domingo, dezembro 31, 2006

Então um Bom Réveillon a todos!...

E que o 2007 seja melhor que o 2006, para a Humanidade em geral.

Santa Barbárie

«Saddam foi enforcado», dizem eles.

Moral provisória da história:
Dos muitos esquadrões da morte com que a "democratização ao domicílio" infestou o Iraque, há um, sobremaneira vil, que recebeu o pomposo título de Supremo Tribunal do Iraque.

Com certeza que Saddam Hussein não foi executado por mandar matar ou bombardear pessoas. Isso, claramente, nos dias de hoje, não constitui crime. Aliás, quando praticado pelos vencedores, alguma vez constituiu?

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Em legítima mesa

Na BBC News:
«Iran is home to the largest number of Jews anywhere in the Middle East outside Israel. »

«About 25,000 Jews live in Iran and most are determined to remain no matter what the pressures - as proud of their Iranian culture as of their Jewish roots».

«"Because of our long history here we are tolerated," says Jewish community leader Unees Hammami, who organised the prayers.
He says the father of Iran's revolution, Imam Khomeini, recognised Jews as a religious minority that should be protected.
As a result Jews have one representative in the Iranian parliament. »


Mas, afinal, que raio de nazis são os gajos? Têm eleições (que até perdem), não chateiam os judeus domésticos, não invadem países...Mas será que não conhecem o protocolo?...
Enfim, o mais cínico e despudorado deste nosso manicómio a boiar no espaço já nem é o lobo mascarar-se, para as refeições, em invariável pele de cordeiro; não, o mais infame mesmo é enfarpelar os cordeiros que lhe despertam os aleives na mais genuína pele de lobo. Janta sempre em legítima defesa. Ou melhor será dizer, em "legítima mesa".

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Duas balizas para o Novo-Ano

Segundo o Financial Times:
«The US dollar bill’s standing as the world’s favourite form of cash is being usurped by the five-year-old euro.»

E outro artigo que já aqui recomendei (acho eu), mas vale sempre a pena reler:
«A nation-state taxes its own citizens, while an empire taxes other nation-states. The history of empires, from Greek and Roman, to Ottoman and British, teaches that the economic foundation of every single empire is the taxation of other nations.»

quarta-feira, dezembro 27, 2006

A Pedo-Inquisição

Um aluno dum infantário nos Estados Unidos, foi este mês acusado de assédio sexual a uma colega, na Lincolnshire Elementary School.
Segundo um documento - nota de culpa, presumo - entregue pela escola ao pai do meliante infantil, este, um lascivo catraio de 5 anos, terá beliscado o traseiro duma coleguinha.
Episódio isolado, aberrante e bizarro? Exagero pontual de educadores desequilibrados, senão mesmo psicopatas?
Tirem daí o sentido. Em Novembro, os administradores duma escola no Texas suspenderam uma aluna de 4 anos por esta ter tocado desapropriadamente uma auxiliar educativa. A petiz terá, vejam lá bem, abraçado a senhora. Também durante o ano lectivo de 2005/2006, no Maryland, 28 crianças de infantários foram suspensas por ofensas sexuais. Por conseguinte, meus amigos, não se trata dum caso anómalo. Antes pelo contrário, é toda uma nova tendência do Melhor dos Mundos. De pequenino se policia o pepino. Mais uns anitos e ninguém duvide: temo-la aí entre nós, à bela tendência, já meio requentada, como sempre, mas ainda toda pimpona. Americanos de imitação, aspirando a novos upgrades na disquete operativa, é o que por aí menos falta.
Duas notas:
a) Num tempo em que os adultos se distinguem cada vez menos dos infantis, parece lógico que as crianças comecem a ser responsabilizadas como adultos.
b) Se o infantil foi alvo de severo processo inquisitorial por beliscar o traseiro da pequerrucha, imagino o que não lhe farão se o apanharem a fumar um cigarrito!... E se lhe dá para questionar o Holocausto no recreio, então, meu Deus, nem quero pensar.

terça-feira, dezembro 26, 2006

Saparmurat I, o Magnífico

Para reabertura oficial das hostilidades, a notícia mais triste da quadra natalícia:
«Morreu o presidente do Turcomenistão Saparmurat Niyazov.»

Primeiro, onde fica isso do Turcomenistão?

