposição, ainda que dispersa e em muitos casos demagógica, agita-se com vivacidade crescente, embora apresente apenas teses que levam à perda de tudo: a carência dos ministros das Finanças e da Economia, por saúde ou outros motivos, agrava o problema económico, o dos preços, o dos salários, o do crédito, e sem isto não há política militar e política externa que valham; e os Estados Unidos, a União Soviética, outros ainda, mantêm as mandíbulas de sentinela e as garras afiadas à espera do momento em que nos falte o fôlego. É grave a situação; sê-lo-ia em qualquer caso; mas, sem ser desesperada, torna-se mais séria pela ineficiência da administração, pela lentidão do governo, pela descoordenação da política de cada departamento com a dos outros, pelas rivalidades pessoais, pela sobreposição de ambições individuais aos interesses nacionais. Ulisses Cortez está sempre apavorado com qualquer esforço ou emoção que possa causar-lhe outro enfarte. Em todo o Conselho de Ministros, e além do Presidente do Conselho, haverá neste momento quatro ou seis ministros que sentem e acreditam no Ultramar. Desejariam os outros ver-se livres de África, para se devotarem às delícias de uma política europeia. No fundo, o que adoram é o Conselho da Europa, sem entenderem que este é um nicho para instalar políticos aposentados e na terceira idade, e a OCDE, e as Conferências de Ministros europeus do Trabalho, e da Saúde, e dos Transportes, e da Cultura, e assim; e anseiam pelas idas a Paris e a Viena, a Genebra e a Londres, e demais centros europeus de prazer ou turismo. Entregar o país nas mãos dos imperialismos e das multinacionais, e deixá-lo colonizar por uns e outros; perder a independência de decisão, mesmo no que respeita à metrópole; vender o país aos bocados; diluir e perder a identidade nacional - tudo isso é indiferente a esses tais desde que, na nova ordem de coisas, mantenham os lugares, o prestígio, os benefícios materiais, a sensação de autoridade, os sinais exteriores do poder. Por todo o lado, no mundo oficial, nota-se uma desorientação básica, confusa, quase um pouco salve-se quem puder. Apenas o Presidente do Conselho mantém uma aparente serenidade. Impõem-se decisões drásticas. Continua o general Gomes de Araújo como ministro da Defesa? Esta é uma opção de raiz, e eu não vejo quem possa substituí-lo com vantagem, e que inspire a mesma confiança. Depois, quem escolher para as Finanças? Quem escolher para a Economia? Convirá ao fim e ao cabo criar o lugar de Vice-Presidente do Conselho? E há outro problema: que amplitude tem ainda o leque de escolha do Presidente do Conselho? Pressinto que à sua volta se rarefazem os homens de mérito e prestígio. Aliás, Salazar mostra-se cada vez mais preocupado com o presente e o futuro, e até perplexo perante os ecos contraditórios que lhe chegam de todos os lados - com a limitação que nem todos são sérios, ou autênticos, ou bem intencionados. E que pensam as Forças Armadas? E que reflexões tem feito o chefe do Estado?Luís Teixeira Pinto diz que se produzirá uma situação em que, durante muitos dias, se ocultará a morte de Salazar, até que se constitua um novo governo e um novo regime. Não acredito. Em qualquer caso, avizinham-se momentos dificílimos. Nestes instantes, adquirem toda a sua perspectiva histórica e humana as vidas de homens como António Enes, Caldas Xavier, Mouzinho, Victor Cordon, António Maria Cardoso, Serpa Pinto, Silva Porto, e tantos, tantos, tantos mais. Quem tem estes nomes na memória?»

- Franco Nogueira, "Diário: 1960-1968"

segunda-feira, outubro 16, 2006

A cadeia alimentar

Ironizava Voltaire que o capitalismo consistia no “segredo de obrigar todos os ricos a fazer trabalhar todos os pobres”.
Mas o humorista João Miranda, de turbo-chalaça sempre engatilhada, acaba de redefinir a coisa em termos ainda mais vantajosos. Segundo ele, e melhor dizendo, o capitalismo é o “segredo de transformar os famintos em obesos”.
Por um lado, é óptimo sabermos que podemos sempre optar entre o jejum involuntário e o veneno ao retardador, mas rico em calorias.
Por outro, confirma-se o que eu há muito suspeitava: esta é uma questão que não pertence ao foro do aparelho mental, mas, isso sim e em exclusivo, ao do aparelho digestivo. Deduz-se daqui, necessariamente, uma verdade incontornável: arrota-se muito mais num sistema capitalista do que em qualquer outro. Arrota-se e caga-se, como é óbvio.

