quarta-feira, junho 30, 2004

BOM APETITE!...


Eu já fui um daqueles optimistas que pensavam que pior que o Guterres não era possível. Pois não só era como foi. E logo ao virar da esquina..
Agora não me apanham noutra. Sei que a seguir ao Durão, poderá perfeitamente irromper um desqualificado ainda pior, um troca-tintas ainda mais descarado.
Por isso, e é mais que suficiente, não me surpreenderá nada que o Santana seja o próximo PM.
Mas quero deixar bem claro o seguinte: Quando tipos do jaez dum Durão Barroso conseguem ascender ao segundo mais alto cargo da nação, estamos conversados: Qualquer um pode (desde que não possua princípios, escrúpulos, ideias, ou vértebras, bem entendido). Se se tratasse de escolher um cidadão competente, um tipo sério, honrado, bem mais interessado em servir o país do que servir-se dele, isso, acredito, seria difícil. Requereria, no mínimo, mérito, inteligência, responsabilidade, cultura. E, sobretudo, empatia entre governantes e governados. Mas como é o contrário disso, como a lógica vai de patas pró ar, nada mais simples: peguem no Santana, na Ferreira Leite, no Portas, no Pacheco, peguem na pandilha partidária toda, esquerdas e direitas (a merda só varia na cor e teor gasoso), peguem até nos Delgados, Vascos - rotos e ratos-, ou qualquer outra prostituta de jornal, enfiem essa tralha invertebrada e viscosa toda num balde, um grande balde, um penico bem espaçoso (não se esqueçam que a porcaria é muita), agitem com energia, misturem bem a mixórdia, e tirem à sorte. Convoquem uma peixeira ou um trolha para extrair o feliz contemplado, sempre dá colorido à coisa, confere - senão solenidade - pelo menos pitoresco ao acto, e pronto, aí tendes. Seja quem for, é irrelevante e ficareis bem servidos. Cagar-se-á para vós, tanto quanto vós vos estareis cagando para ele. Incomoda-vos o vocabulário? Mas a substância não. Devia ser o contrário.
Em Portugal chegou-se a um estado de putrefacção tal, que o burburinho dos vermes já se confunde com a agitação das massas. Ora, as massas, poderão ser alarves, mas não são parvas. Já perceberam que tem mais conteúdo o futebol que a política. E tem. Tanto que é esta que imita aquele, e não o inverso.
De não ser governado, o país viciou-se no desgoverno. Vai à deriva. Entregue ao salve-se quem puder. A clamar por rebocadores, por balsas e bálsamos salva-vidas. A enviar SOS desesperados e apitos lancinantes ao nevoeiro. A invocar Nossa Senhora dos Aflitos e a Providência Divina. E, o que é pior que o resto, a tomar por faróis meros fogaréus de afundadores.
Cada qual agarra-se ao destroço que a vaga destribui e, uma vez montado nele, trata de demover a concorrência. Cada qual chafurda nas ondas o mais que pode, escoicinha, esbraceja, e convence-se que nada, que lá vai resistindo, o melhor que pode, opondo o proverbial instinto de cortiça ao chamamento abissal do fundo.
Governantes e governados execram-se mutuamente. Odeiam-se, sem trégua nem quartel. Não havendo resquício de empatia que os una, tiram desforço empaturrando-se numa antipatia recíproca e inoxidável. As eleições equivalem a ajustes de contas; as urnas a esquifes de facto. O povo sempre estimou, mais que arenas, cadafalsos. Assim, anda quatro anos a reunir provas, a recolher denúncias, a compilar testemunhos, para no fim ter o prazer de vê-los rastejar, aos bandalhos arguidos, uns em penitência, outros em sanha justiceira ou delíquio dengoso, mas todos de roda do patíbulo, vassalos da sua saliva, do seu voto, do seu escárnio e veredicto triunfante. Os eleitos, por seu turno, traumatizados por este martírio cíclico, garantido, nos intervalos dos sufrágios, nos interlúdios dos calvários, vingam-se e fazem pagar com juros a prerrogativa dos carrascos. E, com isso, lá vão juntando lenha para o seu próprio auto. Mais que um projecto comum, é, pois, um jogo, uma joint-desventure. Tudo está bem quando acaba mal. E para que o gáudio se maximize convém que o mal seja cada vez maior. Que exorbite e transvase sem parar. O prazer, a volúpia capital, não está em eleger, mas em deitar abaixo, em arrear, em arrastar pela lama e pelos cabelos, até à guilhotina apoteótica. Desta lógica retorcida, resulta um paradoxo mirabolante: um governo é tão mais divertido, entertainer, quanto pior for. Um governo péssimo, como o actual, na hora do acerto, é garante dum gozo superlativo. Não é por acaso que a multidão escolhe governos cada vez piores. Já Esopo referia o requinte.
Portanto, meus amigos, se não houver eleições, vai ser o Santana. E se houver, vai ser outro qualquer, no mínimo, tão recreativo quanto ele. Isto, pelo menos, eu sei.
Fartai-vos nele e fartai-vos dele. É o costume. Bom apetite! E bom proveito!...

terça-feira, junho 29, 2004

PERGUNTAR NÃO OFENDE


É uma dúvida que me atormenta, que me anda a roer a mioleira. Aqui vai:
Se o nosso Primeiro Ministro já conseguia acumular várias pastas - Justiça, Defesa, Negócios Estrangeiros, etc -, será que não podia acumular também o ser Primeiro Ministro de Portugal com a Presidência da Comissão Europeia?
Afinal, parece que nenhum dos cargos interessa já para grande coisa, pouco mais são que decorativos... O país, o nosso, há muito que está em auto-governo, cada qual governa-se conforme pode; na Europa, que é deles, manda quem paga, obedece quem deve.
Quanto à presença física, a presidência do Conselho de Ministros e outras comparências operativas protocolares, parece-me que a solução era simples:
Agora que já há manifestações SMS, não poderíamos também ter um Primeiro Ministro SMS? Não há telemóveis, em Bruxelas?...

Pobre país, desgraçado país, o vosso!...

Há que exigir compensações!


Primeiro, foram aqueles safardanas dos canadianos que nos confiscaram o bacalhau. A seguir, foram os espanhóis a pilharem-nos a sardinha. Agora, para cúmulo, é a Europa inteira, mancomunada, que se propõe levar-nos o cherne.
Tudo bem. Fiquem com o cherne. Mas, ao menos, devolvam-nos as quotas da sardinha e do bacalhau.

Pacheco no País das Maravilhas


Pobre país...
O dele. E dos amigos dele.
Mas a pergunta que todos fazem (eu, pelo menos, faço) é: "que país será esse?"

segunda-feira, junho 28, 2004

JORGE SAMPAIO TELEFONOU-ME


É verdade. Telefonou. A sondar-me: se eu estava disponível para formar governo. Uma emergência, explicou, nitidamente aflito. A pátria está em perigo; a democracia periclita.
Costumam consultar-me, mas, assim, um convite, de chofre, foi a primeira vez. Assaltaram-me sentimentos contraditórios: por um lado, honra; por outro, horror. Isto é, a título individual, orgulho; a título social, náusea e vertigem. Hesitante entre a eructação e o vómito, ainda consegui articular:
-"Mas Excelência, porquê eu? Nem sequer pertenço a nenhum partido! Pior: tenho-lhes fobia!..."
Do outro lado da linha, em contrapartida, não houve hesitações:
-"Por isso mesmo, pá! Por isso mesmo! Eu agora preciso é dum independente!..."
Ao orgulho e à náusea, adicionei a estupefacção. Mas ele, o execelentíssimo, acabou com ela em três tempos.
-"Pois, pá! Da outra vez, o Eanes resolveu o sarilho com uma Pintassilgo. Mas agora, da maneira que isto está, só já lá vai mesmo é com um dragão. Não há passarinha que resista. Tem que ser um dragão, pá! Um dragão a sério, providencial, em suma: Você! Não vejo outro, pá."
O meu pior defeito é a honestidade. Sempre foi. Tolheu-me todas as vezes em toda a parte. Mas agora é tarde para mudar, para rebobinar a cassete. Não aceitei, claro. Desculpei-me, já não me lembra com quê. Uma ninharia qualquer. Ele compreendeu. As ninharias sensibilizam-no muito.
Mas vi que ficou com pena. Era um belo plano. Talvez por isso, com um certo peso na consciência, ainda lhe sugeri, à laia de compensação:
-"Mas, Excelência, não desista. Se o problema é o Santana Quéques a galope na oportunidade, o antídoto é simples: convide o Pinto da Costa!..."