Pois bem, à saída leste da Turquia, seguindo em frente, passando o Mar Cáspio (caso os Iranianos o permitam, naturalmente), vira-se à esquerda e aí têm o Turcomenistão. Detalhes mais relevantes, desta terra outrora abençoada e agora triste, na geopolítica actual: faz fronteira com o nordeste do Irão e o noroeste do Afeganistão. Além disso, confina a oeste com o Mar Cáspio e possui uma das maiores reservas de gás natural do mundo.
Quanto a Niyazov, o mínimo que podemos dizer dele é que não era um ditador excitante, daqueles que catalisam a opinorreia ocidental, como Pinochet ou Fidel, entre outros. Estranhamente, não suscitava os fornicoques da imprensa escrita e, por arrasto oxíurico, dos blogadeiros destros, sinistros ou assim-assim. Por incrível que pareça, ninguém parecia desejar avidamente a sua morte, nem ninguém parece deplorá-la agora todo indignado e enxofradinho, por a mesma, entre outras preciosas alegações, constituir uma subtracção inqualificável às prerrogativas dos areópagos. Em resumo, não atraía hienas nem entusiamava chacais.
E no entanto, protagonizava uma das ditaduras mais catitas à flor do planeta, o Saparmurat turcomeno. Tirano mais encantador é difícil. A começar pelo facto sempre louvável de, desde 1999, com a solenidade devida, se ter auto-proclamado presidente vitalício e pai da pátria (Turkmenbachi, no idioma local). Aqui chegados, não esqueçam onde vamos, porque é forçoso que entreabra um parêntesis:
De resto, sufocaria já aqui se não o dissesse: prefiro um presidente vitalício a um presidente mortalício, ou, o que ainda é pior, um presidente hortalício. Como dizia o meu deseducador Nietzsche, "antes um mau sentido, que sentido nenhum". Ou por outras palavras, e transpondo na geografia, antes um Saparmurat Niyazov que um Jorge Sampaio. Com um presidente vitalício a gente entende-se: sabe quem ele é, sabe quem responsabilizar, sabe de quem dizer mal (ou bem) e contra quem conspirar, resistir ou armar revoluções. Com um presidente mortalício, como o que temos agora, ou hortalício, como o que acabámos de ter, a malta não sabe quem raio manda nisto afinal. Não sabe, nem sonha. Quando muito, sabemos quem mama; mas quem manda é que não. Por mim, suspeito da Coca-Cola e isso não me deixa lá muito tranquilo.
Por outro lado, o presidente vitalício, tanto quanto reprimir, estimula. E, pormenor nada despiciendo, ao concentrar em si as prerrogativas açambarcadoras e cleptofóricas, obsta a que toda uma marabunta desenfreada infeste à rédea solta e devaste sem dó nem remissão. Se compararmos o deita-a-unha actual, cá no rincão pátrio, com o do tempo do António Salazar, constatamos que exercem os mesmos daquela época (as tais "duzentas famílias" perenes) acrescentadas duma chusma de pilha-erários por via dos trampolins partidogénicos.
Mas voltemos ao Saparmurat inefabilíssimo (o que Portugal não lucraria com um presidente destes!...)
Falar nele resume-se a enumerar-lhe as extravagâncias - que coincidem exactamente com as virtudes:
1. Mandou construir um zoológico no deserto Karacoum, local aprazível dado a temperaturas da ordem dos 40 graus (positivos, naturalmente). Uma das principais funções deste éden artificial era a de, graças ao palácio de gelo com que estava argutamente equipado, tornar-se um santuário de asilo para todos os pinguins perseguidos do planeta;
2. Mandou substituir os nomes das ruas de Achkhabad, capital do Turquemenistão, por números. (Suponho que se desse o seu nome a todas elas, como o povo reclamava, criaria uma certa confusão nos correios e não só);
3. Proibiu os jovens de usarem cabelos grandes, bigodes, barbas, ou qualquer manifestação externa de hirsutismo beatnick;
4. Extinguiu o ballet no Turquemenistão, argumentando implacavelmente: "Não entendo o ballet. Para que serve? É impossível fazer os turcomenos amarem o ballet se eles não gostam dele.";
5. Por ocasião duma maratona de 36 quilómetros em prol da saúde, obrigou todos os ministros a participarem nela;
6. Declarou fora da lei todas as doenças infecto contagiosas, incluindo a Sida e a cólera, e proibiu até que se mencionasse o ignóbil nome das ditas;
7. Mudou, por decreto presidencial, o nome de alguns meses no calendário: Janeiro tem agora o seu nome; Abril, o de sua augusta mãe; e Setembro o do seu sagaz livro de máximas fundamentais - o Ruhnama, ou livro das almas;
8. Condescendeu em que construíssem em sua homenagem uma estátua de ouro maciço que, através dum engenhoso mecanismo de rodízios e engrenagens, gira de modo a estar sempre virada para o sol;
9. Baniu do país os jogos de vídeo e interditou o uso de rádios em automóveis;
10. Proibiu as obturações em ouro e recomendou aos filhos/súbditos que mascassem ossos para fortalecerem a dentadura;
11. Decretou a obrigatoriedade geral na leitura e memorização do Ruhnama. Semanalmente, todos os estudantes deviam devotar um dia inteiro ao estudo da luminosa obra; e todo aquele que conseguisse ler três vezes em voz alta o livro santo ia direitinho (e merecidamente, reconheça-se) para o paraíso;
12. Imbuído de grande sabedoria, e não menor prudência, clarividência e sensatez, além de Presidente Vitalício e Pai da Pátria, Niyazov acumulava ainda os cargos de primeiro-ministro, chefe das forças armadas e líder do Partido Democrático, única formação política do país;
13. Através dum decreto fulgurante, também redefiniu -e resolveu duma vez por todas - o problema das idades do homem. Assim sendo, no Turcomenistão a infância termina aos 13 anos; a adolescência acaba aos 25; a juventude jamais poderá exceder os 37; a maturidade estende-se até aos 49. Depois, entre os 49 e os 62 situa-se a denominada idade do profeta; em seguida, até aos 73, ocorre a idade da inspiração; até aos 85 acontece a idade do ancião de barba branca; até aos 97 é a velhice; e daí em diante, para os longevos excepcionais, fica a idade de Oguz Khan (antigo chefe ancestral dos turcomenos).
Não obstante toda a constelação de virtudes e superpoderes de que estava revestido, couraçado e recheado, Saparmurat Niyazov era um homem humilde e modesto, que sofria muito com o exacerbadíssimo culto da personalidade de que era alvo no seu reino, digo, país. Já várias vezes pedira aos seus filhos, (pois um dos títulos que, justamente, ostentava era de "Pai de todos os turcomenos"), para deixarem de o elogiar tão militantemente; mas em vão. O desporto nacional do Turquemenistão era apenas um: erigir panegíricos ao seu bem amado líder. De manhã à noite, rádios, televisões, jornais e revistas do Estado (porque na Turcoménia, para benefício de todos, não há imprensa privada, nem independente) não se cansavam de louvar, diariamente, a sabedoria e os feitos do genial dirigente, escritor, poeta, filósofo, esteta, filantropo, etc. «Em 2003, Turkmenbachi - que na língua local significa "pai de todos os turcomenos" - anunciou um concurso entre jornalistas de televisão com o tema "Aquele que menos elogia Turkmenbachi", sublinhando o baixo trabalho dos profissionais do ecrã que "em vez de concorrerem entre eles, nada mais faziam senão copiarem-se uns aos outros". »
Não sei quem ganhou. Nem julgo que isso agora interesse.
Sei que Saparmurat Niyazov, talvez porque se tenha esquecido de banir a Morte juntamente com o ballet do seu mágico Reino, faleceu na quinta feira passada. Um dia choroso e funesto para os pinguins perseguidos de todo o Mundo.

PS: Nunca maldirei o bastante toda a corja de jornalistas que, com mesquinhez e costureirice contumazes, nos ocultaram um autocrata tão pitoresco. Se ainda não existe - fora do Turcomenistão, quero dizer - eu estou desde já disposto a fundá-lo: o Clube de Fãs Póstumos de Saparmurat Niyazov!...

PS2: E o mais trágico é que morreu com apenas 66 anos. Portanto, e segundo a sua própria e preclara lei etária, em plena "idade da Inspiração". No auge duma carreira que, no mínimo, augurava a criação de mais um lugar à mesa no Olimpo. Que perda irreparável!...

domingo, dezembro 24, 2006

Prendas de Natal - II. The Beatles, "Good Night"

Uma das mais belas músicas do Século Vinte.
Prendas de Natal - I. Glen Gould e J.S.Bach

Concerto para piano No.1 D minor BWV 1052, de J.S. Bach.
Um génio do piano interpreta um génio da música. Ambos certificam da existência de Deus.