O Farol dos Afundadores



Dantes, no tempo do faxismo, nas trevas da longa noite, que bem me lembro, vi com estes que a terra há-de comer, ninguém me contou, era o Benfica – o clube do regime, marca de exportação, condição de cidadania, esteio da família, totem dum povo, entusiasmo da horda, embaixadeza da pátria avulso. Agora, e cada vez mais, é o Benfica, o Sporting, o FêCêPê, o Real Madrid, o Barcelona, não já clubes de futebol, mas espécie de seitas mau-mau, futemafias, histerismo troglodita, frenesim ululante. Outrora, por causa do Benfica batiam nas mulheres e na prole menos expedita; agora são capazes de matar ao calhas – bons chefes de família alimentam fantasias de hecatombe e extermínio.
Dantes, no tempo do faxismo, era a Senhora de Fátima, o ópio do povo. Lá continua, que Deus a guarde. Sim, mas reforçada (salvo o devido respeito) pelo pastor Tadeu, pelo bispo-empresário e secretário-geral Edir Macedo, pelo professor Karamba, pelo pequeno rabi e o compadre imã, pelo grande astrólogo Mané e toda uma chusma de videntes, cartomantes, mães-de santo e padres de vão de escada (ateus incluídos) feitos carraças dum povo rafeiro. Quer dizer, ao ópio do povo, adicionou-se o haxixe do povo, a marijuana do povo, o LSD, as anfetaminas, a cocaína, a morfina, o ecstasy e o vinho a martelo do povo. Grande povo, nação valente, que além de fumar, alcançou a ampla conquista, o inalienável direito de também se charrar, injectar, encharcar, tripar, snifar com uma variedade inaudita de droguinha religiosa da boa. Alleluia!...
Dantes, no tempo do faxismo, era o Império Ultramarino e os pretos tadinhos que eram explorados, escravizados, vilipendiados e oprimidos pelo colono infestante e a metrópole sanguessuga. Agora é o Império Intramarino, onde a maioria da população, mentecaptizada por todo o sortido de antolhos, ecrãs, mamãs e arreios de andar à nora, foi despromovida a pretos, enquanto uma minoria endogâmica de luminosos e outros caga-lumes doutores se diverte e recreia a colonizar os restantes, sob a supervisão embevecida dos tutores da estranja. Agora, por conseguinte, é a própria metrópole que, um tanto ou quanto esquizofrenicamente, se divide entre micrometrópole e neocolónia. Ambas dando corpo ao Sacro Império da Mediocridade.
Dantes, no tempo do faxismo, era o fado e a Dona Amália, estátua em vida, garganta do inefável chunga, enlevo das emigrâncias. Agora, além do fado, é o pimba, e o pop, e o hip-hop, e o rap, e a martelada das discotecas. E são chusmas de vedetas, chupetas, marretas, artistas, fadistas, herpetobatas* e palhaços de vida fácil, a chocalhar piada ao quilo e graçola a metro!
Dantes, no tempo do faxismo, era o Salazar, o António que não mudava de botas. Agora são os filhos, enteados, bastardos e netos do Salazar. Todos por inseminação balnear. Eu explico: parece que os espermatozóides libertados pelo feroz ditador, aquando de casuais e solitárias práticas, saíram pela retrete, viajaram pelo esgoto e acabaram, após peripécias várias ao sabor do capricho das correntezas, nas praias do Algarve e sul de Espanha, onde, ainda vigorosos, pujantes e perfunctórios, fertilizaram os úteros em molho incauto das mães dos filhos que nos (des)governam. Só que estes, mais espertalhões e cosmopolitas, mudam de sapatos todos os dias, de carros todos os anos e de casa, ideologia, sexo e, sobretudo, patrono, então, é melhor nem falar.
Dantes, no tempo do faxismo, estavamos orgulhosamente sós. Havia a censura, o lápis azul, o exame prévio. Havia a Pide, a Mocidade e a Legião. Agora estamos vaidosamente totós, de mão estendida, cuzinho em saldo e vaselina a jeito. Há o critério editorial, a mixordice jornalística, a ordem unida da notícia. Há o Tide, detergente mental logocida, em drageia ou supositório; as telenovelas da TVI e a Chusma xenolatra, de grunhofone em riste, a acelerar e telefonar por tudo quanto é estrada, ponte e caminho, e a abrir estradas, portagens e autódromos por tudo quanto é sítio!
Digo com franqueza: nunca tive uma visão idílica do antigamente, ainda menos em termos de política interna. Mas quanto mais anos usufruo das delícias deste admirável regime novo, para grande assombro de todas as minhas células, mais virtuoso e digno o outro me parece. A única monstruosidade aberrante que jamais lhe conseguirei perdoar, foi essa, reptiliana e lorpa, de, em tão má e porca hora, ter defecado um aborto - invertebrado e pífio - destes!...
Para estes pulcros da lábia, imaculados da concepção, era uma vergonha ter colónias que nem colónias eram, mas não é uma vergonha - pelo contrário, é uma gloriosa conquista - ser uma colónia.

Simulacro de gente, país postiço, alminhas de pechisbeque - aviltamento compulsivo de navegadores, ferrabrases e poetas a asnos sublimes, putas eruditas e punheteiros do currículo!...


* Herpetobatas - o contrário de acrobatas; funâmbulos da rasteirice, ginastas da abjecção.

domingo, outubro 15, 2006

Estatofagia

Os materialistas dividem-se em duas estirpes principais: os materialistas altruístas (vulgo esquerda socialista) e os materialistas egoístas (vulgo pseudo-direita açambarcadora). Liberais, nada de fantasias, são eles todos. Sobretudo com o dinheiro e as coisas públicas: os socializantes são liberais na distribuição; e os açambarcantes são liberais na apropriação.
Cada qual, à sua gulosa maneira, entrega-se de alma e coração à estatofagia.

Taras de Liliput

«Lourenço Marques, 22 de Julho (de 1966) - Cidade imaginada em grande, planeada em grande, executada em grande. Largueza, vastidão, arrojo, eis o que me impressiona em Lourenço Marques. Ao mesmo tempo, tem zonas de encanto, ou de nobreza, ou de recolhimento. Menos portuguesa do que Luanda, por influência da África do Sul, mas ainda assim muito portuguesa. Esbarra-se a cada passo com as sombras de Mouzinho, António Enes, Caldas Xavier, Paiva Couceiro, outros ainda. A Polana, a Ponta Vermelha, tem sortilégio. Somos grandes, dinâmicos, visionários e bravos no Ultramar - e somos pequenos, provincianos de pacotilha nos cafés, nas tertúlias literário-políticas, nas confabulações dos salões pequeno-burgueses e superiormente intelectuais de Lisboa. Quando se vê a pujança, a força portuguesa em Lourenço Marques, na Beira, ou em Luanda, aperta-se de mágoa o coração ao pensar no que se vive em Lisboa, ao reflectir nas preocupações de Lisboa, nos dramas morais de Lisboa. Em África, os portugueses abrem, rasgam, iniciam, levantam, constroem, produzem, rebentam ou triunfam, e quase sempre triunfam - e mandam para as urtigas do inferno as Nações Unidas e os sagrados princípios dos outros. Em Lisboa, debate-se, discute-se, duvida-se, hesita-se - e parece que há quem passe noites de insónia a ponderar se o facto de Portugal não cumprir uma resolução da ONU prejudica a humanidade, ou a tremer como vara verde perante o desprazer americano, ou britânico, ou afro-asiático. O que assombra é que os nossos intelectuais, ou os nossos altruístas, ou os nossos sujeitos de grandes princípios, não vêem que as potências inventam os princípios que servem os seus interesses e que se riem da humanidade, e do progresso e liberdade dos negros, e dos direitos humanos dos outros, etc. Há cegueira até mais não poder. Aqui em Lourenço Marques, como em Luanda, compreende-se bem isto: o que está em causa não é saber se os territórios são ou não independentes: o que está em causa é saber se os territórios se desenvolvem com Portugal para poderem ser realmente independentes dentro de 50 ou 70 anos, ou se são escravizados e explorados por interesses imperiais de modo a que não possam ser efectivamente independentes em futuro previsível, se é que alguma vez o poderiam ser, subjugados como ficariam por um neo-colonialismo brutal. Mas em Lisboa o dilema é outro: saber se Portugal cumpre rigorosamente todas as vírgulas de uma resolução da ONU, que as grandes potências mandaram a organização votar. E não saímos disto.»

