O vulgo, que é cada vez mais crivado de pseudo-informação e está cada vez mais ruidoso e estúpido, convenceu-se de que a Metafísica é uma sucata mental completamente inútil que, mais coisa menos coisa, consiste em discutir o sexo dos anjos, nas suas diversas ordens e classes: querubins, tronos e serafins.
Todavia, quando um ateu - melhor ainda, um ateísta moderníssimo - proclama que Deus não existe nem faz cá falta nenhuma -haja dinheiro e tecnologia, que o resto vem por arrasto -, está a responder a uma das perguntas basilares da Metafísica -que, recordo, são quatro: 1. O que é o Homem? 2. Donde vimos? 3. Para onde vamos? 4. Deus existe? Exactamente, e por incrível que pareça, está a responder - pela negativa, mas a responder. Por conseguinte, e apesar da sua jura de amor eterno e exclusivo a uma mera e redentora Físico-química, está a patinhar na Metafísica. E o caso é tanto mais grave e patético quanto se serve de tudo para erguer e esgrimir contra Deus, para firmar a não-existência Deste. Quer dizer, a sua metafísica resume-se, não a quatro, mas a uma única pergunta: a quarta - Deus existe? - Não; que disparate anacrónico e aberrante: Deus não existe!, proclamam a todas as horas.
Tentem inquirir-lhes pelo Homem, pela proveniência ou pela finalidade do mundo. Nada disso lhes interesssa ou minimamente os intriga ou afecta. O importante, o essencial é que Deus não exista. Crucial é que Ele não estorve. Acreditam pois, e piamente, na "Não-existência de Deus". E acreditam à maneira das crianças apavoradas com qualquer papão ou monstro emboscado nas trevas que atravessam a noite a repetir a si próprias: "os monstros não existem! O papão não existe!..." Eles, porém, não só atravessam as noites como passam os dias. E não apenas o repetem mentalmente a si próprios, ou martelam obsessivamente a quem quer que encontrem, como o escrevem por toda a parte. Aposto que até nas toalhas e guardanapos dos restaurantes, concluído o repasto, lá deixam garatujado: "Deus não existe!" Já não falando nas paredes dos sanitários ou nos blogues que criam para o efeito, passe a redundância. É uma espécie de religião automática, este ateísmo monocórdico.
No entanto, a bem da verdade, convém precisar que a metafísica ateísta -chamemos-lhe parafísica - não é apenas uma mutilação e uma miniaturização utilitária da metafísica ocidental. De facto, mais do que reduzi-la a uma única pergunta, eles convertem-na numa única resposta. Se ao longo de milénios se pesquisaram e entreteceram "provas da existência de Deus" era porque, por um lado, existia a pergunta e, por outro, existindo essa pergunta, existia a dúvida própria do mortal. Ora, nos antípodas disso, a afirmação da não-existência de Deus destes religiosos modernos é peremptória, definitiva, axiomática. Não responde nem duvida em tempo ou modo algum: decreta. Sendo automática, é igualmente uma Fé de burocratas, aliás, mais que Fé: uma fézada. Nitidamente, constata-se que ambiciona o império absoluto duma qualquer Repartição Geral das Crenças donde, após publicação em Diário da República, se obrigará, com força policial, à ilegalização de Deus e, no mínimo, ao internamento compulsivo para desintoxicação dos infractores. Quando, há dias atrás, o Governo Chinês proibiu o Buda de reencarnar, surpreendemos em pleno acto uma eclosão exuberante dessa mesma mentalidade peregrina - epifania mirabolante, essa, que deve ter enchido de volúpia onírica e projecções equiláteras os ateístas cá da paróquia. "O chamado Buda existente reencarnado é ilegal e inválido sem a aprovação governamental", decreta o Partido Comunista Chinês. Isto não é apenas hilariante: é sinistro. E não é apenas património folclórico dum país despótico ou duma cultura longínqua: entre nós porfia-se e avança-se, a passos visíveis, para uma uniformização forçada e burocrática de idêntico jaez tecnoeficiente; uma universão em que os cidadãos são degradados a meros porta-modas -sendo estas, todas elas (económicas, políticas, científicas, jurídicas e morais), obrigatoriamente compactadas numa única religião laica, monototemística, rigorosa e exclusivista. Creem, os seus apóstolos frenéticos, que através duma hábil manipulação - onde a alquimia do voto enxertada na cabalística mercantileira operará milagres -, a Opinião Pública poderá ser contrafeita em Religião Pública. Já que Deus não morre, ilegalize-se. Já que teima em persistir, proiba-se. A limite, encarcere-se. Por conspiração e contumácia.
Ninguém se surpreenda se um dia destes a parafísica for objecto de referendo.
Há toda uma nova religião de ímpetos proselitistas e globais em marcha. Só se pode espantar com o carácter cada vez mais opressivo de nova-catequese que infecta os sistemas educativos ocidentais quem ainda não percebeu isso. Estes ateístas são apenas uma das suas tropas de choque - uma espécie de novos dominicanos espontâneos. Deus criou o mundo, mas é a eles que compete corrigi-lo.
E preparemo-nos: Moral e Religião devirá, a breve trecho, disciplina nuclear nos diversos ciclos do Ensino. A única, aliás.
PS: Daqui nasceu aquela fórmula pública que, entretanto, deveio apócrifa, do "ateu - aquele que acredita piamente na não-existência de Deus". Tenho muitos filhos desses. É um pouco como as anedotas: às tantas, todas são de geração espontânea. E assim é que deve ser.