Struthio Camelus Natalicius - Um Conto Negro de Natal

Nesse Natal decidiu fazer uma surpresa à família. A ideia surgiu-lhe repentina, extravagante, mas irresistível. A megalomania, de resto, não escolhe ocasiões: é quando menos se espera. Esse Natal é que ia ser, E foi.
Em vez do tradicional e corriqueiro peru, vingou-se e foi mais longe, à África quase:levou para casa um avestruz. Grande, adulto, altas patas, olhar maroto e brincalhão. Pantófago. Simpático até: muito mais interessante que os perus, com aquele estúpidomonco por cima do bico. Maisinteressante e maior, mais gordo. Um raio o partisse se não ia dar um banquete de arromba!...
Entrou com o bico pela trela e todoa a família se veio logo admirarmuito. A mulher recriminou-o, claro. Que era um exagero, não cabia sequer no forno, a eternidade que não levaria para assar, enfim, asmulheres... A sogra, solidária e, como todas as sogras, sempre pronta para desfeitas, corroborou com a filha: se ainda fosse um javali, vá que não vá -um javali é que era chique, nobre, delicioso -, agora um avestruz, era um bicho dos infernos, da casa do diabo! também asprimas impugnavam a ave corredora, votandonum ganso, era milenar a tradição do ganso,com molho à inglesa, então, era de comer e chorar por mais!... E até o avô veio à liça, argumentando cabrito, perante a oposição da irmã e do cunhadoobsidiados em borrego, e a defesa intransigente do peru pela restante família, com o padrinho na liderança. Apenas o tio Honoriobardo, reformado damarinha, não litigava,ponderando em voz alta, erudito e viajado, para quem o ouvisso: "Antes do mais, convém apurar ao certo se se trata efectivamente dum avestruz; é que pode dar-se o caso de ser um nandu, uma ema ou, caso ainda mais inquietante, um casuar!..." E manobrava de volta da alimária, assestando os óculos e estudando-lhe a fisisonomia.
Porém,como quase todos os governos, embora criticado pela esmagadora maioria, o avestruz viera para ficar. E fosse avestruz, nandu, ema ou casuar, era ele ou nada!, o avestruz ou a guerra civil!, garantiu o digno chefe de família, cioso das suas prerrogativas ditatoriais. Diante de tamanha firmeza, os quase-amotinados recuaram. Dispersaram murmurejantes; cada grupo de interesse, a repensar o seu lobi. E daí a pouco já os miúdos galopavam na varanda, encavalitados na ave, aspergidos pelos resmungos aleivosos da avó materna que,na sua sua qualidade de sogra do mentor do bicho,profetizava desgraças e hecatombes ante tão abrupta e cafrina rotura das santas tradições. O tio Honoriobardo, esse, acompanhava também, atentamente, as evoluções, de mão no queixo e fazendo "Hummm..."
Com o jantar chegou a canja e a unanimidade resignada quanto ao avestruz. Tinha uma belas coxas, anuíram finalmente todos, com as reservas óbvias da sogra, que as profetizava duras e salgadas, enxameadas de nervos e tendões intragáveis. Bem, mas ia ser o avestruz, o avestruz sim senhor, o avestruz todo, no dia de Natal! "Assadinho no forno, como tu bem sabes!" - Aconselhou,gulosos, à mulher.
Ao que ela negor de imediato: era doido, no forno como? Onde é que aquele monstro, aquele dinossauro com penas cabia no forno? Nem metade, nem um terço, nem nada! No forno é que não ia ser, podia ficar certo disso!...
-"Faz-se um churrasco! - propunha o cunhado e uma das primas. - NO churrasco é que é bom!"
- "Nada disso! - velava a irmã e outra prima,instigadas pela sogra. - Coze-se num caldeirão!; é a única forma: corta-se aos bocados, coze-se num caldeirão e depois grelha-se!"
-"Isso é que era bom! - berrava o avô. - Num caldeirão, nunca! fazem-se filetes, é o que vos digo! Filetes ou febras, ora essa! OH, que saudades que eu tenho das febras!... Ou então presuntos, chouriços,pastéis,enchidos à moda antiga,ides ver comoé bom!..." E, sonhador, inveterado, aproveitou para, sorrateiramente, apalpar as coxas que tinha à mão, as da viúva do primo Ildefonso por sinal, sentada incautamente a seu lado.
Ainda ruborizada, perplexa, a digna e bem fornida senhora, sem saber bem que atitude tomar, já o audaz decano, tomando por anu~encia deleitada a fugaz hesitação, digitava pela saia acima à procura dum tesouro.
As crianças, entretanto, queriam mousse e o resto da família achava que, fosse como fosse, devia acompanhar-se com batatas.
-"A murro! A murro!" - Berrava de novo o avô, abandonando momentaneamente a cada vez mais ruborizada viúva para vir esmurrar a mesa, em reforço indubitável da sua tese.
-"calma, avô!...Acalme-se, então?... - refreava-o uma das primas. - A murro, o bicho fica todo pisado."
-"As batatas, sua estúpida: refiro-me às batatas, chiça!...não é ao avestruz,porra!...Filetes de avestruz com batatas a murro, garanto-vos que é de estalo!" - barafustava o ancião, como olho direito a varar a assembleia e o esquerdp a mirar de soslaio os peitos arfantes da viúva.
Mas a sogra contrapunha arroz de manteiga, batatas nunca,e a madrinha recomendava omolete e molho de cabidela, com salada a acompanhar. A esposa do malogrado Ildefonso, essa,matutava espetadas e o tio Honoriobardo, dado a minúcias, relembrava:
-"Convém não descurar a taxinomia exacta; estabelecer espécie e variante sem margem para dúvidas. Só então se poderá estabelecer uma culinária proveitosa!"
Chegava o bacalhau, mas não chegava o consenso. De pé na cadeira, o avô arengava os seus ideais, ameaçando com greve de fome caso as seculares reivindicações não fossem atendidas, quando um restolhar na sala os alertou. Foram ver. Era o avestruz, debicando o candelabro após ter devastado a árvore de Natal.
Novas recriminações: que se fosse peru não devastava a árvore nem mutilava o candelabro, carpia a mulher. Era o que dava o desrespeito pelas tradições, e outras tragédias viriam, agoirava a sogra. Os restantes atarefavam-se de volta do presépio, à procura do Menino Jesus que desaparecera, comentando o padrinho que talvez o divino bebé se tivesse farto do mau hálito da vaca e da burra, enquanto as primas suspeitavam do rei mago preto, o cunhado olhava de esguelha dois pastores, e a sogra urrava mais que todos, acusando o avestruz de antropofagia sacra e de canibalismo hediondo na pessoa do símbolo do Natal!