- Franco Nogueira, "Um Político confessa-se (Diário: 1960-1968)"

sábado, outubro 14, 2006

Prognografia ao crepúsculo

Lisboa, 29 de Agosto de 1963.
«Não há dúvida: os americanos evoluíram alguma coisa, mesmo muito", principia Salazar. «Há ano e meio, há dois anos, julgaram que uma pressão, uma ameaça, um ultimato nos fariam cair, ou pelo menos modificar a nossa política. Bem: já viram que não dava resultado, desistiram. E eles próprios vêem os seus interesses afectados, têm muitos problemas, não sabem como resolvê-los, e estão perplexos. E por isso nos mandam um emisário especial de alta categoria, sem que o tivéssemos solicitado. Muito bem. Mas que nos vem propor? Na conversa consigo e na que teve comigo, reparei que Ball usou repetidamente estas palavras: assegurar a presença, a influência e os interesses de Portugal em África. Ora que significa isto? Que está por detrás disto? Que conteúdo têm estas palavras? A verdade é que se Angola ou Moçambique são Portugal, este não está nem deixa de estar presente: é, está. Presença, para os americanos, quer dizer outra coisa: a língua, a cultura, alguns costumes que ficassem durante algum tempo até sermos completamente escorraçados. Isto e nada, é o mesmo. E o mesmo se quer dizer com a influência e os interesses. Com isto pretendem os americanos dizer que seriam garantidos os interesses económicos da metrópole, isto é, de algumas empresas ou grandes companhias. Mas tudo isto não vale nada. Que a economia comande a política é particularmente verdadeiro quanto a África. Bem vê: quem tem o dinheiro é que empresta, quem produz é que exporta; e quem tem dinheiro e empresta, e depois não lhe pagam, é levado a emprestar mais e mais; e para garantir esses novos empréstimos é depois levado a intervir, a controlar, a dominar as posições chave. E quem produz é que exporta; mas quando lhe não pagam as exportações, reembolsa-se com a exploração do trabalho e das matérias-primas locais. E ao fazer tudo isto é evidente que expulsa a influência e os interesses económicos de outros mais fracos, que nem podem emprestar tanto, nem exportar tanto. É o neo-colonialismo. Ora, meu caro senhor, nós não poderemos comparar a força económica e financeira da metrópole com a dos Estados Unidos. E o senhor está a ver, não está? Os americanos a oferecerem empréstimos baratos e a longo prazo; os americanos a oferecerem bolsas de estudo para formar médicos, engenheiros, técnicos nos Estados Unidos; os americanos a percorrer os territórios com a propaganda dos seus produtos. Em menos de um ano, de português não havia nada. Não, meu caro senhor, uma vez quebrados os laços políticos, ficam quebrados todos os outros. Mas então, sendo Angola parte de Portugal, não podem os americanos investir e exportar? Podem, decerto, mas têm de negociar com uma soberania responsável e com um governo que sabe exigir, ao passo que se o fizerem com um governo africano, inexperiente e fraco, sai-lhes mais barato. De resto, tudo isto está demonstrado: veja a Argélia, veja o Congo. Mas, para nós, o Ultramar não é economia, e mercado, e matérias-primas, e isso os americanos não o podem entender. Bem: este é um aspecto. Mas que quer dizer Ball com os prazos? É evidente que se os americanos estivessem dispostos a aceitar que Angola seja Portugal, não falavam de prazos. Poderiam querer discutir ou negociar connosco uma qualquer construção política ou jurídica que coubesse nos seus princípios teóricos, e depois apoiar-nos-iam sem reservas. Mas não: querem um prazo. Um prazo, para quê? E que se passa findo esse prazo? E enquanto decorre esse prazo, não acontece nada? Deixamos de existir no mundo, não se fala mais de nós? E os terroristas cessam os seus ataques? Ah! mas se os americanos podem garantir que os terroristas depõem aa armas, então é porque têm autoridade sobre os terroristas, orientam-nos, estão em contacto com eles. E os terroristas depõem as armas sem mais nada? Não exigem condições, não apresentam preço, e os americanos não assumem compromissos? Quais, como, para quando? E que promessas fazem ou fariam à Organização da Unidade Africana? E como justificaria esta o seu silêncio sobre nós e a ausência de ataques contra Portugal? Não, meu caro senhor, os americanos continuam a pensar que com jeito, docemente, conseguem anestesiar-nos e impelir-nos para um plano inclinado. (...)
Está claro que se aceitássemos o caminho dos americanos, em troca do Ultramar choveriam aqui os dólares, receberíamos umas tantas centenas de milhões. Ficaríamos para aí todos inundados de dólares e de graça. E sabe? Os que vierem depois de nós ainda haveriam de dizer: afinal era tudo tão fácil, não se percebe mesmo por que é que aqueles tipos não fizeram isto. Mas os dólares iam-se num instante, deixavam uma fábricas e e umas pontes, e depois começava a miséria. Duraria o ouro dois ou três anos. Depois era a miséria, a miséria, a dependência do estrangeiro. E em qualquer caso é-nos defeso vender o país.»

(Declarações de Salazar a Franco Nogueira)
in Franco Nogueira, "Um político confessa-se - (Diário 1960-1968)"

sexta-feira, outubro 13, 2006

Da Nobreza de alma

«Por nobre entendo aquele cujas virtudes são inerentes a uma estirpe; por de nobre carácter entendo aquele que não perde as suas qualidades naturais. Ora, a maior parte das vezes, não é isso que acontece com os nobres, pelo contrário, muitos deles são de vil carácter. Nas gerações humanas há uma espécie de colheita, tal como nos produtos da terra e, algumas vezes, se a linhagem é boa, nascem durante algum tempo homens extraordinários, depois vem a decadência. As famílias de boa estirpe degeneram em caracteres tresloucados, como os descendentes de Alcibíades e de Dionisio, o Antigo; as que são dotadas de um carácter firme degeneram em estupidez e indolência, como os descendentes de Cimon, de Péricles e de Sócrates.»
- Aristóteles, “Retórica”


E quanto a pedigrees, estirpes, linhagens, eugenices e outras modalidades de enchidos, acho que ficamos conversados. Nasce-se cretino ou não cretino - mas nasce-se em toda a parte, em toda a raça, povo, credo, regime, classe ou família. Não está sujeito a sufrágio, nem decreto. A engenharia nem finança. A lobbys nem subornos. E ainda bem que assim é. Que existe algo que verdadeiramente rege, um mistério que nos ultrapassa, que jamais conseguiremos entender e, por conseguinte, conspurcar. Algo que essa emanaçãozinha ufana das nossas tripas a que chamamos razão jamais pilhará para altar das suas imundícies.
Puro, em Aristóteles, significa imortal, separado e absolutamente livre. Exactamente nos antípodas da porcaria que geralmente somos. Uma porcaria que, às vezes, quando ao Destino apraz, tem um centelhazinha dessa pureza inescrutável, lá no âmago. Chama-se inteligência. E ele, o Destino, quase sempre com ironia mordaz, planta-a onde muito bem entende. Nós não temos nada a ver com isso.