domingo, junho 27, 2004

A DISEUR


Definitivamente, é um mistério. Ao princípio achei que era apenas mais uma bizarria - há pr'aí tantas. Mas depois fui-me apercebendo do método, do recurso sistemático. Agora, ainda antes dela abrir a boca, eu, perplexo já adivinho o estilo, a cadência, o poema. Vocês, leitores, que sois gente inteligente, peritos nestas coisas, talvez me possais explicar. Agradecia-vos muito. O enigma é o seguinte: Porque é que sempre que os jornalistas -sejam eles quais forem e a que hora for - lhe fazem perguntas, a Celeste, das ventas em epígrafe, desata a declamar poesia?
E o pior não é isso. O pior é que eu, que, apesar de várias lobotomias, não sou inculto de todo, por mais que tente, não consigo identificar os autores.
Mas que a senhora tem jeito, ah, disso não restam dúvidas. Vê-se que é da escola do Vilaret, uma diseur e peras!...
Deve ser por isso que, ultimamente, a Justiça deste país parece estar em vias de trocar o Direito pela "encenação". Não tarda muito, até por imperativos de mercado e rentabilização maximizada do espectáculo, em vez de levarem à barra, levam logo é ao palco. Ao menos, sempre podem cobrar bilhetes. O La Feria que se cuide.

Confissões...


Eu, desenganai-vos, não sou um modelo de virtudes. E o meu patriotismo não é imaculado. Já nem falo do facto de não ter bandeira pendurada à janela, ou, tão pouco, andar com ela desfraldada na viatura, em amor à pátria itinerante. Não, é mais grave. Eu conto. (Os mais sensíveis de vós é melhor mudarem de site, os outros, os temerários, fiquem, mas à vossa inteira responsabilidade).
Então, é assim: se eu fosse a passar e visse o Quim Barreiros pendurado pelo pescoço, a baloiçar duma árvore, dizia: "Olha o Quim Barreiros a baloiçar numa árvore!". Mas já se fosse o Toy a ser espancado por um gang de símpaticos luso-africanos eu bradava "Força, rapazes! Ah, valentes!". E então se em lugar do Toy estivesse o Emanuel, aí, eu não me continha e juntava-me ao gang. Garanto-vos que dificilmente o calhau cantante escaparia de lá vivo.
Acho que já perceberam. Pois é: não gosto de música Pimba.
Mas tem pior: também não gosto de fado. Ao ouvir aquilo, aquela melopeia rançosa, aquele basqueiro lamurioso, não me dá para ficar emocionado, vejam lá bem: apetece-me é atirar cadeiras, romper em zaragatas. Só aquele anúncio prévio "Sílêncio que se vai cantar o fado", só isso, chega para me fazer perder logo a tramontana. Que pesporrência do caraças! Então fazemos silêncio para irem dar cado dele com um chavascal daqueles?! Tenham dó. Aliás, tenham dó-ré-mi-fá-sol-lá-si, a escala toda, bem medida, já que não têm os alqueires, e vão-se atirar ao Tejo para lavar as máguas.
Portanto, aqui têm: musicalmente não sou um perfeito patriota. Até gosto dos Beatles. Até tenho para ali, na cave, uma guitarra eléctrica, e sei tocá-la, há mais de vinte anos! Ainda me lembro, era eu chavalo, em cima dum palco, ali prós lados de Pedrouços, nos santos populares, a atirar com Led Zepelin ao pagode, eh-eh!... Com o Lou Reed de "Vicious" e os Stones de "Simpathy for the Devil". Naquele tempo era preciso coragem. Agora ainda seria preciso mais. Os filhos dos bimbos estão piores que os pais.
Eu sou de Lisboa, meus amigos, e quero que o mau gosto se foda!...Se eu gostasse de fado, era do Benfica.
Quanto à nação... toca aí, Paredes! Toca aí homem do diabo, comunista dum raio! Sangra aí essa puta dessa guitarra! Se é Portugal que eles querem, dá-lhes com Portugal nas trombas, dá-nos com Portugal na cara, nos olhos, na alma. A cara petrifica, os olhos pingam e a alma, por instantes, é uma caravela que regressa.

sábado, junho 26, 2004

Geopolítica Psicadélica


Está ali um tipo na televisão -legendado como Ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha (e deve ser, porque está lá a nossa Ministra -salvo seja- sentada ao lado) -, a dizer, alto e bom som, que eu sou irmão e amigo dele (os "nossos amigos e irmãos portugueses", sic). Mais especifica que, por tão elevado grau de consanguinidade e afeição, apoia, de alma e coração, a entronização dum "grande primeiro ministro português" (O marquês de Pombal ressuscitou?) lá, pró Norte, não sei em que cargo importante.
Agora começo a ficar preocupado. Confesso: agora estou mesmo é à rasca e a suar frio.
Será que estou a acordar dum coma profundo? Quanto tempo se passou? Ainda estamos no Planeta Terra?...Aquilo que eu tomei para a dor de dentes, era aspirina ou LSD?...Ou terão sido os cogumelos da pizza?...

Hum...Será mesmo?...


Por mim, continuo a achar mirabolante esta apregoada ascensão Barrosiana ao Olimpo Europeu. Por princípio, não embarco em peregrinações, por muito justas que, repentinamente, se apresentem. Portanto, estou sentado. À espera. Ver para crer. O homem que se pronuncie. (Ocasionalmente, dá-me para a moderação...)
Quando vejo pr'ai tudo aos tiros, apetece-me logo ficar sossegadinho. A matutar...

sexta-feira, junho 25, 2004

Naufrágio ou Transbordo?



Antigamente, os comandantes eram os últimos a abandonar o navio e os ratos os primeiros. Agora os comandantes são os primeiros.
A culpa é vossa. Quem vos manda eleger ratos para comandantes?!...
Mas, apesar de tudo, tem uma vantagem: nestas alturas é que nós vemos até que ponto esta é uma democracia representativa.

Políticos off-shore...


A estimada MP, no seu Eclético, fala com toda a propriedade de mais essa pouca vergonha que se anuncia por aí. A do Primeiro-Ministro fugitivo, pois. E já é o segundo, em menos de nada.
Eu não podia estar mais de acordo consigo, cara MP. Só há uma minudência em que, não leve a mal, mas permito-me discordar:
Julgo que já não é "cá se fazem, cá se pagam"; parece que agora é "cá se fazem, lá lhes pagam".
Ou seja, fazem cá dentro; vão receber lá fora. Políticos off-shore?...

O Cultivo da Bondade



Um site interessante sobre a História da América:
http://www.digitalhistory.uh.edu/database/article_display.cfm?HHID=563

Philip Sheridan, general da Guerra Civil (como Custer) e destacado director das Campanhas Índias, foi aquele simpático personagem que disse, a determinada altura:
"Um Índio bom é um índio morto."

Foi coerente com a sua tese.
Mas, este insuspeito apóstolo duma colonização radical, como foi a Norte-Americana, teve, contudo, o desassombro de reconhecer, (em relação aos mesmos índios que tanto ajudou a benignizar):

«We took away their country and their means of support, broke up their mode of living, their habits of life, introduced disease and decay among them, and it was for this and against this that they made war. Could anyone expect less

Acho que é o porta-voz indicado e eloquente bastante para responder a algumas das questões e dúvidas que os sempre bem-vindos e gentis comentadores deste blogue se dignaram colocar-me.

A DANÇA DO SOL



Hoje, eu, Dragão Louco, executo a "Dança do Sol" e comemoro em memória desses bravos que, há 128 anos, em Litle Big Horn, lutaram pela sua liberdade.
Foi o canto de cisne duma América Livre, prestes a ficar submersa sob um manto de Trevas.
Mas hoje eu saúdo o sol, saúdo a vida, saúdo os meus irmãos Sioux e saúdo todos os espíritos livres e homens de boa vontade, estejam eles onde estiverem, neste mundo de espectros e aparências, como eu, ou lá, nas Grandes Pradarias do Grande Espírito, onde cavalgam e riem, para sempre, livres.
E agora, com licença, mas vou ali abraçar as árvores, beijar a terra e contemplar Deus em tudo o que me transcende, a mim, homenzinho ridículo, e do qual, apesar de tudo, faço parte.
Hoje quero amar o cosmos. E não apenas violá-lo, pilhá-lo, destrui-lo.
Hoje sou índio, pele-vermelha. E estou em paz com a vida. E estou em paz comigo e com os meus antepassados.
É por isso que os cow-boys me odeiam e me fazem guerra. O cão sempre há-de detestar o lobo. A criação do Homem sempre moverá batalha à criação de Deus.

quinta-feira, junho 24, 2004

Já não há Big-Bang



«Astronómos recriam «o choro do nascimento do universo»

Astrónomos norte-americanos recriaram os sons do início do Universo, demonstrando que este não nasceu em resultado de uma explosão, mas na sequência de um tranquilo sussurro, que se transformou num longo rugido.»