Fingiu que não ouvia e foi trancá-lo na marquise. Ao avestruz, claro; já que à sogra não podia: era Natal.
As buscas, entretanto, não davam em nada. Por ingestão, fuga, rapto ou sabe-se lá que mais -o tio Honoriobardo não punha mesmo de parte a hipótese duma qualquer rede de pedofilia alienígena-, o facto é que o Menino Jesus levara sumiço. Ora, isso constituía um sério entrave à normal prossecução dos festejos da quadra. Havia pois que substitui-lo. Não é possível celebrar um aniversário sem o aniversariante.
-"Ó mãe, pomos o Toy chorão!" - propôs, excitada, uma das gémeas.
-"Não, pomos é antes o Action-baby!..." - contrapôs o primo Zézinho.
-"O Bebé-barbie, o Bebé-barbie!..." - pomoviam os restantes.
É claro que os adultos não demoraram a tomar partido. Dum lado, as primas e o cunhado, embevecidos com o Toy Chorão, a pilhas, que berrava desalmadamente e mijava fraldas a eito; do outro, o padrinho e o avô, convertidos aos dotes viris do Action-Baby, fruto dum caso amoroso entre o Action-man e a Wonder-Woman, também conhecido por Bebé-Bond, ou Bebé-Rambo, equipado com múltiplos estojos de combate e aventura; e, por fim, num terceiro baluarte, a mulher, a irmã e a madrinha, fanatizadas no filho da Barbie com o Ken, mai-las suas múltiplas toiletes e cenários.
-" Tem que ser o Bebé-Rambo, gaita! E armado com a metrelhadora G-3 e o colete anti-bala, para se defender como deve ser -quando não ainda o levam para o crucificarem outra vez!" - Clamava, não sem uma certa lógica, o avô.
-"Pois!...- Apoiava, entusiasmado, o padrinho. - E com o lança-misséis portátil, à cabeceira, não vá o diabo tecê-las!"
A ala feminina, partidária juramentada do Bebé-barbie, persignava-se e retaliava pela voz da sogra:
-"Uns bons diabos sois vós, seus sandeus! Se isso é presépio que se faça!..."
-"Valha-nos Deus! - Secundou a filha da sogra e, por tal sina, mulher dele. - Então Jesus, esse anjinho que simboliza a paz no mundo, vai estar assim nas palhinhas como se estivesse numa trincheira, armado para o massacre e fardado para a matança?!...Perdoai-lhes senhor, que não sabem o que dizem!..."
-"Irra, mas que beatas imbecis! - Ribombou o avô. -Mas nas palhinhas estava ele deitado, que nem um anjinho, e vejam o que lhe aconteceu: levaram-no para a cruz, foi o que foi! Levaram-no para o pregarem que nem uma tabuleta, chiça! Mentira?...Vá, digam!..."
-"Mas, ó avô...-Tentou conciliar o cunhado e, em simultâneo, fazer campanha pelo seu preferido. - Não acha que pôr um menino Jesus de fralda camuflada e metrelhadora em riste é um pouco excessivo?... Isto é um presépio, não é a Guiné ou o Vietname!... Olhe que ternura que é o Toy Chorão, parece mesmo um menino Jesus!..."
Porém, nesse momento, cumprindo um programa regular e pré-estabelecido, o glorificado boneco cuspiu a chucha e desatou num berreiro assanhado e controverso (as primas iniciaram de pronto um aceso debate, sustentando uma que era fome, a outra que eram gases), bem como num mictório abundante, que não poupou sobremaneira o melífluo apologeta e marido da irmã. Romperam, o avô e o padrinho, em gargalhadas tonitruantes, no que a sogra aproveitou para manobrar de esguelha e atacar de flanco:
-"Calai-vos e às vossas bandalheiras, gente blasfema, antes que um raio desça dos céus e vos refunda a todos! Tirai-vos, que já aqui vai o nosso menino, com o vestidinho de crisma e o fatinho de catequese!..."
-"Sim, -completou a filha - e no carrinho de ir ao supermercado!..."
Era verdade; o Bebé-barbie resplandecia, prontinho nos mais dignos e precoces fatos de ver a Deus, ao volante da viatura bendita.
-"Ó mãe, e não esqueças o telemóvel do bebé, com GPS e Bip sinalizador, anti-sequestro!..." Alertou uma das netas (da sogra).
-"E olha a consola on-line, com turbo scan 3D!..." - Acudiu uma outra, um ano mais nova.
Mas o avô, arreigado aos seus caprichos, desenfreado na caturrice, é que não estava pelos ajustes. Apercebendo-se da ameaça, do abrolhar da procissão, foi lesto em deslizar das gargalhadas para os urros. Munindo-se de tons melodramáticos e parábolas de empréstimo, atalhou de supetão:
-"Mas ó súcia ígnara e sem fé, até quando terei que vos aturar?! Dum lado, é um mentecapto que avança com um mija-berços; do outro, uma megera que empurra um chupa-terços!... Irra, que é dose! Mas estará escrito em algum evangelho que Jesus, mesmo criancinha, chuchava, mijava e bramia, ou desfilava na passerelle e telefonava ao Pai?! Hem?...Estou a falar chinês?... Ó Honoriobardo, tu que andas lá sempre de roda dos livros e das bibliotecas, elucida lá estas galinholas desmioladas, estas ratas de sacristia, se não é verdade isto que eu digo!..."
O tio Honoriobardo, reformado da marinha e erudito autodidata desde então, seguia atentamente a polémica com o lóbulo esquerdo, mantendo, todavia, o direito adstrito à questão mais antiga - de saber se o avestruz podia ser denominado avestruz, se ema, nandu ou casuar. Opinou pois à mais recente, sem deixar de ruminar a primogénita.
-"Bem... efectivamente, se o Jesus recém-nascido padecesse dessa incontinência proverbial a todo e qualquer bacorinho humano, bem certo seria que, em vez de ouro, incenso e mirra, os reis magos teriam comparecido com fraldas descartáveis!..."
-"Fraldas descartáveis, nem mais!...-Irrompeu o avô, reforçando o absurdo. - Fraldas descartáveis, arrastadeiras e escovilhões, estão a ver? Estão a ver a Nossa Senhora sujeita a cacas nauseabundas e repuchos sórdidos, ãh? estão bem a ver?!..."
Suspirando, dando corda à paciência, o tio Honoriobardo lá continuou...
-"...quanto a berrar, como faz o comum dos fedelhos recém-chegados a este Vale de Lágrimas (e por isso se chama ele assim), também não consta nada em auto, o que de resto a ter-se passado ocasionaria a que o malvado Herodes lhe tivesse deitado a unha, coisa que, como é sabido, não aconteceu..."
-"Ah-Ah!...O Herodes, o cabrão do Herodes! Ora aí está: repimpem-se! (que é como quem dizia:"tomem, embrulhem!") - Atravessou-se de novo o decano, para sublinhar o apontamento.