Violência doméstica

«Violência de filhos contra pais continua a aumentar»

Quando se fala em "violência doméstica", por conveniência a certas retóricas androfóbicas, reduz-se o fenómeno à brutalidade do marido contra a mulher ou contra as criancinhas. Seria bom registar que a "violência doméstica" é mais complexa que isso. E que em cada dia se vai complicando mais. Engloba, de facto, essa brutalidade ancestral do chimpanzé contra a fêmea e crias, mas abarca igualmente outras modalidades mais modernaças e radicais; a saber, a macaca que vai aos fagotes ao doméstico; as bestinhas menores que arreiam nas maiores, pais e avós; e, nec plus ultra, o tutor geral do lar, a puta da televisão, que, sistemática e diariamente, os brutaliza e violenta a todos.
Direi mais, bem vistas as coisas, tudo bem pesado, "violência doméstica" é a nossa efectiva forma de regime. Doméstico no sentido lato, nacional, intramuros. O Zé Povinho a apanhar pela medida grande da Classe Política, mais respectivos amásios, cáftens e parentalha hospedada em relambório vitalício.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Números com piripiri

Segundo o Washington Post, a mais recente estimativa de iraquianos mortos desde 2003, no decurso do filantrópico processo de democratização acelerada do seu país, ronda os 655 mil.
Dizerem-nos que são 655 ou 65 ou 6,5 mil, para nós, é igual ao litro. Não passam de meros números. Contabilidades macabras, mas longínquas, alógenas, inodoras. É uma coisa que até já nos enfada. Sobretudo, porque já não é novidade nenhuma. Já passou de moda. Só a muito esforço, quase a saca-rolhas, é que ainda é notícia. Está gasto e estafado. Um tipo, ao arrastar ainda tal realejo, corre mesmo sérios riscos de vaia, tomatada e vitupério. O turista bélico, afinal de contas, também é um turista. Psicológico, reptiliano, mas turista. Já não o estimula nem excita, o Iraque. Uma seca! Nem armas de destruição maciça tinha. Agora, já nem com números de extermínio massivo lá vai. O que a malta gramava mesmo era uma nova guerra, com toda uma nova panorâmica, roteiro, enredo, prosápia; com efeitos especiais inauditos, parafernálias tonitruantes e panóplias estrondosas! Isso sim, isso é que era supimpa. O pagode enchia o papinho, absorvia toda aquela epopeia chacinadora, terraplenante, e vinha depois crocitar e gargarejar nos blogues. Armar zaragata e chinfrim. Lançar anátemas e aviõezinhos. A esquerda e a direita; a direita e a esquerda... e por aí fora, sempre às voltas, como hamsteres pensadores, na rodinha.
655 mil mortos, pois é, uma maçada. Um hino ao tédio, ao enjoo, ao desinteresse. Para atenuar um pouco o aborrecimento, para que os fastio não seja total, para não dizerem que foi a seco, sem vaselina, sempre aqui deixo uns quantos bilhetes postais. Uma galeria deles, na verdade: fotos tiradas pelos soldados americanos -coitados, dois mil e setecentos (fora os não declarados) também já esticaram o pernil - durante mais este açougue das mil e uma noites.
Aos estômagos mais sensíveis não recomendo o visionamento. A coisa é um bocado a atirar para o emético. Mas aos nossos falcães da treta, a esses, sim, sem dúvida, não percam o repasto. Merecem-no. E as notas de rodapé, essas então, parecem que foram feitas de encomenda, autenticamente a pensar neles. É de ver, rever e chorar por mais.
Mas ponham um babete antes. Ou melhor, dois. Um em cima e outro em baixo.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Céu Inc.



«DELRAY BEACH, Fla. -- A priest who allegedly misappropriated millions of dollars from a Delray Beach, Fla., Catholic church has told police he saw himself as the CEO of a multimillion-dollar company who wasn't properly compensated.»

Adivinhava-se. Membros da Igreja começam a aderir ao Neoliberalismo. A moral não será exactamente cristã, mas é bastante comum: se não os podes vencer, junta-te a eles.

Ou então pensaram: Já que o rebanho não tem salvação, safe-se ao menos o pastor.

Ou então, mais plausível ainda, distraíram-se a ler o João Miranda e alcançaram a providencial descoberta: um padre, enquanto indivíduo, não tem deveres, tem interesses.

A Revolução Neoconservadora



Tenho andado a ler o livrinho em epígrafe.

O autor, Murray Friedman, é (ou era), ele próprio, um judeu americano neo-con. A obra foi, portanto, escrita dum ponto de vista apologético. Uma insight view. Mesmo o que nos convinha.
Aproveitando a campanha de postais suicidas que ando a escrever por blogues alheios, darei também aqui, de futuro, algumas notícias de passagens especialmente edificantes desta clarificante -e particularmente ilustrativa - obra.

Para já, concentremo-nos na capa. Reparem como as palavras "neoconservative" e "revolution" combinam na perfeição...
E atentem como surge "jewish intelectuals" e não "american jewish intelectuals"... Quanto à "shaping of public policy" (pelos tais "jewish intelectuals"), dito em tom não eufórico (como o presente), traduz e enforma, como todos já estamos cansados de saber, o mais puro, vil e ignóbil anti-semitismo.

Degrau a degrau

Das poucas certezas que permanecem imperturbáveis, desde a Antiguidade mais vetusta até hoje, é que a Ordem emerge e germina do Caos. Coerentemente, armados da mais imaculada lógica, todos os arquitectos e empreiteiros de Novos Mundos (mais ou menos canoros) sabem onde ir cavar os alicerces das suas edificações. Sabem e vão. Todos, unanimemente, nos transportam ao caos, para, a partir daí, como estipula o paradigma, nos elevarem à Nova Ordem. Para nos propulsionarem, quiçá em fogoso géiser, ao Novo Céu. Até hoje só ainda não descobriram como pôr o elevador a funcionar. Aliás, ainda andam à procura do patamar de embarque, que suspeitam ser sempre um pouco mais abaixo. E lá vão escavando, optimistas, confiantes, buliçosos. E nós descendo. Em paulatina derrocada.

terça-feira, outubro 10, 2006

A Possessão- Part II.