Hollywood está em pânico. Já tinham argumento, produtores, película, o filme ia avançar, e afinal não há explosão. Em vez do Big-bang, parece que houve um Litle-ssshhh. Com a explosão era fácil: enxertava-se a perseguição automóvel, os tiros de rajada, colisões em série à mistura com catástrofes naturais, uma conspiração externa, buracos negros demoníacos, anti-matéria terrorista, era um sucesso de bilheteira garantido. Do Big-Bang ao Bang-bang era um instante. A América estava em perigo logo à partida, no seu momento originário, prototípico. No fim Schwarzeneger vencia, tocava o hino. Assim, quem é que está interessado em vagidos? Está bem que depois sempre vem o rugido, e um rugido já é qualquer coisa, sugere algum tipo de bestialidade assustadora, podem introduzir-se uns monstros alienígenas, efeitos especiais, demónios ou fantasmagorias do Outro-Mundo, mas a grande explosão, o grande efeito inicial, a América Primordial já se perdeu. As perseguições entre cometas e fragmentos astrais a alta velocidade, as emboscadas da anti-matéria nos grand-canyons cósmicos, os raides de gases tóxicos, os cercos ululantes às caravanas de aminoácidos já não se conseguem. Perde-se a verosimilhança, o suspense, a surpresa. É fraca compensação. O mercado americano não vai nisso: adora, acima de tudo, ver explodir coisas. Contemplar cacos a voarem em todas as direcções.
Todavia, Mark Whittle, o astrónomo peregrino, deixa uma réstea de esperança. Diz ele:
«Ao ouvir estes sons, posso dizer que o Universo é como um instrumento musical de má qualidade».
Portanto, ou eu me engano muito, ou vem aí mais um music-hall!...

quarta-feira, junho 23, 2004

DA NECROFAGIA



E agora mais uma pitada de Cioran, que se os apóstolos são o sal do mundo, os filósofos são a pimenta.

«Quem aspira à liberdade completa só a alcança para regressar ao seu ponto de partida, à sua sujeição inicial. De onde a vulnerabilidade das sociedades evoluídas, massas amorfas, sem ídolos nem ideias, perigosamente desprovidas de fanatismo, privadas de ligações orgânicas, e tão desamparadas no meio dos seus caprichos ou das suas convulsões, que apostam -e trata-se do único sonho de que são ainda capazes - na segurança e nos dogmas do jugo. Inaptas para assumirem por mais tempo a responsabilidade dos seus destinos, conspiram, mais ainda do que as sociedades grosseiras, pelo advento do despotismo, a fim de que este as liberte dos últimos restos de um apetite de poder sobrecarregado, vazio e inutilmente obsidiante.
Um mundo sem tiranos seria tão fastidioso como um jardim zoológico sem hienas. O senhor que esperamos no nosso terror será justamente um apreciador de podridão, na presença do qual todos faremos figura de carcassas mortas. Que venha ele e nos cheire, que venha e se espoje nas nossas exalações! Já um odor novo paira sobre o universo.»
-E.M. Cioran, "Na Escola dos Tiranos"

Este Emile é tão provocador quão sibilino. Atira-nos com estas diatribes às trombas, e nós que nos aguentemos. Os nossos liberais, não extenuassem a mente com o preço das batatas, haviam de pensar...Haviam de pensar nestes enigmas, quero eu dizer. É que depois dos seus caprichos e folias, quando a lua surge no céu e vem envolver a savana numa claridade fantasmagórica, aparecem sempre as hienas. Algo as atrai, é fatal. Cioran diz que são as exalações... Há realmente um aroma nauseabundo na atmosfera. Paira, insinua-se, infiltra-se pelos mosquiteiros. Espero que sejam apenas as batatas. O pior é se é também a lógica delas.

O FIM DA MACACADA


«EUA: 48 prémios Nobel apoiam candidatura de John Kerry»

É um acto desesperado. E vão, no meu modesto entender. É melhor que assumam duma vez por todas que o teoria de Darwin estava errada. O homem não evoluiu do macaco. Pelo contrário, em cada dia que passa, torna-se assustadoramente evidente que regride para chimpanzé. Afinal, macaco não foi o ponto de partida. Mas, tudo o indica, vai ser o ponto de chegada.
Afinal, o "Genesis" faz mais sentido. Muito mais.



Deixem lá estar o George W. Está claramente uns duzentos anos à frente da maior parte de nós.

HOJE OLIVENÇA, AMANHÃ O MUNDO!...


Eu, Dragão, sou partidário de atacarmos Espanha. A pretexto de Olivença, a pretexto de Ceuta, a pretexto da Galiza, tanto faz. Qualquer pretexto é um bom pretexto. O essencial é que os ataquemos. O essencial é que nós, portugueses, larguemos o sofá e o telemóvel, peguemos em armas, qualquer uma serve, e marchemos a bater-nos, a bater-lhes, a desentorpecer os músculos e a desopilar os maus fígados. Chega de cóleras intestinas, de odiozinhos para consumo interno, de invejazinhas fratricidas. Está na altura de exportarmos o que de pior temos. Até aqui mandámos o melhor para fora, para os outros, e ficámos com a surrapa, a côdea, o que não presta. Chega! Também somos gente! Porque é que os culpados temos que ser forçosamente nós -ou porque fomos salazaristas, ou porque fomos comunistas, ou porque fomos simplesmente distraídos, azarados ou preguiçosos, hein?! Que sejam eles os culpados - os espanhóis, os castelhanos, melhor dizendo. Eles que paguem a nossa crise! Se estão montados na massa, não deve ter sido com trabalho honesto. Ninguém monta na massa dessa maneira. Mas se montaram, melhor para nós: eles que desmontem agora para nós montarmos! Onde é que está a dúvida? Porque é que havemos de teimar nesta auto-destruição obsessiva e fanatizada, como se outra ocupação não nos mobilizasse senão dar com a própria casa em pantanas? Ainda pra mais, a nossa já está toda escaqueirada - são séculos de negligência e vandalismo doméstico; enquanto a deles, de restaurada, até apetece. Está mesmo a pedi-las. Estamos à espera de quê? Vamos ficar aqui o resto da vida a chafurdar no entulho, a demolir ruínas? Se estão aqui mesmo à mão de semear, também devem estar à mão de colher. Ou de partir, de escavacar. Quanto mais não seja, pelo gozo. Portanto, passemos à colheita, à razia. Enquanto eles, chicos espertos, se entretêm a comprar-nos o país, nós, inteligentes, cínicos maquiavélicos, americanos perfeitos, roubamos-lhes o deles.
Isso não se faz? É ilegal?
Irra!,mas em que cabrão de mundo é que vocês vivem? Como é que julgam que se constroem as superpotências, hem? Querem ser uma superpotência, ou não? Ou preferem ficar pr'aí, eternamente, a cantar o fado, nessa super-impotência?
Tomem Viagra, comam amendoins, deitem pólvora na vinhaça, bebam chá de Cabinda, mas levantem-se, pôrra - vamos a eles!!...
E se a ONU vier com perguntas parvas, respondemos-lhe que andamos à procura do Bin Laden. É infalível. Aquilo está cheio de árabes. Ou então que vamos libertar a Andaluzia, a Catalunha, a Galiza, as Baleares, o País Basco!...
Carago, não basta gostar dos americanos. Há que imitá-los!...
Carago não, Eureka!...

terça-feira, junho 22, 2004

Os Verdadeiros Americanos



Compete-me deixar aqui lavrada uma correcção a uma imprecisão minha. Na verdade, há uns Americanos que eu admiro. Os verdadeiros!
E esses até possuíam uma cultura das mais avançadas que a nossa espécie alguma vez conheceu. Não tinham cinemas, nem bibliotecas, nem orquestras sinfónicas, mas tinham amor à vida, à terra e, sobretudo, à sua verticalidade.
Até que um dia tiveram o desprazer de conhecer a pior escumalha ao cimo da terra.

