quinta-feira, junho 17, 2004

DE CÉLINE, SOBRE A AMÉRICA, COM DESAMOR...


«Era o bairro precioso, explicaram-me mais tarde, o bairro do oiro: Manhattan. Apenas lá se entra a pé, como na igreja. No que diz respeito a bancos é o verdadeiro coração do mundo de hoje. E há assim mesmo quem por ali escarre no chão, ao passar. É preciso ser-se ousado.
É um bairro a transbordar de oiro, um verdadeiro milagre, e até podemos ouvir esse milagre através das portas com o seu ruído de dólares a tinir, sempre demasiado volúvel, o Dólar, um verdadeiro Espírito Santo, mais precioso do que o sangue.
Tive ainda tempo de ir vê-los e cheguei mesmo a lá entrar e a dirigir-me àqueles empregados que guardavam as moedas. São tristes e mal pagos.
Quando os fiéis entram no banco, não nos convençamos que lhes permitam servir-se ao sabor dos seus caprichos. Nada disso. Falam ao Dólar murmurando-lhe coisas através de uma rede estreita, confessam-se a bem dizer. Nada de grandes barulhos, luzes bastante veladas, um minúsculo postigo no meio de arcadas altas, e pronto. Não engolem a hóstia: encostam-na ao coração.»
-Céline, "Viagem ao Fim da Noite"

Do essencial que a América tem, não há muito mais a dizer. Tudo o resto é uma espécie de constelação de acessórios disto. Derivações, satélites, tentáculos sugadores. Céline, com aquele poder de síntese genial que o caracteriza, vai ao âmago. Em três pinceladas, resume a coisa. E deposita o escarro. Sublime. Sonoro. E, caso para se dizer, na mouche!

«Eram casais a deitar-se. Pareciam tão derreados, esses americanos, como os nossos compatriotas depois das horas verticais. As mulheres tinham as coxas desenvolvidas e muito pálidas, pelo menos aquelas que eu dali via. A maior parte dos homens barbeava-se enquanto fumava charutos, antes de se deitar.
Na cama tiravam em primeiro lugar os óculos, em seguida a dentadura que enfiavam dentro de um copo, colocando tudo em evidência. Não me parecia que falassem uns com os outros, de sexo para sexo, tal como sucedia na rua. Dir-se-iam animais bastante gordos e dóceis, habituados a aborrecer-se. Não distingui no conjunto mais do que dois casais a fazerem com a luz acesa as coisas que eu esperava, e esses mesmo com muito pouco ardor. As outras mulheres comiam bombons na cama enquanto aguardavam que os maridos se acabassem de preparar. Finalmente todos eles apagaram a luz.(...)
«Em África conhecera, é verdade, uma das mais duras espécies de solidão, mas o isolamento neste formigueiro americano apresentava-se com aspectos mais opressivos ainda.»
-Céline, "Viagem ao Fim da Noite"

Entretanto, já se passaram muitos anos. Parece que a coisa se deteriorou. Se é que é possível conceber "deterioração" num monturo. Penso que o conceito mais adequado será "fermentação". Aquilo fermenta. É um caldo. De culturas, diz o vulgo. De falta delas, digo eu.




10 comentários:

  1. Não li Céline, caro Dragão- e suponho que não lerei. Repesquei agora um comentário algures que diz o seguinte:

    "Ce qui compte chez Céline ce n'est pas l'histoire, c'est le style, un style qui après avoir influencé la plupart des auteurs de la Beat Generation ne cesse pas de nourrir encore aujourd'hui la plupart des écrivains modernes. Sans Céline la littérature moderne serait tout à fait différente. L'histoire n'était qu'un prétexte au style. »

    Não sei se assim é. Porém, a referência aos da beat generation deixa-me igualmente frio, embora na escrita aprecie particularmente o estilo. Porquê? Porque as ideias podem ser erróneas e o mais certo é que isso suceda.
    Agora, o estilo, nunca o é, porque traduz um prazer imediato a quem consome a leitura.

    Segundo leio, o livro do Céline é um exercício de cinismo com estilo.
    Pensando melhor talvez o folheie. Para ver se gosto do estilo.

    Isot tudo para dizer que o que o Céline diz da América, de há oitenta anos, interessa-me muito pouco.
    A ideia geral de adoração ao dólar é também um mito, porque é simplista e a sociedade não se organiza ou se explica de modo simplista.
    Basta ler o blog A formiga de Langton para começar a duvidar dessa ideia e a perceber que a complexidade é a matriz da vida e da organização social.

