Eu prevarico, tu prevaricas, ele prevarica; nós prevaricamos, vós prevaricais, eles prevaricam.
É, meus amigos, o presente do indicativo do verbo prevaricar. Que, na realidade, não existe na sua plenitude. Quer dizer, na sua conjugação actual é: eu não prevarico, tu não prevaricas, nós não prevaricamos. Só quem prevarica é ele, ou eles. E o pretérito perfeito é a mesma coisa. E então do Futuro é melhor nem falar. Temos assim um verbo coartado e amputado de grande parte da sua dinâmica e faculdade. E lá voltamos nós àquilo que ainda há bem pouco escalpelizei: o acesso universal à corrupção.
Quem tem acesso ao verbo prevaricar? Apenas alguns: uma pseudo elite (na verdade, uma escumalha mascarada de elite, que oscila entre o PS (sem D) e o PS (com D)). E isso quanto a mim é uma injustiça desarvorada e não me hei-de calar. Se no princípio era o verbo, já diz o estimado apóstolo, então é porque o verbo é algo de importante. Que o verbo sirva apenas a alguns é o contrário da lógica de Deus, só para citar um dos suportes da civilização. E, ainda por cima, Aquele que aufere de direitos de Autor na matéria. Pois, mas agora, no meio do sarrabulho, já não é o verbo: é apenas uma fracção da verbosidade inflamada; e só para uma seita bicéfala de parasitas abivacados ao erário público que dela aufere e a ela tem acesso.
Dou-me até ao trabalho de etimologar e eruditar sobre o assunto. É sabido que no latim tem vários significados congéneres - entre conivência do juiz, traição dos interesses do cliente pelo advogado, incumprimento dos deveres, mas, no fundo, tudo radicando num originário "desviar-se da rectidão, ao lavrar". Porque, bem vistas as coisas "lavrar" ainda hoje se diz tanto de lavrar a terra, como de lavrar autos, ou actas, ou, enfim, palavras. Já referia Plínio (salvo erro, o Jovem), que prevaricava o agricultor que não se inclinava, em pressão, sobre o timão do arado. Com isso queria ele significar que fazia os sulcos tortos. Lavrava, digamos assim, com leviandade e ligeireza. Prevaricar, pressupõe, portanto, uma má acção, no mínimo negligente, preguiçosa; ou, no pior dos casos, vil e corrupta. Prevaricar é "lavrar mal". Todavia, haverá, ainda assim, quem, "bem prevarique" - entenda-se, quem prevarique em segredo e impunemente? Julgo que sim, e reforça-mo o povo: bem prevarica... quem não é apanhado. Ara, lavra, enfim, escreve tortuosa e retorcidamente, mas fá-lo com tinta invisível... indetectável. O que nos transporta, de supetão, para duas classes de prevaricadores: os que não devem e os que podem. Os que não devem, alguns são apanhados. Os que podem, prevaricam como lhes apetece e a impunidade autoriza, mas, por definição e paradoxo ortodoxo, nunca prevaricam. Donde retiramos outra bela ilacção: quem prevarica sempre nunca prevarica, pelo que nunca pode ser apanhado; quem prevarica às vezes, pode ser incriminado (muitas vezes de acordo com a conveniência daqueles que sempre prevaricam, nunca prevaricando). Estou a ser claro? Como água das fontes ou dos regatos infestados de trutas.
E nós, aqueles que nem ocasionalmente nem permanentemente podemos prevaricar... Qual é o papel que nos resta?
A grosso da manada rói-se de inveja dos que nunca prevaricam que se veja, mas, na realidade, prevaricam à força toda. Imaginam esquemas, ardis e expedientes de modo a emulá-los de alguma forma, feição ou maneira. O menos original dos quais consiste em despejar a prole nas universidades de modo a ver se, por osmose delirante, ela adquire o jeito, alvará ou salvo-conduto. Mas a coisa, de sabido e comprovado, não é fácil; e em tudo equipara à chusma de espermatozoides ao assalto do óvulo. Outros, podem servir de testemunhas, escrivães ou até cata-pentelhices (porém, como arguido, nem em sonhos. Ao pé disto, as castas indianas são um festival de Woodstock). E como juiz, ainda menos. Se tanto, como júri avulso, informal e sociocastrado. Ou, vá lá, turba assistente num linchamento mediático. Portanto, tudo somado, aferroa-se-nos a sensação excruciante de que vivemos um regime criptofacínora que faz parecer a pior fase do feudalismo francês uma utopia da Disney. Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Sim, sim... Quando toca a prevaricar, a liberdade é só para alguns, que a açambarcam toda! A igualdade, era o viste-a! Sim, passou aqui, mas ia a correr para servir de capacho, babete e palito ao mesmos da liberdade. E finalmente, quanto à Fraternidade, o último que a mencionou a sério, penduraram-no numa cruz. Depois de o cobrirem de escarros, chicotadas e espinhos. Para lá continua, ao fim destes anos todos. Mas eu teimo em celebrar-lhe o aniversário, todos os anos, por esta altura. Com presépio e tudo. Acho que é a criança que resiste e persiste em mim. A eterna esperança que nunca morre nem me deixa morrer.
PS: Reparem bem que o timão (ou temão), a peça leme com pega de madeira, foi do arado antes de ser do navio. É essa a fundação e hierarquia da palavra. Por outro lado, e em sentido figurado, por analogia, o timoneiro é também o piloto de um povo. O governo devia, em tese, apegar-se com firmeza ao leme da nação. O problema é quem nem há governo, nem leme, nem nação: o governo abdicou de governar, a nação abdicou de ser nação, o leme voga ao abandono, uma vez que o timão gira ao sabor das luas, correntes e marés. Donde é fácil extrair a seguinte conclusão: falta-nos, enquanto projecto colectivo, um timoneiro, alguém que lavre a direito (ao contrário do pseudo-estado de direito, que nasceu torto e jamais se endireita). Alguém alfabetizado em civilização, ou seja, alguém que saiba ler e escrever na terra. Com letra aprumada e não gatafunhos pueris. Aramos e navegamos, e palramos sobretudo, hoje, sem rumo. De cabeça no ar e o vento dentro dela, quando não a ventosidade estrepitosa. Vagamos, como o barquito do judeu na barca do Inferno (do grande Gil), à toa, ou seja, rebocados a cordel por uma europa decrépita em corrida vertiginosa ao abismo.
Sem rumo e sem aprumo.