No próximo dia 25 deste mês, este blogue vai comemorar os 128 anos sobre a batalha de Litle Big Horn, quando os Sioux, Cheyenne e Arapahoo, exterminaram o 7º da cavalaria, do grande herói Custer, especialista em genocídios sobre aldeias indefesas. Naquela tarde enganou-se. Estavam lá os homens, os bravos. Não eram só mulheres, velhos e crianças.
Porque a História não acabou. E porque a História deve ser também memória.

ASTRO-BASBAQUE


«Primeira viagem de uma nave espacial privada»

Já estou até a imaginar o sucesso turístico: como se já não bastasse embasbacarem-se cá em baixo, os basbaques militantes (chamados turistas), mais os respectivos equipamentos de excursão e pesquisa, vão, brevemente, embasbacar-se lá pra cima. Os calhaus celestes que se cuidem! Aí vão uns mais inertes que eles!...
Depois da experiência já gasta de mijarem no mar, irão, concerteza, tentar a volúpia de mijarem no espaço.
Razão tinha mestre Almada quando profetizou:
«Tu qu'inventaste a chatice e o balão
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
p'ra te chateares também debaixo d'água...»
E que agora até engendras supositórios d'aço
p'ra te ires chatear nos confins do Espaço...
(aqui acrescentei eu)
Pois, «Tu que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres...
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!»
-Almada Negreiros (e Dragão) - "A Cena do Ódio"


segunda-feira, junho 21, 2004

SEMITAS E ANTI-SEMITAS


«Kofi Annan alerta para «ressurgimento» do anti-semitismo»

Segundo a Bíblia, "Semitas", são todos os descendentes de Sem, filho de Noé. Por conseguinte, hebreus, árabes e congéneres.
Quer isto dizer que, actualmente, os maiores anti-semitas do planeta são os próprios Semitas. Estranho, não é?
Também poderia referir os americanos, mas esses, como todos sabemos, estão acima dessas coisas: são democratas. E têm aquele dom muito peculiar - e exclusivo - de distinguir os "semitas bons" dos "semitas maus". Os semitas e toda a gente.

O HOMO-PERSONALIZATUS


«O processo de personalização é um operador de pacificação generalizada; de acordo com o seu registo, as crianças, as mulheres, os animais deixam de ser os alvos tradicionais de violência que continuavam ainda a ser no século XIX e, por vezes, na primeira metade do século XX. Através da valorização sistemática do diálogo, da participação, da escuta do pedido subjectivo, que a sedução pós-moderna põe a funcionar, é o próprio princípio da correcção física, mantido ou até reforçado pela era das disciplinas, que se vê rejeitado pelo processo negativo. O eclipse dos castigos corporais resulta da promoção dse modelos educativos à base de comunicação recíproca, psicologização das relações no momento em que os pais justamente deixam de se reconhecer como modelos e imitar pelos seus filhos. O processo de personalização dilui todas as grandes figuras da autoridade, mina o princípio de exemplo, demasiado tributário de uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares, dissolve por fim as convicções em matéria de educação: a dessubstancialização narcísica manifestava-se no centro da família nuclear como impotência, desapropriação e demissão educativa. A punição física que, ontem ainda, tinha uma função positiva na aprendizagem e transmissão das normas, já não passa de malogro vergonhoso e culpabilizador da comunicação entre pais e filhos, de um legítimo impulso descontrolado, em desespero de autoridade.»
-? ??????????, in «? ??? ?? ?????»

Vá, adivinhem lá quem escreveu isto. Não é dos meus preferidos, mas também não é burro de todo. Levanta algumas questões interessantes. Por exemplo, uma que muito me intriga: "porque é que os pais deixaram de se considerar modelos dos filhos?"
Aceito sugestões.
Uma outra tem que ver com este homem sem semelhantes, puro indivíduo, coisa única, calhau precioso e com olhos, que doravante aspira da vida um atendimento personalizado, um guiché só pra si, um gestor de conta pessoal. E o que eu pergunto é simples: donde emergiu tamanha besta, e para onde galopa ela com tanta desenvoltura?...
Se souberem, digam-me. Eu também gostava de saber.

AS CHINESICES DUM DRAGÃO -Resposta ao meu caro PMF


O PMF, digno Blasfemo, por quem tenho grande estima ( e ele sabe disso), elogiou-me lá no seu Top-blogue a propósito duma das minhas iconoclastias. Vejo-me forçado a retribuir-lhe a saudação. É o que se segue...

Ah, meu caro PMF, você arruinou-me. Nunca mais vou ficar em segurança: agora os Zombies vão vir todos atrás de mim!...Alguns até me chamarão "comunista! comunista!" Vou ter que passar à clandestinidade, ai de mim. É uma vida cheia de incomodidades e percalços, nem imagina. E logo agora que a praia me convocava ao bronze...
Mas também os da esquerda me renegarão, me atirarão pedras e saliva. Não me concederão porto nem abrigo. Pois não digo eu que os democratas são porcaria semelhante aos republicanos? Que despautério, que heresia! Como ouso sequer insinuar que o Bush não é o demónio vivo e exclusivo?!!...
Agora a sério: Por altura da erupção daquela bela doutrina do "Destino Manifesto" (suponho que sabe daquilo a que me refiro), quando o William Randolph Hearst promovia a guerra de Cuba, parece que apareceu um energúmeno, ainda pior que eu, que, entre muitos sarcasmos aos "ideólogos das invasões estratégicas", propôs que se mudasse a «bandeira dos Estados Unidos: as barras seriam a preto e as estrelas seriam substituídas por caveiras com tíbias em grãos de arroz.»
Esse energúmeno chamava-se Mark Twain, era chinês e um perigoso comunista. Como, de resto, toda a gente sabe. E também não gostava da "coltura" americana, veja lá bem!...

PS:
Um dia destes, hei-de publicar uma lista de outros chineses equivalentes que também nunca apreciaram muito o "big stick". Ao contrário de certos entusiastas e masoquistas europeus(?) que, pelos vistos, apreciam. Se lhes falta, sentem-se desprotegidos, dizem eles.


Por princípio, não se fala de futebol aqui no blogue.

Mas quando se trata dos castelhanos, nem que fosse aos berlindes ou caricas, o confronto valeria sempre tanto como uma nova Aljubarrota.
Escrevo este postal com um grande sorriso estampado nestas minhas hórridas ventas dragonianas. Rejubilo. Especialmente pela grande infelicidade que, estou certo, grassa agora para lá da fronteira. Mais uma vez, corremo-los a pontapé.
O principal já está. O resto, doravante, é acessório.
Não, minto: o ideal é que sejam agora os ingleses nos quartos de final. Já que estamos com a mão (aliás, o pé) na massa, dos bons filhos da puta, é aproveitar! Convém malhar enquanto está quente.
Depois dos "nuestros hermanos", venham lá esses "velhos aliados". Com "hermanos" e aliados destes, quaisquer inimigos parecer-nos-ão sempre pessoas simpáticas.

domingo, junho 20, 2004

A COLTURA DA AMÉRICA

É mais que evidente que eu mangava convosco quando afirmava que a América não tem cultura. Tem, claro que tem, e não é pouca. Passo a expôr alguns dos seus símbolos -ou ícones, se preferirem.


1.COLT 45

2. RAMBO

3. FREE ENTERPRISE & BIG BUSINESS


4. JUNK FOOD (For a healthy junk-mind)


5. COMPETIÇÃO


6. LIBERDADE

7. COMERCIAL CONCEPT (O que é bom é o que se vende)



8. DROGAS LEGAIS
- Antidepressivos, ansiolíticos, hormonas de crescimento, anabolizantes, vacinas, estimulantes, etc, etc.