Numa terminologia actualizada, isto da possessão é uma forma de sequestro e, consequentemente, uma variedade de terrorismo. Senão, em perfeita analogia, reparem bem: tal qual os pilotos suicídas terroristas se infiltram nos aviões, apoderando-se-lhes dos comandos e rotas, assim os espíritos malignos se introduzem subrepticiamente nas suas vítimas, usurpando-lhes os intelectos e as carreiras. É nestes ignóbeis propósitos, pilotando sinistramente um desafortunado Dr. Arroja, que eu tenho andado a plantar postais suicidas no Sítio do Pic... digo, WCT, digo Blogue dos Barnabus.
É uma tremenda infâmia, não o nego. Podem denunciar-me às autoridades, pedir sanções à ONU ou intervenções ao Imperador, mas, pela vossa rica saúde, não tentem fazer isto aí em casa. Requer gabarito profissional, energuménica perícia, brevet metafísico. Sobretudo, não tentem fazer isto com nenhum dos outros Blasfémicos, em especial um que se assina CAA. Esse, acreditem, para estes peculiares efeitos, é inexpugnável - impraticável, melhor dizendo. Desarma e desmoraliza qualquer um... É que já está ocupado. Do not disturb, penduraram à porta. Barricou-se-lhe, toda aconchegada, aos comandos da alminha material, uma ténia suicida. Uma anacoisa descomunal, mais brava e recalcitrante que seiscentes diabos! Diante de tal locatário, desencorajado por tão lúgubre e fétido condómino, disse logo eu para as minhas hostes: "malta, nem vale a pena perder tempo com tão hermética simbiose! Não compensa a maçada!... Mais baixo e sórdido que isto, nem vós, inquilinos eternos das profundezas, conseguiríeis!..."
Além do mais, a ideia é conduzirmos a vítima à imersão nas piores imundícies, e não nós, potestades subtilíssimas, mergulharmos desatinadamente nelas.

Possessão

A César o que é de César; ao Diabo o que lhe pertence. E quando ambos se reunem na mesma pessoa, pior um pouco.

Penso que é da mais elementar justiça confessar aqui, publicamente, o seguinte:
O postal que o Dr. Pedro Arroja escreveu,
não foi ele, fui eu.

Fontes fidedignas referem que, entretanto, os Blasfémicos foram avistados, à beira dum ataque de nervos, em denodada correria, esquadrinhando Braga de alto abaixo, catando igrejas e mosteiros, suplicando a cardeais e arcebispos, em voz lancinada, por um exorcista experiente e bem encorpado.

Recomendo que arranjem um batalhão deles, bem armados e benzidos, porque não vou largar facilmente a presa. Desalojarem-me duma alminha destas, desde já aviso, vai ser uma grande trabalheira. Calafetado que eu estou!... E bem podem ler-me o Hayek ou o Mises, que isso entra-me por um ouvido e sai-me pelo outro.

segunda-feira, outubro 09, 2006

A Mitomania da Virtude

A mitomania da virtude conforma uma dupla perversão: sendo, fogosamente, um onanismo, é também, em grau ainda mais compulsivo, uma exibição.
Assim como dantes funcionava, na grande maioria, a toque de religião –entendam como pano de fundo disto o Ocidente, pois ainda hoje funciona dessa maneira nos países arcaizados – doravante, dado que esse território foi ocupado pela teologia da indiferença, transferiu-se para as chamadas “minorias sobreactivas” e “hipersensíveis”: os gays, as feministas, os judeus, os podres de ricos, os novo-místicos, etc. Digamos que o primado da Diferença viceja a partir dum vasto campo de Indiferença. Enquanto o geral se amalgama e uniformiza cada vez mais, numa massa amorfa e abúlica, o especial, o peculiaríssimo eclode na forma angélica de tribos urbanas florescentes - quistos sociais frenéticos e benigníssimos cujo parasitismo fagocrático alastra insaciável sob o perfume anestésico da elitose.
A característica mais gritante destas tribos não é exactamente o apregoar dum simples direito a existir: sempre existiram, com variáveis sucessos, e não passa pela cabeça de ninguém no seu perfeito juízo andar a molestá-los, dizimá-los ou persegui-los (por mim já me contentava que não arriassem as estátuas dos pedestais e trepassem para lá, todos eles, em apoteose, laureados). Como não é apenas um simples direito à normalidade da anormalidade aquilo que reclamam. É, bem acima disso, e para compensação da catalepsia que os rodeia, reclamar a virtude da anormalidade, isto é, da Diferença. Não se trata de serem normais, de serem como os outros, de se integrarem e vulgarizarem no conjunto: trata-se, outrossim, de serem vaidosamente diferentes, exclusivamente distintos, e de essa diferença constituir uma virtude. A tribo é uma vanguarda. Uma acrópole. Um paradigma.
Daí que reajam mal à crítica e sejam imunes ao sentido de humor. Não admitem ser criticados por “atrasados”, por “inferiores”, “por labregos grunhos e orangotangos que não entendem nem alcançam o seu avanço, a sua sofisticação, a sua modernidade emproada. Crispam com veloz escândalo; melindram-se e ofendem-se ao mínimo reparo; vigiam com ar adunco, beato, inquisidor, de sectarismo feroz em riste e auto-de-fé engatilhado.
Se na realidade as coisas ainda não são como deveriam, na sua cabeça já são. Cumpre à realidade ajustar-se.

Cães de Guerra

Diz-se por aí que tal qual Israel é o rothweiler dos Estados Unidos, a Coreia do Norte é o pitbull da China.
Ambos cometem desacatos que indignam muito a comunidade internacional, ambos são dois estados ultra-militarizados, em delírio bélico mais ou menos permanente, quase sempre à margem do direito internacional, mas no fim do arraial, desmontadas as barracas, usufruem sistematicamente dum confortável estatuto de inimputabilidade.
Depois há aquela lei da física que prescreve que toda a acção tem uma reacção. Pois parece que depois daquele último regabofe israelita pelo Líbano, temos agora o troco, através desta sequelazinha atómica na península da Coreia.
A lógica chinesa não é assim tão misteriosa. Pelo contrário, é simples: "vós não segurais na trela o vosso, nós tiramos o açaime ao nosso".

domingo, outubro 08, 2006

A Fantasia que comanda a realidade

"Em vez de nos venderem sonhos, como dantes faziam, os políticos actuais prometem proteger-nos de pesadelos... Garantem resgatar-nos de perigos que não vemos e não podemos compreender..."