-"Ó avô, quem era o cabrão do Herodes?" - Não se conteve, ingénuo e curioso, um dos míudos.
-"Um pedófilo!...Um desses..." - Rosnou, o velho, e escarrou com desprezo na carpete, como que a purgar-se de tamanha e tão desprezível obscenidade.
-Ah..." - fez o minorcas, esclarecido; -"Francamente, papá!...", fez, por sua vez, a nora deste e mãe do anterior, correndo em busca do balde e esfregona.
-"Tecnicamente, pai, não seria pedófilo, mas pedófobo..." -Aproveitou, o tio Honoriobardo, para corrigir e retomar a palavra.
-"Pedófilo, pedófobo, pedófago, pedagogo, pedregulho, vai tudo dar ao mesmo! Caganitas! São ogres que comem criancinhas, chiça!...Avança, homem, e deixa-te de pintelhices!...Vai direito ao assunto, pôrra!" - Condensou, furiosamente, o ancião.
-"Bem...-prosseguiu, resignado, o tio Honoriobardo -, quanto à hipótese do Menino Jesus se comunicar telefonicamente com Deus Pai é certamente peregrina, mas não se sabe se bem-vinda. Pressuporia a existência dum satélite, de antenas e retransmissores, equipamentos de que não há qualquer notícia ou prova documental. Deus Pai, é sabido, não telefonava: enviava pombos ou anjos estafetas; também não carecia que lhe telefonassem, pois possuía uns ouvidos tão ubíquos e infinitos que não havia alfinete a cair que ele não ouvisse, fará certas conversas e desabafos."
-"Ora aí está! - Aplaudiu o avô, triunfante. -Ouviram bem? Que me dizem a isto, hem?! E agora fala-lhes daquela parte onde Nosso Senhor anuncia que há-de voltar e bem armado!..."
-"Com efeito. -Confirmou o erudito. - Mateus 15-30, se bem me lembro. Voltará com a espada, é garantido."
-"Pois aí tendes, ó ímpios! - Bradou, eufórico, o velhinho. -'Espada', claro está, é força de expressão. Significa arma, equipamento bélico, tira-teimas! A profecia não deixa dúvidas: Jesus há-de voltar, armado até aos dentes, passado dos carretos, para pôr esta canzoada toda a ferro e fogo! Olá se não!... Irra, que há-de ser um braseiro lindo de se ver!..." E, com um brilho sonhador e visionário a iluminar-lhe o rosto, concluiu: "Por isso, diabos me levem, se não é o Bebé-Rambo que merece ir para as palhinhas, com metralhadora e paraquedas, que se Jesus cá descesse agora bem inútil e escassa seria a espada e bem melhor lhe quadraria a bomba H e o lança-chamas! A não ser que me digam que Deus é um unhas-de-fome, um caquético esclerosado, que não quer saber do Filho para nada!..."
Tão fulgurante argumentação não colheu, todavia, o consenso esperado. O tumulto parlamentar reinstalou-se. Clamava a sogra contra o militarismo e a favor do bebé-model; gralhavam as primas contra a artificialidade e a favor do bebé chorão; ameaçava, mais alto que todos, o avô, com raides comando e heliassaltos arrazadores, na figura do Bebé-bélico (assessorado, para mais, pelo padrinho e dois netos que, em jeito de estado-maior e gabinete de crise, lhe rogavam que não esquecesse o desembarque anfíbio e a infantaria motorizada).
-"Tragam-me os bombardeiros!" -Ordenava já o ancião, em vias de perder definitivamente a tramontana e cada vez menos inclinado a democracias.
-"Isso, avô! -Gritou, entusiasmado, um dos pirralhos. -faz como o Bush!"
O desvairado estratega e cabo de guerra natalícia acusou o toque e apressou-se a desfazer equívocos:
-"Qual cabrão de Bush, qual carapuça! Merda dessa é na capela do Júlio de Matos, meu filho. Faço mas é como o Hitler, o Alexandre, o Napoleão!...Esqueçam os bombardeiros: tragam-me antes a falange grega, os panzeres, a artilharia!..."
-"Não se esqueça dos submarinos..." - Segredou-lhe o padrinho.
-"Pois! E os submarinos, carago!..."
Estava-se mesmo a um passo da terceira guerra mundial, quando ele, na sua qualidade de dono-da-casa, filho do futuro tirano, genro da sogra, afilhado do padrinho, primo das primas e outros títulos que tais, lembrou que o bacalhau estava a ficar frio e o gato Pimpão já rondava uma posta do rabo.
-"Levaram o menino Jesus para o crucificarem, e tu falas-me no bacalhau!?...Irra!!" - danou-se ainda mais, o avô.
-"Alguma rede pedófila..." -Murmurou entredentes o tio Honoriobardo - Mafias internacionais, senão mesmo transplanetárias... Rituais sado-masoquistas..."
-"Vá lá, venham prá mesa! - Aconselhou salomónico e apaziguador. - O Menino Jesus foi ao Céu e já volta. Está a testar a vossa fé. Vinde comer e vereis se, por milagre, depois do jantar, ele não aparece... Ora, quando chegar, não vai gostar nada de ver o berço usurpado... Não vai, não!"
O apelo às hostes resultou. Confundidos e envergonhados, la voltaram para o bacalhau com batatas, exceptuando o avô qu,e se não fosse pela viúva, a esta hora ainda lá estava a fortificar o berço e a guarnecer de baluartes e trincheiras os inefáveis estábulos. Todavia, a custo, rdsmungando e barafustando, lá regressou à mesa, aproveitando, à laia de desopilanço, para descarregar no fielamigoa bílis inflamada:
-"Porcaria de bacalhau! Na minha terra come-se polvo!... isto não é ceia nem é nada!... Cheguem-me daí o azeite, que jáengoli a merda doutra espinha!..."
Todos os anos era assim: se lhe davam bacalhau, reclamava polvo; se lhe apresentavam polvo, reivindicava bacalhau. Um porque tinha espinhas, outro porque lhe faltavam dentes.
Não obstante, lá se chegou à sobremesa e, com ela, voltou-se ao avestruz. O avô não desarmava com os filetes, ante o despautério das cunhadas e das primas coligados no mesmo churrasco.Para fazerema vontade ao velhinho, até porque este jábrandia a bengalaem volteios inquietantes, concordaram todos que o acompanhamento seriam batatas, esmurradas, mas quantoaos filetes nem pensar. A maioria estava com o assado na fogueira, ideia fulgurante do padrinho.
-"Pronto, está bem.Mas só se for eu a acender a fogueira! - Reconverteu-se o avô, sempre na vanguarda e estranhamente solícito. -Vocês vão ver como se acende uma fogueira!" E partiu, sem mais delongas nem garfadas, pró quintal, co os fósforos e amiudagem chilreandoà volta, na expectyativa de grandes incêndios, Romas a arder, que naquilo, como em tudo, o vô-vônão sepouparia a excessos. Além disso, ia ele arquitectando com os seus botões, enquanto jesus não voltava com o lança-chamas, avançava João Baptista com um lumaréu.
