«Lisboa, 13 de Novembro de 1966 - Não há dúvida: Portugal atravessa uma crise e uma encruzilhada histórica. Encontra-se com quase oitenta anos o Presidente do Conselho; a oposição, ainda que dispersa e em muitos casos demagógica, agita-se com vivacidade crescente, embora apresente apenas teses que levam à perda de tudo: a carência dos ministros das Finanças e da Economia, por saúde ou outros motivos, agrava o problema económico, o dos preços, o dos salários, o do crédito, e sem isto não há política militar e política externa que valham; e os Estados Unidos, a União Soviética, outros ainda, mantêm as mandíbulas de sentinela e as garras afiadas à espera do momento em que nos falte o fôlego. É grave a situação; sê-lo-ia em qualquer caso; mas, sem ser desesperada, torna-se mais séria pela ineficiência da administração, pela lentidão do governo, pela descoordenação da política de cada departamento com a dos outros, pelas rivalidades pessoais, pela sobreposição de ambições individuais aos interesses nacionais. Ulisses Cortez está sempre apavorado com qualquer esforço ou emoção que possa causar-lhe outro enfarte. Em todo o Conselho de Ministros, e além do Presidente do Conselho, haverá neste momento quatro ou seis ministros que sentem e acreditam no Ultramar. Desejariam os outros ver-se livres de África, para se devotarem às delícias de uma política europeia. No fundo, o que adoram é o Conselho da Europa, sem entenderem que este é um nicho para instalar políticos aposentados e na terceira idade, e a OCDE, e as Conferências de Ministros europeus do Trabalho, e da Saúde, e dos Transportes, e da Cultura, e assim; e anseiam pelas idas a Paris e a Viena, a Genebra e a Londres, e demais centros europeus de prazer ou turismo. Entregar o país nas mãos dos imperialismos e das multinacionais, e deixá-lo colonizar por uns e outros; perder a independência de decisão, mesmo no que respeita à metrópole; vender o país aos bocados; diluir e perder a identidade nacional - tudo isso é indiferente a esses tais desde que, na nova ordem de coisas, mantenham os lugares, o prestígio, os benefícios materiais, a sensação de autoridade, os sinais exteriores do poder. Por todo o lado, no mundo oficial, nota-se uma desorientação básica, confusa, quase um pouco salve-se quem puder. Apenas o Presidente do Conselho mantém uma aparente serenidade. Impõem-se decisões drásticas. Continua o general Gomes de Araújo como ministro da Defesa? Esta é uma opção de raiz, e eu não vejo quem possa substituí-lo com vantagem, e que inspire a mesma confiança. Depois, quem escolher para as Finanças? Quem escolher para a Economia? Convirá ao fim e ao cabo criar o lugar de Vice-Presidente do Conselho? E há outro problema: que amplitude tem ainda o leque de escolha do Presidente do Conselho? Pressinto que à sua volta se rarefazem os homens de mérito e prestígio. Aliás, Salazar mostra-se cada vez mais preocupado com o presente e o futuro, e até perplexo perante os ecos contraditórios que lhe chegam de todos os lados - com a limitação que nem todos são sérios, ou autênticos, ou bem intencionados. E que pensam as Forças Armadas? E que reflexões tem feito o chefe do Estado?Luís Teixeira Pinto diz que se produzirá uma situação em que, durante muitos dias, se ocultará a morte de Salazar, até que se constitua um novo governo e um novo regime. Não acredito. Em qualquer caso, avizinham-se momentos dificílimos. Nestes instantes, adquirem toda a sua perspectiva histórica e humana as vidas de homens como António Enes, Caldas Xavier, Mouzinho, Victor Cordon, António Maria Cardoso, Serpa Pinto, Silva Porto, e tantos, tantos, tantos mais. Quem tem estes nomes na memória?»
- Franco Nogueira, "Diário: 1960-1968"
Caro Dragão
ResponderEliminarNão basta ter razão, lembra-se?!
Falta o nada que é tudo e uns não percebem porque não querem, outros não percebem porque não podem e, finalmente, muitos não percebem porque há muito que deixaram de perceber.
Falta, faltava, o vínculo que liga o passado com o futuro, que transmite alma e coração, para um último esforço, falta o rumo, falta a memória. Se tudo o que falta, existisse, ainda assim poderíamos não conseguir, mas não deixávamos de ser. O Japão também perdeu, mas não deixou de ser Japão. Não se recriminou, a derrota, a humilhação, foi assumida em silêncio por todos.
O dia de amanhã vai trazer a vitória!
Porquê? Porque a garantia não deixou de existir, estava lá o símbolo vivo da unidade. O Imperador.
O texto que transcreve é um sinal tremendo da impotência, do fim de festa, que a segunda republica dava de si própria.