Três documentários da BBC sobre os dois principais fundamentalismos terroristas que nos ameaçam : o fundamentalismo islâmico e o fundamentalismo straussiano, vulgo neocon .
Façam um favor a vós próprios e à vossa sanidade mental, e não percam isto:

O Poder dos Pesadelos -1º Episódio
O Poder dos Pesadelos - 2ºEpisódio
O Poder dos Pesadelos - 3ºEpisódio


O melhor que vi até hoje sobre o assunto.

Histórias do Arco-da-Velha - Os Foguetões Vivos

«Adams, modesto investigador que atingira já uma idade respeitável, revoltara-se com o ataque da aviação japonesa sobre Pearl Harbour. Algumas horas apenas após o ataque aéreo, apresentou-se no Pentágono e propôs uma intervenção capaz de pôr o Japão inteiro a ferro e fogo. Um pouco incrédulos, e era caso para isso, os oficiais que o receberam escutaram, apesar de tudo, com atenção a teoria do Pro. Adams.
Para incendiar as cidades japonesas, dizia Adams, cujas casas são na maioria de madeira, bastaria colocar pequenas cargas incendiárias debaixo dos tectos. Sim, mas era preciso ir colocar essas cargas incendiárias. Foi então que Adams expôs a sua ideia: os foguetões vivos. Não é preciso dizer que os oficiais começaram a trocar olhares irónicos. A sua ironia foi completa quando Adams explicou o que ele entendia por foguetões vivos: muito simplesmente, morcegos, milhões de morcegos. E Adams, sem se importar com as reacções dos militares, continuou a sua exposição: os morcegos são capazes de transportar numa carga três vezes o seu próprio peso; por outro lado, têm tendência para se esconderem debaixo dos tectos e para se desembaraçarem imediatamente dos objectos que aderem aos seus corpos. Se se tranportassem a bordo de uma dezena de bombardeiros um milhão de morcegos com armadilhas e adormecidos, e se se lançassem sobre o Japão, o sol acordá-los-ia, eles esconder-se-iam debaixo dos tectos, e o dispositivo de que seriam munidos lançaria outros tantos incêndios.
Enquanto o velho professor discorria sobre a sua teoria, a incredulidade divertida dos oficiais transformava-se em entusiasmo. Decidiu-se logo realizar uma conferência sobre o assunto e atribuiu-se ao professor um orçamento de 2 milhões de dólares. O exército prometeu-lhe todo o auxílio de que viesse a precisar.
Nos laboratórios militares começaram a preparar-se microscópicas bombas de napalm, que os morcegos levariam agarrados a si. Centenas de soldados e civis lançar-se-iam à caça de uma espécie particular de quirópteros mexicanos que pareciam os mais adequados para a missão suicida. Fizeram-se experiências minuciosas para que o transporte e o lançamento destes heróis à força se efectuasse nas melhores condições. No decorrer de uma experiência no deserto de El Paso, no Texas, um milhar de morcegos deitaram fogo a vários milhares de caixotes. A segunda experiência prometia ter um êxito ainda maior, e teve-o, mas, contudo, não deixou de pôr termo definitivamente às esperanças do Prof. Adams.
Numa noite de Verão de 1942, vários oficiais superiores foram convocados à base de Carlsbad, no Texas, para assistirem a uma demonstração sensacional. Os cientistas mostraram-lhes meia dzia de morcegos em hibernação trazendo consigo minúsculas bombas. No dia seguinte seriam lançados sobre instalações montadas perto dali, no deserto. Infelizmente, os cientistas não tinham previsto que nesta época do ano o sol aquece muito cedo. Os morcegos, acordados mesmo antes de os generais se levantarem da cama, espalharam-se em todas as direcções, e em pouco tempo os principais edifícios da base aérea estavam transformados em braseiros. Hangares, depósitos, escritórios, tudo desapareceu. O próprio Adams perdeu no incêndio a totalidade dos seus documentos. Os generais americanos não gostaram nada da brincadeira, e, uma semana depois, uma lacónica carta do Estado-Maior informava o Prof. Adams de que o exército renunciava definitivamente ao projecto dos foguetões vivos.»
- Michel Bar-Zohar, "A Caça aos Sábios Alemães"

sábado, outubro 07, 2006

Uma questão de princípios

«Quando ouvi a valente Natasha Kampush, que sobreviveu a uma adolescência inteira sequestrada num buraco, dizer que a sua experiência teve pelo menos a vantagem de a ter mantido longe dos vícios, impedindo-a de acumular namorados e de começar a fumar, acendi logo um cigarro.»
A feliz autora de tão rutilante prosa e ainda mais facunda lógica é Inês Pedrosa, na sua “coluna-expresso” de hoje; páginas tantas da revista “Única”. Registei com enlevo. Decepcionou-me apenas o facto da moderna Inês não levar as suas convicções às últimas consequências. Acendia logo o cigarro, pois claro, e, com não menos galharda voluntariedade, corria a fazer-se fornicar até à exaustão, num fogoso bacanal, com os primeiros trolhas, taxistas e sopeiras que apanhasse a jeito. Assim é que era. Tudo isto com uma valente bebedeira à mistura, para o esconjuro ser ainda mais perfeito. Nestas alturas, nada de vacilações. Em questões de princípio, de consagração das amplas liberdades, nunca nos devemos inibir. De maneira nenhuma!...

Às escuras, na corda bamba, sobre o abismo...



Em Junho de 1958, Céline deu a entrevista que se segue -mais monólogo que entrevista, aliás - a Georges Cazal e três colegas deste.