9. PLASTIC PEOPLE



10. ALIEN DETERRENCE & WORLD PATROLING


11. SACRED OIL


12. DEMOCRACIA INC. (for exportation)

13. THE S&M SOCIETY








sexta-feira, junho 18, 2004

Esquerda e Direita


As coisas, as ideias, as pessoas, estão cada vez mais distintas por fora (na fatiota e no penteado), e mais uniformes e amalgamadas por dentro (nas vísceras e no coração).
Para emblema disso, nada como a política dos nossos dias - ocupação, inerentemente, tomada de assalto por manicuristas e cabeleireiros.
Senão, reparem: O tipo de esquerda não só está piamente convicto que a Verdade existe, como, sobretudo, é possessão sua. Em contrapartida, o tipo de direita, ocupa-se obsessivamente da propriedade material, para ele, a única realidade verdadeira que existe. "A verdade é o meu pensamento", clama um; "a verdade é o que eu tenho", opõe o outro.
Bem no fundo, nenhum deles ama a Verdade. Um instrumentaliza-a; o outro compra-a. Para aquele, portanto, a infeliz não passa de unilateral masturbação; para este, resume-se a sórdida prostituta.
Fora isso, não se distinguem muito. Um já tem; o outro gostava de ter. Um já está; o outro vai a caminho.
O debate, superficialmente belicoso, nunca sai disso. Gira à volta da propriedade; nunca da verdade. Esta, bem entendido, um não a tem nem precisa dela pra nada, excepto para o capricho periódico de se aliviar nela. O outro tem-na toda e, por isso mesmo, exige a gratificação que lhe é devida por tamanha vidência, por tão útil préstimo à Humanidade.
No fim, quase sempre, encontram-se a meio caminho. O tráfico - a discreta transacção - sara as feridas da ideologia, os arrufos dos comadrios: A esquerda troca de bom grado uma boa parte da sua infinita e exclusiva verdade por um razoável quinhão da infinita e não menos exclusiva propriedade da sua rival.
A direita é só a esquerda empaturrada.
Donde, não surpreendem as manias (camufladas de estratégias): uma, a esquerda, investe na palraria; a outra, a direita, concentra-se na digestão. Acreditando, cada qual, nos poderes miraculosos e panaceicos, ou da saliva, ou do arroto.

quinta-feira, junho 17, 2004

UM MUNDO AMORFO

Às vezes, apetece-me disparar-vos assim, à queima roupa, o seguinte:
As dificuldades, os ambientes hostis moldam o carácter; as facilidades, as redomas mimosas dissolvem-no. Tenho-o constatado ao longo da vida. Não sou o único. Parece que também se constata ao longo da História. É a distância que vai do espartano ao hedonista.
É porque os homens - e com eles os povos- perdem o carácter, que a massificação se instala, que a mercearia usurpa o Céu e a pocilga o cosmos. É porque os homens se deixam levar ao pasto como manadas, que irrompem, a qualquer hora, ilusionistas de cajado armados em pastores. E não têm sido poucos os charlatães! Ultimamente, todavia, já nem facínoras desses são necessários: o chiqueiro automatiza-se a olhos vistos e passos largos. É uma exploração moderna, robotizada. O processo tem-se vindo a aprimorar. Já nem para o pasto se mexem: contentam-se com a palha, os antibióticos e as hormonas. Criam espíritos, reproduzem carácteres, como quem cria galinhas ou multiplica suínos: para uma engorda fácil e um abate rápido.
E tudo isto em nome duma anestesia, duma suavização existencial ao domicílio, duma eutanásia a longo prazo, generalizada.
É todo um mundo de anõezinhos hiperdependentes, junkies do supérfluo e da pequena mordomia, cada vez mais viciados em toda a espécie de acessórios e próteses, que enchem a boca de proclamações e fanfarronadas do estilo: "somos livres, somos cada vez mais livres! nem se compara com aquelas épocas tenebrosas do passado." São livres, claro está, desde que tenham emprego. Caso contrário, ei-los que bradam, gemebundos, merdificados: "Somos uns desgraçados!"
Para aceitar um mundo destes, para se aninhar nele à boa maneira leibnitziana, como se fosse o melhor dos mundos possíveis, para não aspirar a mais que esta gamela dourada, não é a falta de inteligência que é essencial: é a ausência de carácter, de dignidade, da coluna vertical que distingue, enfim, o homem dos animais horizontais. É imprescindível, em suma, perder a capacidade de olhar o horizonte ou encarar os céus.
Em nome do bem-estar, vendemos o nosso ser e, nada sendo digno de se ver, deixamos de estar, ficamos à deriva em lado nenhum, nem bons, nem maus: matéria neutra, plasma informe, aberração desarvorada pelos limbos. Reduzidos a ferramenta que vale enquanto a usam; plasticina sempre dúctil e disponível; escravos cegos por conta própria.
Esta massa amorfa e acéfala, agregado esponjoso e destruidor, cada vez mais obscuro e irracional, que habita os subterrâneos caóticos e ocupa os pesadelos e as visões dos poetas - esta abominação sem nome - contemplem-se: somos nós! Habitamos ruínas lúgubres, onde chacinámos horripilantemente deuses e antepassados, mundos e heróis, artes e sonhos. Memórias que reduzimos a cacos e entulho heteróclito - que assombramos e polimos com a nossa baba negra e opiniosa, a nossa verborreia monocórdica e papagueante, empastelados numa bestialidade primordial para onde vamos regredindo. Foi isso, suspeito bem, que Lovecraft descobriu, sob o imaculado manto branco da Antártida, diante das "montanhas da loucura":
«Estávamos no mesmo túnel em que deslizava aquela coluna de pesadelo, elástica, fétida, irisada, que avançava a uma velocidade infernal envolta em rolos de névoa, trazidos das profundezas do abismo negro. Era uma coisa terrível, indescritível, maior do que um comboio, um amontoado informe de bolhas protoplasmáticas, luminosas, com miríades de olhos que ora apareciam ora desapareciam, formando pústulas de luz esverdeada na parte que avançava direita a nós, esmagando os pinguins apavorados, deslizando no solo varrido que ele e outros como ele mantinham diabolicamente limpo e reluzente.»
(- H.P.Lovecraft, "Nas Montanhas da Loucura")


Fazei o caminho com ele. Ide visitar-vos. Lá detrás do verniz das aparências, por baixo do palco da feira das vaidades. Pura matéria em acção. Despida de qualquer forma. Vazia de todo o espírito.

TERMÓPILAS OU O DESFILADEIRO DA HONRA


«Estrangeiro, vai anunciar aos lacedemónios que aqui
estamos, em obediência às suas leis...»

Nas Termópilas, há mais de dois mil anos, Leónidas e os melhores de Esparta, lutaram até à morte. Deixaram-se matar até ao último homem para que a Grécia fosse livre, para que a terra dos seus pais não caísse sob o jugo dos bárbaros.
Cercados - e prestes a serem submersos - pelas hordas avassaladoras e infinitamente superiores em número, dos Medos e Persas, os espartanos não vacilaram.
Xerxes, o grande rei persa, tentou ser magnânimo. Diante de tão pequena oposição, enviou um mensageiro:
"Rende-te e entrega as tuas armas. -Ofereceu.
Leónidas, que era espartano, respondeu como um espartano. Foi lacónico:
-"Vem buscá-las!"
Depois lutou. Lutaram todos. Morreram para que a sua terra não morresse. Para que os seus filhos e netos não fossem escravos. Morreram porque a morte é certa e a vida humana pertence-lhe. Ao homem, de seu, mesmo seu, só resta a honra. Essa é a única coisa que nem a morte lhe pode tirar.
Naquele dia, há muito tempo, Leonidas morreu inteiro, livre, homem. Preferiu morrer como um homem que viver como um escravo. Preferiu dar o peito à morte que virar costas à vida. É preciso coragem, muita coragem, para se ser um homem. Ontem como hoje.
Por mim, gostava de lá ter estado, a rir-me, como todos os outros, do medo e da vida fácil, ao escutar a última ordem de Leónidas, lacónico como sempre, antes do desenlace final:
-"Almoço aqui! Jantar no Hades!..."

Lá, no Hades, onde eles todos agora estão. Quanto a mim, mais vivos que nós.

DE CÉLINE, SOBRE A AMÉRICA, COM DESAMOR...


