«As funções duplas do padre, o qual é simultaneamente "inspector das coisas vagas" e médico das almas, foram distribuídas no mundo moderno sem padres e são exercidas não por uma classe de homens mas por muitas. Na sua qualidade de administrador de sacramentos e intérprete do mistério circundante, o padre é representado agora, bastante inadequadamente, pelo artista. A extraordinária e bastante desproporcionada importância atribuída pelo mundo contemporâneo aos artistas como tais, sem olhar ao seu mérito, é devida ao facto de o artista ser o evocador daqueles estados emocionais que são o divino. É verdade que o deus que evoca é muitas vezes um deus de paupérrima qualidade. Considere-se, por exemplo, a deidade implícita na novela de maior venda ou a balada popular. Contudo, para aqueles que são constituídos de maneira que sejam capazes de gostar dessa espécie de deus, essa é a espécie de deus de que eles irão gostar. Há uma hierarquia tanto entre os deuses como entre os homens. Aqueles cujo lugar na hierarquia humana é inferior, adoram deuses cujo lugar na hierarquia corresponde à deles. Os padres-artistas que evocam deuses inferiores para adoradores inferiores são eles próprios inferiores. Todavia, seja qual for a qualidade do deus evocado, o acto do artista é sempre sacramental. Ele produz genuinamente um deus de qualquer espécie. Daí a sua importância no mundo moderno. O seu nome está escrito em letra grande nas páginas do Who's Who; os anfitriãos condidam-no para jantar; os escritores tagarelas relatam os seus feitos na imprensa; correspondentes desconhecidos escrevem-lhe acerca das suas almas e pedem-lhe um exemplar da sua fotografia; as raparigas estão dispostas de antemão a apaixonarem-se por ele. Para o artista que goza desta espécie de celebridade, o mundo moderno deve ser um verdadeiro paraíso.
O padre é um confessor, assim como um intérprete de mistérios. O artista pode encontrar meio de desempenhar as suas funções sacramentais, mas falta-lhe a espécie de treino e saber que torna um homem apto a ser um director de consciência. Foi ao advogado e ao médico que o padre legou esta parte dos seus deveres. O médico, e principalmente o especialista dos nervos, ocupa uma posição extraordinária no nosso mundo. O seu prestígio foi sempre elevado, mesmo durante aqueles períodos em que as doenças do espírito eram tidas como estando fora da sua jurisdição. Agora que o exorcista está extinto e o confessor é uma raridade, agora que a psicoterapia se proclama ela mesmo uma ciência e uma arte regular, o prestígio do médico duplicou. A sua posição no mundo moderno é quase a do curandeiro entre os primitivos.
Com o declínio do poder sacerdotal a importância do advogado também aumentou. O advogado da família assume responsabilidade vicarial pelos actos dos seus clientes. Ele é o recipiente dos seus segredos mais íntimos; ele dá-lhes não simplesmente conselho legal mas até moral. Os sacerdotes podem desaparecer; mas o número de pessoas que não gostam de responder pelas suas próprias acções, que se esquivam a tomar decisões e desejam ser conduzidos, não diminui. O director de consciência surgiu como resposta a uma genuína necessidade humana. O médico e o advogado preenchem entre eles o seu lugar vago.»
- Aldous Huxley, "Sobre a Democracia e outros estudos"
Realmente, o sr. Huxley, de parvo e mentecapto não tinha nada. É um facto que a nossa época, mais ainda do que qualquer outra, assiste a um proliferar de sucedâneos e imitações de padre. Corrijo, não apenas de padre, mas também de reverendo evangélico e pastor de seita. E, sobretudo, de padrecas. O padreca é uma mistura, assaz espaventosa, de sacristão e beato assanhado. Os novos padrecas? Acima de todos, o jornalista (que já não é apenas o "escritor tagarela", como retrata Huxley; ascendeu a cónego-alcoviteiro, de guarda ao templo-bordel e ao altar da ortodoxia da treta). E que dizer do ambientalista? É a testemunha de Jeová postiça e reciclada. Todavia, sendo tudo isto muito justo, óbvio e interessante, há um mistério que, sobretodos, me intriga. Se abunda, em regime de autêntica praga bíblica, toda uma chusma de faz-de-padres, já os ex-padres, quer dizer, os padres genuínos, em vias de extinção, ou sejam, os padres da Igreja... fazem de quê? Pode parecer uma interrogação malévola. Mas não é. Não pratico, mas respeito. A religião, entenda-se. E a prova de que a minha pergunta faz todo o sentido reside no actual Padre-em-chefe. O Papa F., pois. Faz de quê?... Alguém me consegue explicar?