- Somos alunos da E.S.C.E.C. [Escola Superior das CIências Económicas e Sociais]. Lidamos sobretudo com o mundo dos negócios...
- É essencialmente prático, previne as pessoas em todos os sentidos.Posso gabar-me de pertencer às pessoas práticas. É um vício da Civilização Ocidental. O rei dos fura-bichas é um homem prático. Mas vocês querem falar de letras? Não tenho coisas muito interessantes para vos dizer. O mundo está marcado pela Enciclopédia. Têm-se ideias. Algumas. Mandam-se mensagens. A minha posição não é boa, vou-me encarquilhando com o nariz em cima do que me interessa. Mas isso é chinês. Não acredito que apaixone ninguém, é o mesmo que fazer lavores.E tanto se pode beber num copo de vidro vulgar como num copo de cristal de rocha. Passo então os anos a fazer coisas muito delicadas.Sob o ponto de vista prático é inútil. A minha tarefa é fazer vivido emotivo, meter a emoção na linguagem escrita.
Para ser franco, a forma como os outros escrevem não me agrada.Encontrei uma maneira diferente de estilizar, que me satisfaz... Para fundamentar as minhas más razões: os contemporâneos, talentosos colegas, escrevem à maneira de Paul Bourget, de Anatole France, que por sua vez copiava Voltaire. Bem ensinada, esta boa maneira de escrever é muito apreciável se for bem feita. Para nos dar notícia de uma certa situação, de uma certa forma de tratar acontecimentos, quer seja jornalismo, quer mundanismos, está bem. Mas não é emotiva, é seca. Há dois erros graves: o da novidade a todo o custo, e o do racionalismo. Novidade a todo o custo: ...é espantoso... é um novo Balzac, um novo Victor Hugo... prodigioso... Maupassant foi ultrapassado... É falso! E cheira a mentira. Porquê? Ao homem não é consentida muita coisa nova. Muito pouca. A natureza não nos dotou para isso... só para pequenas alterações, nada por aí além. No coração de uma vida isto é enorme. Brassens faz uma nova canção e percebe-se muito bem que aquilo é velho. Na Ásia, o prático era sempre rejeitado como vulgar. Mas nós, nós queremos que tudo seja prático e artificial. A arte é-nos hostil. Um palco de teatro é prático, as mulheres por causa do traseiro, os homens pela sua figura. Um palco está cheio de gente prática que nos enjoa. Dizia Goethe de Mne de Stael: Ela representa o que existe de mais francês. Nunca tomará o falso pelo verdadeiro. Mas não compreenderá todo o verdadeiro. Com o Francês sucede qualquer coisa parecida: é astuto, não se deixa enganar, critica mas passa ao lado. Nem todos os dias aparece um Lavoisier, um Becquerel... a publicidade substitui tudo.
Veja-se o teatro chinês: é renda. Fazem-se as mesmas coisas durante dois mil anos. De trezentos em trezentos anos modifica-se uma coisa qualquer. A minha mãe consertava rendas antigas. Para se fazer isso o tempo não pode contar, o dinheiro não pode contar. A renda já não dá... Ninguém a quer... Não paga. O romance também já não paga... As pessoas não estão feitas para ele. E as que não estão feitas para, coligam-se e dizem: vamos ganhar dinheiro. As que não estão feitas para, transformam-se em académicos, fazem uma porção de coisas e tornam-se tiranas. São más. As que não estão feitas para mantêm-se na mó de cima, têm tudo por elas porque possuem a forma e o número. Tal como dizia Péguy, para um homenzinho que fabrica banalidades nada é mais feroz do que os inteligentes. São críticos abomináveis.
O castigo é precisarmos de dinheiro, isso é prático. Quando não precisamos de ninguém, as coisas resolvem-se. Se precisarmos de dinheiro, correm mal. Se formos ricos é uma felicidade; de outro modo, as pessoas inteligentes fazem-nos guerra e morremos. Vi-me enredado em histórias e paguei: o que é gratuito não vale nada. A morte é que inspira tudo. Acho que temos de pagar um preço pesado, o máximo, e assim mesmo conseguir escapar. Sem isto, nada feito. Há que andar numa corda bamba sobre o abismo, às escuras, e lá em baixo está tudo cheio de monstros. Voltaire arriscava muito, sem parar. Rabelais também. Quando nos escorraçam é uma alegria, uma condição a bem dizer essencial, mas é preciso a criatura ter possibilidades técnicas, muito trabalho, logo uma feroz assiduidade... quer isto dizer não vivermos. No mundo actual estamos de tal forma documentados, que não vejo muito escritores aprenderem qualquer coisa no mundo. Antigamente aprendia-se o adultério com a Madame Bovary, o médico de aldeia com Balzac. Agora, interessante só o estilo. É como a fotografia: já se fotografou tanto, que não precisamos de pintura descritiva.
No romance actual foge-se de todos os esforços. O escritor ou é político, ou faz-se rodear de publicidade. Todos os anos aparecem oitocentos mil girinos, quatrocentos mil de cada sexo. Oitoentos mil jovens que chegam à vida. Excitam-se a ver qual é o melhor, mas entretanto chegam mais oitocentos mil. Há uma idade da espontaneidade; mas é uma idade ocupada pela educação, pelo bacharelato. Estes jovens socumbem à caquexia moral ou ao comércio. Os outros agarram-se ao que lhes dão: Sartre, o Sr. Camus, os Goncourt, os mestres do pensamento... Comem, bebem, enfardam muito bem, e isto substitui tudo.
Fazem music-hall, streap-tease, o que não quer dizer que sejam entendidos no assunto. Olho todos estes prazeres de perto... Estes streap-teases. Vê-se bem que não percebem absolutamente nada do assunto. Falo sob o ponto de vista veterinário, que conheço um pouco. Às senhoras, em geral dou-lhes 3 em 20, é uma coisa podre de defeitos, são coxas em lamentável estado... Em geral não passam de 4, 5, 6 em 20, e mesmo assim é preciso ir aos cursos de dança. Nunca abandonei os cursos de dança. Disso percebo eu. Conheço aquilo que dura. A flor não dura cinquenta anos, e digo a mim mesmo que tudo aquilo não passa de espinheiro-alvar.
Para se obrigar a comprar, há que tornar as pessoas optimistas... comprem um carro novo... um novo recheio de casa, assinem letras. Optimismo da compra. O tipo deprimido, ou cínico, ou céptico não pode comprar. Estarmo-nos a borrifar para as dívidas é que é optimismo...
E então, de "formidável" em "espantoso", em "assombroso", chega-se a uma prosápia sem nome. Os outros oitocentos mil girinos vão cobrir o lanço. De superlativo em superlativo chegamos a um bando de jovens que vão de vento em popa e fazem o comércio andar para a frente. Dizê-lo não é muito cómodo, permite-nos fazer um balanço muito severo e muito frio da época em que vivemos.