Foi realmente uma fogueira monumental, bíblica, que até os bombeiros tiveram que vir apagar a garagem.
-"Isto é como em quarente e dois, meninos!, uma fogueira aos bons velhos tempos!... - Inebriava-se o idoso Nero, ante as labaredas que lambiam já, gulosas, a casa do vizinho, o Antunes das petúnias. - Então?! e essa tenra ave, vem ou não vem?!!!"
Entre o clã reunido em conferência, depois do difícil consenso culinário, gerava-se agora controvércia quanto a sobre quem reverteria a honra súbita de esfaquear o avestruz e preparar o espeto. As primas reclamavam dos seus direitos, enquanto,sempre tradicionalistas, iam agitando o garrafão de aguardente com que procederiam aos preliminares; mas a sogra, infléxivel desmancha-prazeres, defendia a tese radical do martelo para o competente aturdimento da ave, ante a firme contestação do cunhado mais a esposa respectiva, os quais,evoluídopse revolucionários,propunham a hipnose, garantindo os resultados.
-"Conta-lhes, conta-lhes!... Contalhes como eu faço lá em casa copm as galinhas!...Infalível!... - Apregoava. - Ora, um avestruz é só uma galinha grande, maior, gigante, não custa nada!"
-"É maluco! Onde é que já se viu? Hipnotizar o bicho...francamente! ia tirar o gosto todo à carne!..." - rebatia a sogra, brandindo o martelo.
-"Olhem lá, mas trazem a alimária, ou não trazem?! daqui a pouco acaba-se o lume e o Antunes ter-se-á sacrificado para nada!" _ Rugia o avô, ládo quintal, em cima das petúnias, no meio do gáudio da criançada, que ria muito das habilidades e caretas desesperadas do vizinho, o Antunes,empoleiradona chaminé, a tentar esquivar-se às chamas da casa ardente. Voltavam os bombeiros, agora com uma grande escada, e o avô, sempre atento e voluntarioso, que a gente antiga é doutra fibra, ponderava já da combustibilidade da moderna e resplandecente viatura dos soldados da paz.
O avestruz, enquanto isso, por artes óbvias de quem comia fechaduras, esgueirava-se da marquise e, avançando no living, curiosos e atrevido, debruçou-se sobre os circuitos eléctricos, com a cabeça dentro do televisor, a debicar transistores, no meio da telenovela.
Correram a enxotá-lo, de vassouras e tachos em riste, mas tarde demais: o avestruzera duma voracidade excelente. Duma assentada, comera os canais todos, com mira técnica e tudo. Novas recriminações...
-"Anda cá ver, anda cá ver o que fez este monstro que trouxeste para casa!!!" - Ouviu a mulher a gritar-lhe.
Poisou o cachimbo e foi à sala.
-"Vê! Vê com os olhos!! - Estrilhou ela, mal o viu entrar. - Estragou a televisão e devorou a telenovela! Não te contentavas com um peru, como toda a gente... Tinh que te dar para a megalomania.Tiveste logoque trazer para casa um antropófago, um cafre, um lambaz!"
Sorriu. Começava a simpatizar deveras com o raio dobicho, de olhar calado e maroto. Chamou-o e ele acorreu, obediente. Atravessaram a cozinha e a discussão que prosseguia - entre as primas, a sogra e o cunhado -, e saíram pró quintal, sem que o avô sequer reparasse, tão entretido andava a acender o carro dos bombeiros, providencialmente absortos no salvamentento do Antunes que hesitava, choroso, em lançar-se de cima do telhado prestes a ruir. Deixou a simpática ave, presa com corrente e cadeado, junto ao cão, que rosnou desconfiado, e voltou pró cachimbo, nas pantufas. Ao menos, no escritório havia paz. Só o tio Honoriobardo, com grande mistério, de lupa em riste, dando-se ares de Sherlock Holmes, desfolhava livros e enciclopédias.
Na sala, a sogra contumaz, depois de exemplificar no cunhado, só já querelava com as primas. Estas, cada vez mais condescendentes, nas propostas e na argumentação, visivelmente sensibilizadas pelo pragmatismo da outra, cediam a olhos vistos. Não tardou mesmo que a tal, por falta de concorrência, se auto-elegesse por unanimidade e aclamação. Armada por conseguinte de martelo e faca, propôs-se, pois, sem mais demoras nem debates, ir dar andamento ao assado. No que, refira-se, quase colidia frontalmente com o avô, a entrar nesse preciso momento, aos gritos, expedindo execrações e vitupérios, a plenos pulmões, furibundo e despeitado, à procura da caçadeira. -"Estes bombeiros são uns perversos, uns maníacos, uns desalmados! Mal vêem uma fogueirinha, um lumezinho de merda, querem logo apagá-lo, os tarados! Mas eu já lhes mostro, eles já vão ver!...Eu não me chame...caralho, já nem me lembro como é que me chamo, tão indignado estou!" E enfiou pela arrecadação,a rebuscar cartuchos e armadilhas de urso. -"Que porcaria de casa esta, que balbúrdia miserável! Sempre que um gajo precisa duma armadilha de urso, nunca a encontra!..." Ouviu-se ainda ribombar.
Reacendia o cachimbo, quando irrompeu o mais pequeno, excitadíssimo:
-"Pai! Pai!...anda ver!...depressa!... É a avó, armada, vai atacar o avestruz!"
O tio Honoriobardo levantou a lupa da encicloédia e murmurou qualquer coisa como: "Avestruz, vamos lá a ver... É certo que não é um nandu, ou um casuar, mas avestruz...hum..." E mergulhou novamente, a pique, nos estudos.
O petiz, esse, não se calava: "Anda, pai! Anda lá ver! A avó quer matar o avestruz! Não deixes, pai..."
A avó do petiz não era senão a sogra dele; por issoa apressou-seair verificar ver dos acontecimentos, que da velha nada de bom seria de esperar. Para mais, não lhe agradava nada a ideia de ser a trombuda megera a pôr cobroà simpática ave. O bicho, só de lhe fitar a carantonha ínvia e mal-intencionada ainda se espavoria, em desautinada brida, de só frearnos antípodas,e lá se ia o banquete de Natal para a Austrália.
rebocado pelo garoto, largou novamente o cachimbo efoi assistirao combate - à chacina, melhor dizendo. De caminho, ajudou o cunhado -ainda zonzo com um visível hematoma na testa - a levantar-se; abriu o armárioonde esperneavam, enclausuradas, as primas com o garrafão de aguardente; e desaguou finalmente no quintal, onde se acotovelava expectante o resto da família, excepção feita ao avô, compreensivelmente, ocupadíssimo a dar uivos de guerra e tiros com a caçadeira nos bombeiros em tumultuosa -mas