«Era o bairro precioso, explicaram-me mais tarde, o bairro do oiro: Manhattan. Apenas lá se entra a pé, como na igreja. No que diz respeito a bancos é o verdadeiro coração do mundo de hoje. E há assim mesmo quem por ali escarre no chão, ao passar. É preciso ser-se ousado.
É um bairro a transbordar de oiro, um verdadeiro milagre, e até podemos ouvir esse milagre através das portas com o seu ruído de dólares a tinir, sempre demasiado volúvel, o Dólar, um verdadeiro Espírito Santo, mais precioso do que o sangue.
Tive ainda tempo de ir vê-los e cheguei mesmo a lá entrar e a dirigir-me àqueles empregados que guardavam as moedas. São tristes e mal pagos.
Quando os fiéis entram no banco, não nos convençamos que lhes permitam servir-se ao sabor dos seus caprichos. Nada disso. Falam ao Dólar murmurando-lhe coisas através de uma rede estreita, confessam-se a bem dizer. Nada de grandes barulhos, luzes bastante veladas, um minúsculo postigo no meio de arcadas altas, e pronto. Não engolem a hóstia: encostam-na ao coração.»
-Céline, "Viagem ao Fim da Noite"

Do essencial que a América tem, não há muito mais a dizer. Tudo o resto é uma espécie de constelação de acessórios disto. Derivações, satélites, tentáculos sugadores. Céline, com aquele poder de síntese genial que o caracteriza, vai ao âmago. Em três pinceladas, resume a coisa. E deposita o escarro. Sublime. Sonoro. E, caso para se dizer, na mouche!

«Eram casais a deitar-se. Pareciam tão derreados, esses americanos, como os nossos compatriotas depois das horas verticais. As mulheres tinham as coxas desenvolvidas e muito pálidas, pelo menos aquelas que eu dali via. A maior parte dos homens barbeava-se enquanto fumava charutos, antes de se deitar.
Na cama tiravam em primeiro lugar os óculos, em seguida a dentadura que enfiavam dentro de um copo, colocando tudo em evidência. Não me parecia que falassem uns com os outros, de sexo para sexo, tal como sucedia na rua. Dir-se-iam animais bastante gordos e dóceis, habituados a aborrecer-se. Não distingui no conjunto mais do que dois casais a fazerem com a luz acesa as coisas que eu esperava, e esses mesmo com muito pouco ardor. As outras mulheres comiam bombons na cama enquanto aguardavam que os maridos se acabassem de preparar. Finalmente todos eles apagaram a luz.(...)
«Em África conhecera, é verdade, uma das mais duras espécies de solidão, mas o isolamento neste formigueiro americano apresentava-se com aspectos mais opressivos ainda.»
-Céline, "Viagem ao Fim da Noite"

Entretanto, já se passaram muitos anos. Parece que a coisa se deteriorou. Se é que é possível conceber "deterioração" num monturo. Penso que o conceito mais adequado será "fermentação". Aquilo fermenta. É um caldo. De culturas, diz o vulgo. De falta delas, digo eu.




quarta-feira, junho 16, 2004

CURRICULUM MORTIS (ou da Self-Made-Mania)



I ACTO - A Ascensão

Quando nasce, a mãe morre. Em casa é um susto tremendo. A precocidade, contudo, não tarda a confirmar-se...
Aos sete meses de idade, esmaga entre os deditos ágeis a sua primeira pulga incomodativa. Aos dois anos, degola meticulosamente moscas e desmembra baratas com assinalável método e engenho.
Pelos seis, já depena o periquito e despenha subreptciamente o cão da varanda. Duas semanas depois, é a vez do gato aparecer estorrado no forno. A família começa a dar sinais de transtorno e desnorte. Consultam-se bruxas e videntes; um exorcista é chamado. Benzeduras e aspersões abatem-se. Os mistérios, todavia, não arredam. Pelo contrário, adensam-se. Episódios macabros irrompem. Uma prima amanhece enforcada.
Apavorada,, suspeitando duma intervenção satânica, a familia abandona a casa, a vila, a província. Migram para a capital.
Debalde. Inexorável e infalível, persiste:
Com doze anos, descobre a química. Ensaia as primairas experiências no chá da avó; com arsénico. A incauta anciã demora três meses até recolher ao cemitério. Seguem-na, a intervalos regulares, duas tias e um capitão reformado, galante cortejador da mais nova.
Aos quinze, reúne pólvora suficiente para enviar o professor de matemática em viagem pela sala e de visita ao andar de cima, não fosse o tecto. Vai ao funeral para não criar suspeitas.
No ano seguinte é o vizinho do lado que aparece no fundo dum poço, com cadeira de rodas e tudo. Ninguém percebe. Nem desconfia. A sua popularidade cresce a olhos vistos.
Dedica-se à música e mata o pai com um violino. Esconde o cadáver dentro dum caixote, que despacha, via marítima, para a Argentina, ao cuidado dum personagem imaginário. Em casa, todos o admiram. Pressente-se, pela primeira vez, fadado pela Providência a grandes feitos e cargos. Aproveita para ensaiar infanticídios com uma tuba.
Completa desassete retorcidas primaveras quando se apaixona. É correspondido. Depara-se, não obstante, com a firme relutância do pai da eleita em devir seu sogro. "relutância" é mesmo eufemismo: na verdade, é de hostilidade feroz, inexplicável, coroada com vias de facto, que se trata. Acompanhada, ainda por cima, dum corpanzil imenso de estivador efectivo. Tabefes sonoros e pontapés abruptos não tardam a experimentá-lo. Vê-se despedido porta fora, nimbado de injúrias e remoques depreciativos. Sombrio e carrancudo, retira-se. Mas, em silêncio, com frieza patibular, jura vingar-se. Uma semana depois, subitamente, durante a sesta, o progenitor recalcitrante explode. Dois quilos de trotil estratégicamente colocados prontificam-no para o destaque nas páginas de necrologia dos jornais. Os familiares levam três dias a recolher os fragmentos e outros tantos a tentar resolver o puzzle. Por fim, desistem, resignados a um montículo simbólico. O funeral decorre entre grande luto e consternação de toda a vizinhança. Comentam-se, à boca pequena, enredos complexos e acusam-se, entre outros, os extra-terrestres.
Sem mais empecilhos nem obstáculos aos seus intentos, o nosso herói casa-se, finalmente, numa manhã de Abril, entre rejúbilo e nuvens de arroz. Parte para lua-de-mel num "Cadilacc" alugado e, logo no arranque, simulando uma falha rangente na caixa, aproveita para atropelar o padrinho distraído e dois cunhados bêbedos.
As responsabilidades de chefe de família começam, a partir de então, a afligi-lo. Vê-se compelido a largar os estudos musicais e procurar emprego remunerado. Falha como motorista de autocarro: este descontrola-se numa das principais praças da capital, levando a esmo transeuntes e explanadas. Um obituário record sobrevém. O despiste redunda em chacina. No mesmo dia, ganha foros de primeira página e dá brado internacional. Polémicas e debates eclodem. Debulhado em lágrimas, exibem-no no telejornal. As opiniões dividem-se, mas, por fim, uma vaga de fundo prevalece. Promovem-no a administrador.
Investe na especulação imobiliária e torna-se empreiteiro. Constrói edifícios em tempo incrível, que ruem mais rapidamente ainda, soterrando todos os inclinos. Após uma célebre entrevista na televisão, é chamado para a pasta das Obras Públicas. Aceita e propõe-se , de imediato, resolver todos os problemas que for capaz de inventar. Inventa vários. Que resolve no mesmo dia. O êxito não podia ser mais retumbante: é aclamado herói nacional e paradigma das gerações vindouras.
Inebriado, aposta nas novas tecnologias e igrejas. Congemina e desenvolve o chamado marketing lobotómico (consiste num cocktail inefável de tecnicas de genocídio subtil à mistura com rituais compulsivos de suicídio colectivo, procedido de doacções legatórias). Analistas consagrados são unânimes em reconhecer-lhe uma clara inspiração divina, dotes imaculados de profeta, mas hesitam entre a reencarnação de Jesus ou Buda. Alguns, mais visionários e entusiastas, descortinam mesmo nele um novo Staline filantrópico ou um Hitler sentimental. É beatificado, por antecipação.
Com trinta anos, a vida sorri-lhe. Pai de duas lindas meninas, enviúva da primeira mulher que, providencialmente, se suicida com três tiros na cabeça.

