segunda-feira, junho 28, 2004

JORGE SAMPAIO TELEFONOU-ME


É verdade. Telefonou. A sondar-me: se eu estava disponível para formar governo. Uma emergência, explicou, nitidamente aflito. A pátria está em perigo; a democracia periclita.
Costumam consultar-me, mas, assim, um convite, de chofre, foi a primeira vez. Assaltaram-me sentimentos contraditórios: por um lado, honra; por outro, horror. Isto é, a título individual, orgulho; a título social, náusea e vertigem. Hesitante entre a eructação e o vómito, ainda consegui articular:
-"Mas Excelência, porquê eu? Nem sequer pertenço a nenhum partido! Pior: tenho-lhes fobia!..."
Do outro lado da linha, em contrapartida, não houve hesitações:
-"Por isso mesmo, pá! Por isso mesmo! Eu agora preciso é dum independente!..."
Ao orgulho e à náusea, adicionei a estupefacção. Mas ele, o execelentíssimo, acabou com ela em três tempos.
-"Pois, pá! Da outra vez, o Eanes resolveu o sarilho com uma Pintassilgo. Mas agora, da maneira que isto está, só já lá vai mesmo é com um dragão. Não há passarinha que resista. Tem que ser um dragão, pá! Um dragão a sério, providencial, em suma: Você! Não vejo outro, pá."
O meu pior defeito é a honestidade. Sempre foi. Tolheu-me todas as vezes em toda a parte. Mas agora é tarde para mudar, para rebobinar a cassete. Não aceitei, claro. Desculpei-me, já não me lembra com quê. Uma ninharia qualquer. Ele compreendeu. As ninharias sensibilizam-no muito.
Mas vi que ficou com pena. Era um belo plano. Talvez por isso, com um certo peso na consciência, ainda lhe sugeri, à laia de compensação:
-"Mas, Excelência, não desista. Se o problema é o Santana Quéques a galope na oportunidade, o antídoto é simples: convide o Pinto da Costa!..."

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