Houve um tempo em que um rasgo de coragem, uma imolação, poderiam ter mudado o curso da história.
Não aconteceu. Ao contrário de Franco, Salazar não conseguiu, ou não se atreveu, a mudar o regime.
Foi pena.
Um abraço.
Eu entendo o núcleo da sua argumentação, caro JSM. Mas tenho que lhe creditar um certo e excessivo optimismo no que ao "rei" concede.
ResponderEliminarLembro-lhe, por exemplo, D.Pedro IV... E há mais, que, por pudor, preferiria não enunciar.
Só para recordar o seguinte: o património de infâmia na nossa história não é exclusivo da república. Tal qual os tratantes da actual classe política, como os Pina Mouras, os Loureiros a Dias e outros traidores deslavados que tais, tiveram bons émulos e precedentes em muitos "nobres" do passado. Basta recordarmos a crise de 1383-1385 e a "compra da coroa" por Filipe II de Espanha.
Estou a faltar à verdade?
Difícil não é
ter razão.Não,
difícil é
não perder a fé.
Não é?
E nascer deitado
mas morrer de pé.
Replico:
ResponderEliminarEu não manifestei excessivo optimismo. Tudo o que relatou é verdade e ainda poderia acrescentar outros episódios menos dignos. 'Eu nem a mim me julgo', disse Sâo Paulo, os regimes são obra humana e concorrenciais. Ambos têm argumentos. Curioso em tantos séculos não termos conseguido inventar mais nenhum!
Mas pretendo apenas dizer aquilo que vou repetindo, com mais ou com menos convicção - a republica por virtude da sua maior perfeição teórica no que respeita à sucessão, corrompe-se mais fácilmente. A partir desse momento torna-se um regime a que chamo deseducativo, um regime em deseducação permanente, ou seja, hoje é pior que ontem e assim sucessivamente. A fase imperialista, quando exista, ( sempre vivida em ditadura) disfarça e adia a inevitável queda. Mas a deseducação permanece.
A história, como sabe, tentou resolver esse problema recorrendo à sucessão hereditária, mas o regime não deixou de ser imperfeito. Revelou-se apenas o mais capaz. No caso português não precisamos de provas, a não ser quando perdermos a identidade em definitivo.
Os optimistas dirão agora que sou pessimista e eu sei porquê - inconscientemente contam com aquilo que têm vindo a destruir, contam com 'apólices de seguro' como o Brasil em termos de lusofonia e têm a secreta esperança que os africanos e asiáticos que connosco conviveram durante séculos acabem com a farsa da UE e nos obriguem a ser independentes. Já cá estão muitos!
Mas sem me dispersar em demasia quis apenas dizer aquilo que até para si, Caro Dragão, parece uma ideia longínqua: sem monarquia Portugal está condenado à dependência. Ao mesmo tempo a independência de Portugal só pode ser explicada como um acto de vontade contra toda a lógica. A monarquia encarnou essa vontade que agora falece.
Volto à pergunta inicial - e agora?
Quem pode encarnar essa vontade?
Um abraço.
A meu ver o desejo de monarquia mais não é do que o de ressuscitar um d.sebastião. Esperar um desejado que não vem.
ResponderEliminarE neste caso, não virá porque a estirpe se perdeu nas linhas sucessórias.
Aqui há uns dias atrás o blog do Arrebenta, fazia um resumo da história, em modo de farsa. Mas interessante.
O que para mim se perde todos os dias, é outra cousa:
É a capacidade de se impulsionar a excelência ao comando das coisas.
O texto de Franco Nogueira aflora isso mesmo, ao mencionar nomes e ausência deles.
Estes governos que se sucedem a um ritmo constante, desde o 25 de Abril, foram uma sucessão de equívocos que nunca tiveram como preocupação a escolha dos melhores, numa perspectiva que Caetano, por exemplo, teria e que de algum modo o Estado Novo tinha.
Essa excelência na qualidade de escolha de políticas e modos de agir, perde no entanto sempre, para a comparação daqueles que apontam os aspectos odiosos do salazarismo/ caetanismo.
O domínio da linguagem que o PCP e a esquerda em geral conseguiu impor nos media e no discurso público, matou qualquer veleidade de discussão séria sobre os méritos do regime deposto em 25 de Abril.
Para os que fizeram oposição, estiveram presos ou ajudaram os que estiveram e tomaram o poder há trinta anos e nunca mais largaram, não há nenhuma vantagem na exposição dos méritos daquele regime.
Et pour cause...
Tenho para mim que os aspectos odiosos de Salazar e Caetano e que eram a repressão política ao comunismo e comunistas; a censura e a ausência de democracia parlamentar como se conhece na Europa civilizada, podem e devem separar-se dos aspectos positivos das políticas concretas.