    O dólar é o rublo, é a libra, é o yen, é o euro. O dinheiro e a sua acumulação não é apanágio dos americanos. Os tipos comseguiram, porém , aperfeiçoar sistemas de acumulação e de reutilização do dinheiro. O dinheiro não se come...

    Ainda por outro lado, conviria, se entrares por essa via, saberes a quem pertencem efectivamente as grandes corporações que se dedicam a acumular dinheiro e outros Assets. Quem são os Rockfellers; os maiores accionistas da Microsoft; da Exxon e da Texaco; da Enron falida e da Halliburton, por exemplo.
    Importa também descobrir quem financia verdadeiramente as aventuras americanas. Vais desembocar num grupo de pessoas que foi execrado exactamente por isso mesmo: os judeus! E aí, perigosamente, se execras os americanos, vais por uma lógica de raciocínio, encostar e acantonar os judeus num gueto.
    Eu não vou por aí, porque ainda não cheguei a essa conclusão, apesar de várias teorias de conspiração.

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  2. O melhor mesmo é ires ler o Céline, ó josé. Lê a "Viagem".
    Primeiro, porque é efectivamente o livro mais bem escrito do século XX. Segundo, porque é mais sincero que cínico. Mas isto só podemos discutir depois de leres. Garanto-te que não perdes nada com isso.
    Quanto aos judeus...Suponho que há bons e maus como em toda a parte. É certo que mesmo Iáhvé, que, dizem, os prefere, não se coíbe de os tratar mal. Têm sido muito detestados ao longo da história. Têm servido muitas vezes de bode expiatório. Suponho que têm uma elite farisaica que não deve ser flor que se cheire. Convém, todavia, chamar os bois pelos nomes. Não enfiar tudo no mesmo saco. Se olharmos com atenção, não deixa até de ser surpreendente que os tresloucados do III Reich só exterminaram judeus pobres e remediados, aqueles coitados que não conseguiram fugir, cidadães vulgares como qualquer outro. Os grandes magnates, alguns deles até financiadores da guerra (claro está) souberam colocar-se em segurança (nos Estados Unidos, a maioria). E souberam tirar bons lucros da caldeirada, como é óbvio.
    Enfim, no geral, os judeus, como nunca tiveram terra (nos últimos 2000 anos) puderam dedicar-se e esmerar-se (quase diria geneticamente) em outras actividades, como comerciais e financeiras. É natural que as dominem com mais facilidades que outros povos.

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  3. josé, leia a Viagem!!! é uma obra genial. Mas tem razão, o que conta é o estilo, a música, como ele lhe chamava. De resto o Dragão foi buscar esta passagem mas eu podia ir buscar outra que até a contradiz um pouco. E isso é acessório. Ele é um enorme iconoclasta. Se fossemos a pegar à letra, em termos políticos, o que dizia era uma trampa. Uma grande trampa que o niilismo dele face à pátria era pior que o do VPV. Tão mauzinho que até lhe dava para mandar "boutades" tipo, o azar foi correrem com os alemães quando para cá vieram porque ainda eram os únicos a darem crédito à França. E depois, o papão dele nem eram os EUA, isso é uma caricatura do burguês interesseiro que ele faz em todo o livro, o papão era o perigo amarelo. Isso é que ele dizia nas entrevistas.
    Claro que na altura era miúda e o tom e a iconoclastia caíam bem. Hoje prefiro apenas o Céline genial escritor. Genial e terapeuta, que se há obra que dê um forte murro no estômaga a todo o tipo de auto-indulgência é a Viagem.
    Leia que é daquelas que se dão a ler à prole quando chegam à idade ";O)

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  4. a única mulher que ele poupa na Viagem é a americana. A americana que acredita no talento e não corta as asas a ninguém. A americana (a comerciante burguesa) que também não fica à espera do regresso do amado. Uma anti-penélope em toda a majestade do seu pragmatismo.
    ";O))

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  6. Cara Zazie, eu vou buscar mais passagens. Muitas mais. As que forem precisas.
    E não é bonito a menina colocar-se assim numa tribuna, de martelo na mão, a julgar com essa severidade o bom do Céline, que pagou, bem pago, durante a vida, o desassombro das suas opiniões. As nossas opiniões sobre as opiniões do Céline, de resto, serão sempre duvidosas.