Cessar-Fogo Unilateral

Por atenção especial àquele Menino cujo aniversário festejamos todos os anos por esta altura, a todas as crianças deste mundo, aos meus filhos, aos vossos, e, nunca esquecendo, à criança que resiste heroicamente dentro de nós, decidi declarar um cessar-fogo unilateral. Assim, até ao próximo dia 26 de Dezembro, não trucidarei, nem massacrarei, nem bombardearei, nem de algum modo justiciarei ou exporei aqui, neste pelourinho inexorável, qualquer fdp ou congénere.
Pronto, espantem-se, assombrem-se, arregalem-se para aí à vontade, mas é assim: este ano deu-me para a misericórdia!
Estou de tréguas.

sábado, dezembro 23, 2006

Feliz Natal a Todos!

Para todos os leitores e comentadores desta casa, com um carinho especial às senhoras, vão os meus sinceros votos de

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Um Conto de Natal



O Que é um Banco?

-Uma instituição de malefício público que se locupleta de vender às pessoas o seu (delas) próprio tempo e o seu (delas) próprio dinheiro.

Já devem ter percebido: é da usura que vos vou falar.


Diz o Código Civil, no seu artº282 (Negócios usurários): «1. É anulável, por escusa, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrém, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados.»


A usura é crime. E o Código penal, no seu artº.226, estipula-o:

«1. Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência, ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias. (...)4. – O agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias se
Fizer da usura modo de vida;
Dissimular a vantagem pecuniária ilegítima exigindo letra ou simulando contrato; ou
Provocar conscientemente, por meio da usura, a ruína patrimonial da vítima.»

Os factos:
A. Dos bancos:
Os bancos fazem da usura modo de vida;
Simulam contratos e exigem letras;
Provocam, fria e dolosamente, a ruína patrimonial das vítimas;

B. Das Vítimas dos Bancos:

1. Padecem de situação de necessidade (em grande parte dos casos, são jovens casais que doutra forma não conseguiriam acesso à habitação –direito consignado na Constituição); além disso, são desde tenra idade endrominados com a ideia de que o supérfluo é necessário. Ou melhor: tudo o que os grandes empórios e marcas oferecem é essencial. Não possuí-lo é fonte de assolapantes angústias existenciais, as únicas, de resto, admissíveis.
2. Encontram-se de psique alterada por via do bombardeamento ininterrupto de propaganda sedutora, onde os incitam e empurram a endividar-se, a qualquer preço, de todas as maneiras possíveis e imaginárias; são constantemente assediados por uma espécie de proxenetas financeiros que lhes exibem pornografia excitante e vaporizam perfumes afrodisíacos; vendem-lhes crédito como quem lhes vende heroína ou charros ao domicílio;
3. Fruto dessa intoxicação consumista, levada a cabo com a conivência e o beneplácito mais que escandalosos das autoridades, tornam-se crédito-dependentes. Zombificam, abdicam da própria liberdade e livre arbítrio, hipotecam o futuro, e entregam-se a uma servidão rastejante da dose, ou melhor dizendo: do juro. Incapazes, por clara debilidade mental, à partida, de discernirem o que verdadeiramente está em causa, atolar-se-ão cada vez mais nas areias movediças do mistifório e da vigarice, e acabarão tragados por um labirinto de cláusulas, micro-cláusulas e alçapões legais;
4. São geralmente ígnaros e ineptos em matéria financeira, ou em qualquer outra que transcenda a vida dos futebolistas, o enredo das novelas, o casamento dos príncipes, o último grito dos telemóveis e outras do mesmo jaez. Aderem infantilmente ou por compulsão osmótica às promoções irresistíveis que, em ubíqua algazarra, arautos e almocreves de todos os quadrantes proclamam. Junkies da publicidade, padecem, em fase terminal, de onerreia –isto é, de incontinência aquisitiva;
5. São comprovadamente inexperientes. Aliás, inexperientes é pouco: ingénuos, simplórios, totós, papalvos, é mais o termo. A facilidade com que desembestam atrás de qualquer ilusão, a tendência para confundir anseio com evidência, a facilidade com que se babam de roda de qualquer fábula, coloca-os praticamente num estado de completa vulnerabilidade a todo e qualquer charlatão. Mesmo parlapatões pouco mais que unicelulares não encontrarão grandes dificuldades para lhes venderem lotes em Marte ou nuvens na Austrália. Por esta altura, já compram a própria água que bebem e, adivinha-se, não tardará que paguem pelo próprio ar que respiram.
6. Referi-los como fracos de carácter é claramente um exagero. Na verdade, em termos de carácter, a definição correcta é "ausentes", ou "acaracterísticos". O carácter, em rigor, desempenha neles a mesma função que a vértebra nos moluscos. Não admira pois que, à inexperiência, se some a irresponsabilidade e se subtraia, quase de todo, a individualidade.