Os Americanos não encontraram nada, dependem da civilização romana. O inglês é um francês mal pronunciado. Noventa por cento das suas palavras vêm do francês. É tudo europeu. O Francês não fala a língua que convém à sua força. Vê-se obrigado a pedir a sua soberania emprestada à América ou à Rússia. DE nada neste mundo ele pode ter a iniciativa, para com uma palavra, com um telefonema. Veleidades... a higiene dá cabo delas. Todas as guerras terminaram com epidemias, a de 14-18 inclusivé. Fazem-se agora guerras intermináveis, toda a gente está vacinada, já não há epidemias. Por esse lado nada podemos contar, o que deixa tudo alterado. Durante a última guerra, médicos alemães muito altamente colocados iam até Lisboa para ver se no caminho havia epidemias. Mas já não estava nunca em causa a varíola, as bexigas. Tinha-se feito o que era possível... na de 14-18. Franchet d'Esperey teria chegado a Berlin se não apanhasse varíola nos Balcãs...
- Para a língua francesa talvez seja uma oportunidade recusar a civilização moderna...
- Não, recusar o mundo moderno não é uma opoprtunidade para o francês, que é pequeno de mais. É teimoso como um burro, mas está isolado. O Departamento dos Deux-Sèvres a lutar contra o Parlamento. O inglês domina tudo. Como é uma língua de negócios, há interesse em utilizá-la. Em todo o mundo se aprende inglês. Mo mar: uma bandeira francesa para dez inglesas.
Não há um notário, um oficial de marinha que não tenha um texto na gaveta. Não escrevem pior do que os outros. A França é um país literário, mas nem por isso se chega longe: tiram-se três mil exemplares e vendem-se trezentos. Só se vende o que é muito popular, a capelista é que vende livros, fascículos da Vierge et Rousse, do Satyre et Malfaisant. Madame Delly: 160 milexemplares por ano. Leitura comestível, exercícios... O mundo anda muito ocupado, antigamente com as Igrejas, agora com a política. Este país perde força, irradiação. Depois de 14-18, prestígio da vitória...mas agora... nadinha. Fugimos do esforço. Prestígio das Letras, das Ciências, das Artes... Isso não existe. Só existe o prestígio da guerra que se acaba de ganhar. O que conta é a força. A minha conclusão desiludida... há que refundir completamente a moralidade das pessoas. Um golpe à Savarola. Eu cá faço o que posso para sobreviver... cometi a loucura de me levantar contra a guerra. Santo Deus, que mal me quiseram. Que mal ainda me querem! É uma loucura... juventude persistente.
Há cinco ou seis autores com tiragens maiores do que as outras e de quem se não fala, que nunca têm uma linha de crítica. Delly: sem publicidade, além da que lhe faz a criada ou a patroa. Gente de massa e sexo. No seu tempo, o Montaigne só era lido por alguns. Molière não escrevia por dinheiro, mas para a corte. Villon escrevia para a polícia, era um bufo. O filho de um grande comerciante tem hipóteses na literatura. Muito poucos mantêm o gosto pela procura do estético. Seis mil a oito mil pessoas interessam-se por uma peça moderna. Dullin... fabrico um bom produto, mas se for comprado apenas por trezentas pessoas, fecho a loja. Não se trata forçosamente de hipocrisia: Molière... Luís XIV... mas é necessário dinheiro. E quando na base está o dinheiro, não há sinceridade. Zola tinha a política para se safar. Vallès safou-se assim, mas pagou caro.
Viagens... grandes viajantes... nada se aprende em tais lugares. Vão antes às prisões, se quiserem aprender alguma coisa. Eu cá sdesliguei-me do que é graxa, e estou tranquilo. Não vêm pedir-me a opinião. Tive essa coragem. Desde que haja representações, aplausos, é horrível. Proust: notável mas vivia numa família de médicos. Observava bem as pessoas. Bom, mas estilo pesado! Arquitectura pesada. Poderoso escritor, pagava: snob, mundno... Joyce: observação proustiana, naturalista, pontilhista, mas menos interessante do que Proust. Além disso é um inglês! Pierre Louys: um autor que se agarrava ao estilo, mas que se dava a trabalheiras por histórias que não valiam a pena.
- O que pensa do jazz?
- O negro é antimúsico, é ritmado. Vivi entre os antropófagos...uma plantação de cacau. Para um negro, cantar é artificial. O que ele gosta é de batuque...o ritmo. Com os nossos sons irritamo-los. Luta dos negros contra a música dos brancos. Os brancos apanharam o ritmo, abandonaram a melodia. Por volta de 1920-25, os negros tramaram a nossa música. Os Espanhóis também têm ritmo. As variantes do ritmo não nos acodem. Só cantamos através de padres, o gregoriano. Somos mais práticos do que os Americanos, que são mais provincianos do que nós... romantismo... gratuitidade... que entre nós não há. O Francês é cínico: pancada alta, supra, rico, etc. Mas um viúvo que faz dois filhos debaixo de um camião. Diversidade... contraste. A América é arquiprovinciana, costumes muito severos, interessa-se pelo Império, pelo Consulado mais do que nós. Americanos muito saudáveis, encontram-se lá de todo o género: homens de negócios, filatelistas, pederastas, maníacos, amadores de dólares, presbíteros. Conosco há os jesuítas. O humor é a boa educação do desespero. Na América não há mais profundidade no humor do que entre nós. Shakespeare... um corneilliano um tanto chato. Profundamente triste.
- Anda a preparar alguma coisa?
- Tenho uma reputação de porco solidamente firmada, tenho de aproveitar. Se ela conseguir dar-me com que comprar massas alimentícias e batats... Jogo à pela com bem mais modéstia do que esse jogador do Malherbe. Um contratempo aos 64 anos: nenhuma reforma... saí da escola primária, não tive liceu...passei o bacharelato só com manuais. Cortava com isto pela raiz se tivesse uma reforma. Daria assim prazer a toda a gente. Sou inválido da guerra a 75%. Não tenho necessidades,não como nada... desejem-me a reforma... 65 anos é a ponta da pirâmide das idades... Cervantes aos 80... Sófocles aos 90...
Prefiro que não me tirem fotografias, nesse ponto sou maometano. Uma fotografia é uma pedra tumular... boa para as mulheres bonitas... A mimha mãe está enterrada no Père-Lachaise, não se atreveram a pôr lá o nome dela com medo de que fossem sujá-lo.»

(Trad. de Alberto Nunes Sampaio)

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Um nota final...
Jacques Darribehaude disse de Céline o seguinte: "Conheci-o no inverno de 59-60, e voltei a vê-lo por diversas vezes na sua casa de Meudon. (...) Voltava as costas ao mundo, mas a sua curiosidade mantinha-se inesgotável; nada lhe escapava. Conservava uma amargura quase resignada em relação às suas provações, e não era possível vê-lo, ouvi-lo, sem emoção. (...) Durante a conversa podia mostrar-se um mímico irresitivelmente cómico, de uma aguda ferocidade quando imitava os mundanos, os snobs. Tudo quanto era falso, afectado, empolado, pretensioso, abria-lhe uma veia fantástica e extraordinariamente oral, que utilizava para demolir."

Falta apenas acrescentar que esta aversão de Céline ao falso, ao afectado, ao empolado e pretencioso, ainda hoje - e tipicamente - é recíproca.