    À parte disto, há uma questão que me esqueci de te colocar ontem: que sabes tu da Vila Berta?... :0=

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  7. não é bonito o quê? não é bonito o Céline ser para mim um genial escritor e a Viagem um dos grandes livros que leio e releio?
    Não é bonito o quê? acaso sou eu que lhe chamo nazi como toda a gente faz e até têm pudor em o ler por isso? acaso disse alguma mentira que as opiniões po´líticas dele são o que menos interessa e que rendeu um tanto de culto aos alemães só para chatear os franciús? temos vacas sagradas, meu caro? eu sei separar a arte da pessoa e no caso do Céline até gosto e admiro a pessoa tanto como a arte!
    entendidos? mas não vou agora seguir as opinões políticas através de boutades e entrevistas em que o que lhe interessava era destilar ódio por tudo o que mexia. E o perigo dos chinocas é verdade. Era também uma mania que tinha. Ainda me lembro de entrevistas de cor, que diabos, que adoro o Céline!
    Mas sou medialista, entre outros motivos por esse: os artistas sã osempre menos importantes que a obra, a vantagem com a Idade Média é que não tenho de os aturar em beberetes.
    Quanto à Vila Berta, o quê? da Berta não sei nada, da vila não me importava de ter lá uma casinha ";O))

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  8. mas bota aí mais passagens da Viagem que eu adoro a Viagem e nem sei em que diabo de estante ou casa a tenho ":O))
    se me desses autorização para fazer copy paste e mandar paa a Janela então juntava-se o útil ao agradável ":O)))

    Diabo se a Viagem não é para mim uma daquelas obras que dá para separar águas. Quem não gosta que me desculpe mas diminui logo de tamanho aos meus olhos (fica assim mais perto de mim que sou um tanto minorca) ":o)))

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  9. Diabo, Zazie, é do contacto com os vapores venenosos aqui da caverna, ou está a ficar Rabelaisiana?... :0))
    Não te faças é desentendida: disséste que o homem era nihilista com a pátria -experimenta tu dar com os costados numa guerrazinha dessas como as que os burguesesinhos arranjam para ajustar mercados (tipo 1ª ou 2ª Mundiais) e vais ver se não ficas nihilista com a puta da pátria, eh-eh!... Ocorreu-me esta ideia.
    E também declamáste, que bem te ouvi, que o que interessa é o estilo, a forma... Francamente, ó Zazie...achas mesmo?
    Quanto a chamar-se nazi ao Céline é de muito mau gosto e revela normalmente uma estupidez tribal característica. Mas julgo que ele, bom iconoclasta, não se ofenderia; até daria umas boas gargalhadas. Já chamarem-lhe americano seria deveras, isso sim, insultuoso. Achincalhante! Eh-eh!... :0))

    E podes fazer copy past à vontade. Diz só que eu mando cumprimentos.
    Falei da Vila Berta, porque ainda brinquei lá quando era crianço -dragãozinho, quero eu dizer. E esta, hein?...

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  10. brincaste lá? olha só... então quase fomos vizinhos. Aquilo é lindo, não é? e de pensar que houve quem comprasse uma daquelas casinhas por 15 mil ainda aqui há pouco tempo... É a nossa New Orleans!
    Quanto ao rabelais.. ai... ai.. que eu gosto tanto do rabelais... o chato é que fica mal numa senhora mas se fosse homem era rabelaisiano até ao tutano ":O)))

    Agoro o nosso amado Céline (a chatice é sermos só nós nesta conversa que se viesse aqui um esquerdalhito já achavas que eramos nós contra eles loooooooooolll

    Vamos lá ver. Não sou eu que digo que o que conta é a música foi ele. E é esse ritmo de rajada de palavras que é genial. Por cá o Lobo Antunes bem tenta mas não consegue... eu não digo que é apenas isso porque a Viagem atinge a síntese do mundo e das ideias, consegue fazer o que só uma grande obra faz e à custa da experiência de vida. Como ele dizia, não inventava nada, viveu aquilo tudo. Como simples médico de subúrbio, sem mordomias, foi para a guerra, ficou deficiente, dizia que só escrevia para pagar a trampa do apartamento que se lhe dessem uma pensão parava logo de escrever. E foi um gajo marginalizado com o estigma do colaboracionismo. E isso não sou eu que digo. Não é valorização minha embora encontre literariamente indícios não na Viagem mas em muitos outros escritos isso esteja mais ou menos implícito.
    Depois eu disse que ele era niilista com a pátria mas não disse que não tinha razão. Esqueceste esse detalhe. Por acaso devias ter topado que não era crítica tendo em conta um certo niilismo que já me tinhas visto apoiar... mas adiante ";O)
    E quem lhe chama nazi tem muito mais crédito que eu! ehehe e até odeia a América também looooooooooolll

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