(continua...)

terça-feira, junho 15, 2004

A AMÉRICA DOS IMPOTENTES


Eu não gosto de americanos. Refiro-me àquela massa bruta, ao formigueiro que parece importado de Marte. Republicanos ou democratas, é-me indiferente. É a corja inteira que eu não gramo. Não é uma questão política: é visceral. Não gosto de americanos como não gosto de baratas, ratazanas ou aranhas. Repugnam-me, causam-me asco. São peçonhentos. É instintivo. Lovecraft, tenho a certeza, inspirou-se neles para conceber todas aquelas monstruosidades amorfas e alienígenas que assombram e depredam a espécie humana. Que escavam túneis tenebrosos e habitam antros abomináveis.
Racionalmente, também não gosto. Não gosto nada, como não gostava Nietzsche, Freud, Levy-Strauss, Heidegger, Céline, Ortega Y Gasset e tantos outros.
Portanto, se sou estúpido estou bem acompanhado.
Suspeito que se reproduzem como os vampiros. Vampiros de almas, quero dizer. A sua prole zombie, frankensteiniana, passeia-se espectralmente por toda a parte. Despersonalizada, desrealizada, delirante, amorfa, sonâmbula, expele uma baba negra e corrosiva que não engana. Uma estaca de madeira antes do anoitecer seria um acto de caridade.
Apegam-se a grunhidos monocórdicos, entrecortados por urros possessos. Como papagaios energúmenos que apenas repetem os mesmos chavões decorados, obsessivos, obscenos.
Um desses, predilecto, mais em voga, é o de que os americanos nos salvaram dos nazis. Com que frenesim se lhe entregam!...Que cassete!
Uivam-no, proclamam-no, num esbugalhado transe, de olhar fixo e cabeleira ouriçada, os olhos raiados e a baba a pingar das mandíbulas rangentes. É o argumento rei. Pode o cosmos ruir, que o argumento rei resiste.
Aparentemente, acreditam nele. Agem em conformidade. Mas não deixa de ser curioso, e até irónico, que esses mesmos que louvam hoje os americanos, estariam seguramente na primeira fila a louvar os nazis caso estes tivessem triunfado e usufruissem, no presente, de incontestada hegemonia. Digo mais, andariam por aí, em patrulha severa, fardados de negro com duas insígnias "ss" na gola e uma caveira no boné.
E louvá-los-iam pela única e genuína razão por que sabem louvar: porque eram os que tinham ganho, os que estavam por cima, os triunfantes!
Garanto-vos: Ninguém como o cão para reconhecer o dono da casa. Ninguém como o sabujo para acudir à voz e ao assobio do amo. Nem como o eunuco para zelar pelo harém. Nem como o impotente para idolatrar e rastejar abjectamente diante do Poder e da Força.

O ESSENCIAL E O ACESSÓRIO


Cá no burgo, confunde-se muito o essencial com o acessório. Por exemplo, essencial é a competência dum governante; acessória é a sua cor política. Mas o pagode acha o contrário. Desde que vista a sua camisola, está salvaguardado o essencial. Porque pró pagode o essencial é o acessório, a vaidade prevalece sobre a eficiência. Votei naquele que ganhou, logo ganhei.
Grande parte dos governantes, nem são de direita nem de esquerda: são incompetentes. Depois vem o acessório: são incompetentes de direita ou de esquerda. Não é pelo acessório que se tornam especialmente danosos, é pela essência -por serem incompetentes.
A competência dum governante, ainda por cima democrata, mede-se pela eficácia na governação dum país real, para o qual se candidatou e foi eleito, e não dum país imaginário. Muito menos dum país liliputizado ao seu grémio, reduzido à sua pandilha. O problema é que a maior parte das criaturinhas incubadas e criadas nas máquinas partidárias não faz a mínima ideia do que é o país real, quanto mais governá-lo. Os seus horizontes esgotam-se no aparelho que os hospeda e amamenta. Daí a confundirem o país com o partido, e, por conseguinte, a trocarem o essencial pelo acessório, não demora nada. Também não espanta que a democracia descambe numa parasitocracia oligarquizada. É assim. Ou isso ou o caos.
Entretanto, a discussão política reflecte a política, quer dizer, o essencial é o acessório: aquele senhor não presta porque não é do meu partido; se fosse do meu partido seria excelente. Eis-nos, assim, ao nível do futebol. As bancadas do parlamento confundem-se cada vez mais com as bancadas dum estádio; e o partidarismo vociferante, ululante, em nada se distingue duma variação engravatada de hooliganismo.
O actual governo, por exemplo, essencialmente, não é de direita ( e muito menos de esquerda): é, isso sim, profundamente incompetente. Chegaria a ser anedótico se não fosse trágico. A ministra das finanças, essa, é digna de internamento compulsivo e camisa de forças. Quanto ao que distingue este governo do anterior, não é o facto -acessório- de este se pretender de direita e aquele de esquerda. No essencial, na profunda incompetência, assemelham-se; na confusão entre Estado e aparelho partidário quase se geminam. Não me restam grandes ilusões que qualquer um dos outros partidos, uma vez no governo, desgovernaria com igual gula.
Para que servem, então, as eleições?
Sinceramente, já não sei. Nem consigo, tão pouco, perceber se, na realidade, os cidadãos votam (aqueles que votam), ou se, pura e simplesmente, se aliviam.

segunda-feira, junho 14, 2004

ÍTACA, lá ao fundo...


A Ítaca que esperava Ulisses era uma Ítaca que envelhecia e morria, definhando. Uma ilha sujeita a um tempo hostil e mundano; uma mulher prisioneira dum tear, duma teia ambígua, que todos os dias se faz e, todavia, permanece inacabada. O regresso de Ulisses é também a renovação. O tempo é vencido, o tear fica completo, a mulher liberta-se. Reencontra-se a mesmidade. Tudo se revê no ponto de partida. Encerra-se o círculo. Reanima-se o Todo pela reunificação das partes. Ulisses é, sem dúvida, um princípio não só unificador como benéfico, e benéfico porque unificador: Transporta consigo o Final feliz, a salvação. Terminada a sua odisseia -na concretização do círculo - fica tacitamente instaurada a Eternidade. Ulisses partirá e voltará sempre; errará para atingir necessariamente o Final feliz. E em todas essas infinitas vezes iguais a uma só, a ordem natural/circular das coisas triunfará sempre.
Mas o próprio desencadear do círculo revela, intrinsecamente, uma ordem outra que não essa: uma Ordem Superior, ordem-comando, que se revela e patenteia, quase diríamos, pela negativa. Isto é, o círculo realiza uma ordem, é uma ordem, mas subentende outra ordem acima, necessária, inexorável, determinante. Não é, com efeito, do humano entendimento perceber porque é que Ulisses tem que abandonar Ítaca para ir combater para Tróia e, consequentemente, errar e padecer por paragens longínquas, entre monstros e sorvedouros. Ele próprio não quer ir, finge-se louco quando o convocam. É perspicaz. Pressente a armadilha e nós, num plano imaginário, torcemos com ele para que não vá. Sabemos a história, como provavelmente ele a adivinha. No entanto, parte, tem que ir - porque senão não haveria história nem, tão pouco, Final feliz. Por outras palavras: Não haveria Vida. Ora, Ulisses é a ordem da vida e revela, por outro lado, na realização do círculo, a outra ordem que lhe superintende.
Do mesmo modo, também poderíamos dizer que não é do humano entendimento perceber porque é que Jesus Cristo tem que descer à Terra para ser crucificado. Num sentido, revela também ele a ordem superior: vem porque Deus Pai o manda; mas noutro ele é o Verbo feito carne, o próprio Deus que tem que descer ao mundo, à dor -enfim, que tem que lançar-se na odisseia para salvar os filhos. Tal qual Ulisses, de resto. Fica-nos, contudo, a curiosidade e a dúvida de saber se, como este, não teria também Ele preferido não ter que o fazer.
Não obstante, em ambos é o Final feliz que se concretiza: Ulisses volta a Ítaca: Cristo retorna ao Céu. Das duas odisseias se instaura a eternidade, por acordo íntimo e unânime de todos os "leitores" (é que, tal qual o "helenismo" consiste na "leitura" da Odisseia, a palavra de Ulisses, também o Cristianismo se sustenta na "palavra de Jesus"). E, por mais ateus que aparentemente nos proclamemos, como suportaríamos a vida se não nos soubéssemos eternos?
Foi confiada nessas palavras, de Ulisses e Jesus, num tempo em que a palavra significava e fazia mundo, que partiu um dia a nossa civilização. E é por força delas e daquilo que representam, que ainda hoje - por entre monstros e sorvedouros, abismos e neblinas, amnésias e desvarios - acreditamos que, algures, no fechar do círculo, nos aguarda o Final feliz. Ítaca. É para lá que vamos. Ficou-nos gravado no fundo do coração. Nesse dia já longínquo em que partimos.