ResponderEliminarE podem e devem separar-se do tipo de preocupações com as escolhas de pessoas para os cargos políticos e a ética existente.
As escolhas de pessoas e os critérios respectivos e a ética existente, na condução da coisa pública, deveriam ser melhor estudados, para se perceber se havia efectivamente algo a aprender com esse passado.
Franco Nogueira até há vem pouco tempo era um proscrito. Um "fascista".
E com isso ficava arrumada a conversa e o assunto.
É a partir da desconstrução dessa linguagem redutora que se poderá avançar no estudo do que interessa.
E agora?
ResponderEliminarAbissal questão o meu esfíngico amigo me coloca!...
Agora estamos perdidos no labirinto e já se sente próximo o arfar tenebroso e o hálito pestilento da Besta, não é?
E repare que é um problema maior que o nosso mero umbigo nacional, de portugueses - é um problema que ameaça o Homem em geral.
E agora?
Agora há que encontrar a saída do labirinto. Ora, já velavam os antigos, numa situação extrema dessas, quando já não existem mais céus, nem mapas, nem bússulas para nos orientarmos, o único guia que nos resta são as pegadas do nosso próprio rasto.
A resposta é poética, gosto por ser poética, porque nos obriga a olhar para trás. Mas é precisamente isso que eu estava a fazer!
ResponderEliminarQuase que apetece abrir aqui uma campanha pela responsabilidade, pela verdade, o destino do Homem é o meu destino, não posso esquivar-me, nem posso enganar-me outra vez.
O rasto ainda se vê.
Um abraço.
Caro José, estamos praticamente de acordo nisso tudo. Excepto num pequeno detalhe: essa questão do aspecto odioso na "repressão ao comunistas".
ResponderEliminarEu, por princípio, não concordo com coisas como a censura de opinião e, muito menos,com a prisão em consequência disso.
Dito, isto, vamos aos comunistas...
Tirar-lhes a repressão era tirar-lhes a coroa de glória. Como bons fanáticos religiosos, quem lhes tira o martírio, tira-lhes (quase) tudo.
Por outro lado, o partido comunistas não era uma mera associação de opinadores. Era efectivamente uma organização subsidiada por interesses, supervisões e (alguns)capitais externos que urdia para derrubar um determinado regime. Tão pouco podia argumentar que buscava liberdade e democracia, porque sabemos que não. Ora, a partir do momento (desde 1961)que o país entreu em guerra (em quatro frentes) eu diria que a repressão foi excessivamente branda com essa "quinta coluna". E estou a ser puramente técnico. Os Estados Unidos, que são a democracia mais democrática que há e há mais tempo, nesses coisas sempre foram duma brutalidade mil vezes superior. Direi mais, se pensarmos onde andam controleiros como o Pina Moura, o iberista das Obras Públicas e outros que tais, então, é uma pena ue a Pide não tenha mesmo feito jus à má fama que granjeou...É realmente uma pena que, a esses, não lhes tenha mesmo limpo o sebo. Um higiene que, no mínimo, merecia comenda.
Também havia gente ingénua entre os comunistas, como, aliás, em todo o lado. E esse é o drama humano.
Os Estados Unidos não são apenas uma Democracia. São o paradigma, o farol, o baluarte, o paladino, o bombeiro e,ultimamente, também o principal produtor e exportador da mesma.
ResponderEliminarIsto em tese epara efeitos de propaganda, que é o que alimenta a mente das massas.
Na realidade, são uma plutocracia, como o Reino Unido, por exemplo, mas isso agora não vem ao caso.
Tenho que estar sempre a explicar-lhe tudo,ó Lecrecq. :O)
Bem...quanto ao Pina Moura, sempre que o nome vem à baila, lembro-me deste artigo esquecido, do actual Código Penal português:
ResponderEliminar"Artigo 312.º
Inteligências com o estrangeiro para constranger o Estado Português
1 - Quem tiver inteligências com governo de Estado estrangeiro, com partido, associação, instituição ou grupo estrangeiro ou com agente seu, com intenção de constranger o Estado Português a:
(...)
d) Sujeitar-se a ingerência de Estado estrangeiro nos negócios portugueses adequada a pôr em perigo a independência ou a integridade de Portugal;
é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
(...)
3 - Quem, directa ou indirectamente, receber ou aceitar promessa de dádiva para facilitar ilegítima ingerência estrangeira nos negócios portugueses, adequada a pôr em perigo a independência ou a integridade de Portugal, é punido com pena de prisão até 5 anos. "
Claro que muita gente vai argumentar que os actos concretos têm mesmo que "pôr em perigo a independência ou a integridade de Portugal" e isso é como diz o outro: independências há muitas! Integridades, ao contrário, muitas menos. Poucas e cada vez menos.
E assim se faz Portugal.