Caro Dragão
ResponderEliminarQual é o título original da obra? Estou à procura do original em inglês, mas na Wikipedia não há qualquer referência a tal obra, pelo menos fazendo uma tradução «directa» do título. Grato.
Boas pedaladas.
Há 500 anos os merceeiros finalmente adquiriram meios publicitários adequados.
ResponderEliminarDe fininho instituíram uma nova religião, a do Progresso Histórico, que prometia aos fiéis uma cornucópia imparável de milagres e uma constante melhoria do "nível de vida".
E em geral as promessas foram sendo cumpridas, com as maravilhas aparecendo a intervalos regulares, havendo apenas alguns grandes massacres gerais - sobretudo devidos a excesso de confiança na instauração de paraísos na terra.
O Papa faz o mesmo que fez em 500 d.C o Pontifex Maximus do Collegium Pontificum de Roma, encarregado do culto de Júpiter, etc. Não sei o que foi, mas decerto é o mesmo.
Caro Iletrado,
ResponderEliminarEstou a transcrever da edição Portuguesa dos "Livros do Brasil". A tradução deixa um bocado a desejar, mais até ao nível do português, mas não ando com tempo para grandes esquisitices. Não obstante, chega a arrepiar. A obra no original intitula-se "Proper studies".
As pedaladas não poderiam ir melhor. :O)
O Papa F., pois. Faz de quê?... Alguém me consegue explicar?
ResponderEliminarSerafim Saudade!
Serafim, Serafim Saudade
Aqui estou e, na verdade
Sei que sou o que sonhei
Serafim, Serafim, sou eu
Trago comigo o que é meu
Este nome que criei
Serafim, Serafim aos molhos
A saudade nos meus olhos
Em mil lágrimas de prata
Serafim, Serafim artista da rádio
Tv disco e da cassete pirata
Serafim é o meu nome
Já passei fome, já passei fome
Suportei torpes ofensas
Tive doenças, tive doenças
Dava um livro a minha história
Mais inglória, mais inglória
Numa estrada de amargura
A minha vida é uma aventura
Muito honesta e meritória
O meu pai fugiu de casa
Com um grão na asa
Com um grão na asa
Minha ficou demente
Foi da aguardente, foi da aguardente
Fui viver com uma tia
Que me batia, que me batia
E ainda novo andei nas obras
Entre lagartos e cobras
Trabalhando como um cão
E nos momentos de cansaço
Afinava no bagaço
E cantava esta canção
Serafim, Serafim Saudade
Aqui estou e, na verdade
Sei que sou o que sonhei
Serafim, Serafim, sou eu
Trago comigo o que é meu
Este nome que criei
Serafim, Serafim aos molhos
A saudade nos meus olhos
Em mil lágrimas de prata
Serafim, Serafim artista da rádio
Tv disco e da cassete pirata
Serafim, Serafim Saudade
Aqui estou e, na verdade
Sei que sou o que sonhei
Serafim, Serafim, sou eu
Trago comigo o que é meu
Este nome que criei
Serafim, Serafim aos molhos
A saudade nos meus olhos
Em mil lágrimas de prata
Serafim, Serafim artista da rádio
Tv disco e da cassete pirata
É um Papa, pimba!
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=PvDEOtGEcLI
aqui tem o proper studies em inglês , free ::)
ResponderEliminarhttps://s3.us-west-1.wasabisys.com/luminist/EB/H/Huxley%20-%20Proper%20Studies.pdf
Santa Marina!... :O)
ResponderEliminarCaros Dragão e Marina
ResponderEliminarGrato pela ajuda. De facto, pelo título em português jamais encontraria o dito cujo. É espantoso como os tradutores conseguem adulterar os títulos das obras. Não compreendo como os tradutores não percebem que o título faz parte da obra e enforma a dita. Será que os ingleses também traduzem «Os Lusíadas» por «The astonishing voyage of Vasco da Gama fleet»? Ou, quem sabe, um outro mais afoito sugira o título de «The Bawdy Island prize». Deplorável.
Boas pedaladas.