PS: Em grego, "hityw" (raíz de Ítaca) significa: "ir", "lançar-se", "desejar com ânsia".

domingo, junho 13, 2004

A ODISSEIA DO RANCOR


«Aplicamos o melhor das nossas vigílias a esquartejar em pensamento os nossos inimigos, a arrancar-lhes os olhos e as vísceras, a espremer-lhes e a esvaziar-lhes as veias, a espezinhar e esmagar cada um dos seus órgãos, ao mesmo tempo que por caridade lhes deixamos o gozo do seu próprio esqueleto. Feita esta concessão, acalmamo-nos, e, repassados de fadiga, deixamo-nos deslizar para dentro do sono. Repouso bem ganho depois de tanto encarniçamento e minúcia. Devemos de resto recuperar forças para conseguirmos na noite seguinte recomeçar a operação, reentregando-nos a uma tarefa capaz de desencorajar um Hércules cortador. Decididamente, ter inimigos está longe de ser uma sinecura.
O programa das nossas noites seria menos carregado se, durante o dia, tivéssemos ensejo de dar livre curso às nossas más inclinações. Para alcançarmos não tanto a felicidade como o simples equilíbrio, teríamos necessidade de liquidar um bom número dos nossos semelhantes, de nos consagrarmos quotidianamente à prática do massacre, seguindo o exemplo dos nossos muito afortunados e muito remotos antepassados.(...)
Nada nos torna mais infelizes que o dever de resistirmos ao nosso fundo primitivo, ao apelo das nossas origens. Daí resultam estes tormentos de civilizados reduzidos ao sorriso, atrelados á cortesia e à duplicidade, incapazes de aniquilar o adversário a não ser em palavras, votados à calúnia e como que desesperados por termos que matar sem agir, através de simples virtude da linguagem, esse punhal invisível. As vias da crueldade são diversas. Substituindo-se à selva, a conversa permite à nossa bestialidade dispender-se sem dano imediato para os nossos semelhantes. Se, pelo capricho de uma potência maléfica, perdêssemos o uso da fala, ninguém mais ficaria em segurança.»

Uma derradeira charada: Quem escreveu isto?
Desta vez dou ajudas:
a) É um filósofo do século XX (o que melhor escreve, quanto a mim);
b)É de origem Romena (mas radicado em França);
c) O título do post e do ensaio a que o trecho citado pertence são iguais;
d)Nasceu na Transilvânia, em 8 de Abril de 1911.

Um último motivo para meditação: segundo a tese aqui prescrita, quanto mais os cidadãos duma determinada sociedade se entregarem a palrarias e debates retóricos (não necessariamente políticos), mais inofensivos e domesticados se tornam.
Nesse sentido, o facto dum regime permitir que se diga mal dele, que se converse e labie - aberta e depreciativamente- a seu respeito, que se pensem e meditem os projectos mais sombrios, só beneficia a sua longevidade e segurança.
Traduzido para o vulgo: "Cão que ladra não morde."
Curiosamente, a realidade não o desmente: ladra-se cada vez mais e morde-se cada vez menos. Descarrega-se a bílis, sublimam-se os ódios e fica-se pronto para mais uma viagem, atrelado à nora, de roda do poço.

sexta-feira, junho 11, 2004

ANTOLOGIA DRAGOSCÓPICA - I. Uma questão fundamental


Passo a editar uma antologia deste blogue. Serve para comemorar os seis meses de iconoclastia cibernáutica, data quase tão importante como a Descoberta do Caminho Marítimo para o Fundo. Inicio com aquele que foi, precisamente, o primeiro postal a sério deste Dragoscópio. E quanto a vocês, ó leitores, façam o que vos é costume: aguentem-se à bronca!...
(aproveito para adicionar fotos, efeito que muito agrada e cativa nestes tempos "mirones"...)

«Ora, como o post anterior não contou, a questão fundamental que se coloca é: com que assunto vai este meu Blog perder a virgindade? Não pode ser um assunto qualquer maltrapilho e leviano, que não garanta um futuro risonho e uma famí­lia numerosa - não mandei o meu Blog estudar na universidade para deixá-lo agora entregue a sabe-se lá que aventuras e regabofes! Sou dragão, não sou otário!...Assim sendo, que tal a minha "portugalidade", hein?...Condição essencial a qualquer ser vivo, ou meio morto, ou meio vivo-meio morto, é o seu lugar de origem. O meu é Portugal. Sou um dragão made in Portugal. Genuí­no português...para a pobreza e a riqueza, na tristeza e na alegria, até que a morte nos separe! Ora, se este não é um belo assunto, então não sei o que será um belo assunto!
Então, vejamos: qual é a caracterí­stica mais forte do português?...Esperteza saloia, mesquinhez, balbúrdia, burrocracia, inveja, superficialidade, bacoquismo, futebolite, hipocrisia?...É certo que estas abundam, mas serão realmente o ápice?...
Não restam dúvidas que o português adora falar ao telemóvel e guiar o automóvel (de preferência as duas em simultâneo), mas quanto a mim há algo que ainda supera estas delí­cias e o deixa, mais que derretido, babado...Não adivinham? Eu digo: Mirar. Pois, mirar e remirar com a maior das gulas. O português não come com os olhos, empaturra-se. E não há dispepsia que o aflija: digere tudo! É uma gibóia insaciável, uma anaconda voraz. Mas nada de voyeurismos ou espreitadelas subtis, de soslaio, como quem não quer a coisa. O verniz não lhe quadra...gosta mesmo é de plantar-se defronte dos acontecimentos, das coisas e, sobretudo, dos desastres, das cenas degradantes, e empanzinar-se, tirar a barriga de misérias, ou melhor, enchê-la! Não se pode exigir aos portugueses que apaguem incêndios, quando, na verdade, o que eles gostam mesmo é de vê-los, apreciá-los, na sua beleza feérica, catastrófica (e quem sou eu, dragão, para os criticar nesse caso especí­fico...) Diante da própria casa a arder, o português deve ser único no mundo a experimentar sentimentos contraditórios: por um lado "ai que desgraça!,minha rica casinha!..."; por outro, "compõe-te mulher, vêm ali os senhores do telejornal!..."
Da mesma forma, é absurdo incitá-los a que se levantem da desgraça, da miséria mental e fí­sica em que vivem, qual país prostrado, rastejante, mendigabundo, quando, acima de tudo, o que eles mais gostam é de contemplar misérias, desgraças, ignomí­nias, hecatombes, nem que sejam as suas! Aliás, sobretudo as suas!...Para que quereriam eles um paí­s organizado, seguro, planificado, ordeiro: só se fosse para morrerem de tédio! Tanto mais, que nenhum sarrabulho lhes chega, nenhuma confusão lhes basta: mergulhados numa babel monumental, eis que anseiam emigrar para as Áfricas ou Brasis, só porque sonham que aí a balbúrdia ainda é maior!... E é, graças a Deus!...
O caso dos acidentes aparatosos e sanguinolentos (ou melhor será dizer, massacres?) nas auto-estradas serve de modelo alegórico...Quem já não assistiu às tripas do semelhante em exposição gongórica nestas galerias? E as filas de basbaques que logo se formam? E os desastres subsequentes, como que por simpatia (por simpatia mesmo) que, regra geral, se encadeiam? A malta a ver, a absorver morbidamente, com volúpia... a assistir, a esquadrinhar, a pesquisar, à cata de minúcias e detalhes, quanto mais escabrosos, repugnantes, melhor! Uma corja, sem dúvida. O português conforta-se na sua própria repugnância, engrandece-se e regozija-se na proporção directa da desgraça alheia. O seu bem, a sua sorte, só são reconhecí­veis, assinaláveis a partir da desgraça e do azar dos outros. Puta de gente! E eu, apesar de dragão, sou um deles. Ninguém escapa: vem com o Tejo, os sobreiros, o azul único do céu e tudo o que faz com que este lugar seja este e não outro. Os gregos chamavam-lhe "moira"; nós chamamos-lhe "destino".
Não deixa de ser irónico: os portugueses embasbacados diante de misérias e desgraças, e eu embasbacado diante deles e de mim próprio (ou sejam, outras misérias e desgraças que tais)...Mas felizmente há o riso! e este meu dragoscópio, que dá para ver tudo e mais alguma coisa!...E que vejo eu, dragão, nos portugueses, através do meu dragoscópio?...
A desgraça que é ser português?..., pensais vós...
Desgraça?! Não me fodam!, desgraça mesmo era ter nascido americano!...»