Concluindo:

Como é bem patente, o crime existe. É público e notório. Atenta contra a saúde mental e moral da população e mesmo contra a existência física do país. Sendo um crime público não carece de denúncia para que o Ministério Público proceda e investigue. Mais: é-lhe obrigatório fazê-lo. Então porque é que não se investiga?...
Só me ocorre uma explicação: pela mesma razão que não se procede contra a espoliação dos papalvos por parte da Igreja Universal do Reino de Deus. Ou seja, ao abrigo do pleno –e constitucionalmente sagrado - direito à Liberdade de Religião e Culto.
Afinal, não é usura: é cobrança do dízimo.


PS: Este postal foi publicado pela primeira vez em Dezembro de 2004. Desde então, o panorama da usura, em Portugal, alterou-se - piorou significativamente. Perante a ignorância mais completa do otário e a cumplicidade generosa do Estado. Quanto é que a Cofidis, por exemplo, cobra de juros por empréstimo?

Três breves infantilidades natalícias

CXVIII

Eu acredito no Pai Natal.
Acredito que as cegonhas trazem os bebés
e acredito em fadas.
Porquê?!...
Ora, eu tenho que acreditar em qualquer coisa, não?

CXIX

Os adultos do meu bairro
não acreditam no pai Natal,
Nem nas cegonhas, nem nas fadas.
E dizem que isso é tudo mentira!

Eu, como sou ingénuo, acredito em tudo
- Só não acredito nos adultos do meu bairro.

CXXX

Gosto muito de ouvir contar histórias imaginárias
Porque sei que nada
Do que nelas se narra
Aconteceu na realidade.

É por isso que ainda escuto
Os adultos do meu bairro.

terça-feira, dezembro 19, 2006

O reinado do Eremita



Acabo de saber. Segundo os oráculos do Tarot, o Ano de 2007 será regido pela carta do Eremita. Sorte a minha, azar o vosso. Não obstante, sempre vos dou à escolha:
1. Um Despotismo esclarecido;
2. Uma Monarquia absoluta;
3. Uma Autocracia heróica;
4. Uma Ditadura musical.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Da Ganza Global ao Nazismo de Conveniência

Neste momento, nos Estados Unidos, o valor da marijuana cultivada e produzida já supera o valor conjunto do milho e forragens produzidos pela agricultura "tradicional".

Finalmente, percebemos onde é que eles têm treinado para acabarem com o cultivo do ópio no Afeganistão e da cocaína na Colômbia.
De resto, já ganhou quase contornos de lei geral da física: tudo o que eles combatam, viceja e prolifera alegremente. Multiplica-se a olhos vistos. Seja a droga, seja o terrorismo, sejam as famosas ADMs. Sejam até os tiranetes. Dir-se-ia que combatem pragas com fertilizantes. Que bombardeiam com adubos e vitaminas.
O caso mais emblemático, que ainda hoje podemos testemunhar às mancheias, foi o do próprio Adolf Hitler. À primeira vista teria sido combatido e extinto, com grande aparato bélico, pelas forças Americanas e respectivos aliados Ingleses e Soviéticos. Ter-se-ia até suicidado, o vil sujeito, no bunker derradeiro, completamente desiludido com a raça ariana e o seu ragnarok frouxo. Bem, isso dizem as fábulas históricas e pensávamos nós, os papalvos avulsos. Porque vai-se a ver e não só não expirou coisa nenhuma como em cada ano desponta e revigora todo viçoso e lampeiro nas mais diversas e assombrosas latitudes: ainda mal acabaram com ele no Iraque e já germina com vigor sempiterno no Irão, na Venezuela, em Cuba, no sul do Líbano, onde calha. Os indícios de que em breve desabrolhará na Rússia são cada vez mais inquietantes. É só o tempo de Putin deixar crescer bigode. E se a China não está já em lista de espera, macacos me mordam e um raio me parta já aqui. Isto, para não falar no próprio ditador paquistanês, que, a qualquer momento, por alter-recreação, pode experimentar a hedionda metamorfose. E cá temos nós a tal lei geral: combatido pelos Americanos, Hitler em vez de se apagar, como convinha e a justiça recomendava, propagou-se. Reproduziu-se à velocidade do acanto. Do modelo original de 1945, brotaram e brotam não sei quantos pimpolhos por década. Tudo, invariavelmente, com o patrocínio e subsídio prévio americano. E o mais grave até nem é isso: o mais arrepiante é que, da ideologia, o feroz e descabelado déspota, parece ter deslizado para o marketing. Patenteado e reembalado, não só não desapareceu do mapa como foi habilmente reciclado em produto de exportação. Juntamente com a panaceia da democracia worldwide - e geralmente como seu agente viral requisitante - a plutocracia americanóide passou a exportar também os Hitleres em kit - os "Fuhrers" de conveniência, em supositório ou pretexto, mas sempre embrulhados em papel de jornal, atado a moralzinha descartável e selado com o cuspo pródigo de rameiras angélicas e pensadores da Loja dos trezentos.
E se Hitler pulula e é vedeta de franquias e franchisings, o nazismo e os nazis medram com exuberância não menos luxuriante. Julgávamos que tinham acabado definitivamente com eles. Que o processo de desnazificação da Alemanha, como tão ufanamente celebrado, tinha sido um sucesso; que, com brutalidade exemplar, uns genociodiozinhos eloquentes, tortura qb e o chantilly do Plano Marshal por cima disso tudo, essa desinfestação tinha sido consumado duma vez por todas. Como a salga de Cartago ou a vulcanização de Pompeia. Mera ilusão nossa. Amarga fantasia. Afinal, tão pouco a Alemanha viu debelada a epidemia, como, em cada dia que passa, o mundo fervilha e rebenta pelas costuras de nazis e nazismos a cada esquina, cada qual mais virulento que o anterior e todos eles unânimes no mesmo projecto sinistro: exterminar o casto e imaculado judeu. Concluindo assim, em apoteose e com juros, o holocausto inacabado. Nada mais lhes interessa nem os ocupa. Apenas essa obsessão herdada do arquétipo austríaco, o qual, por seu turno, nenhum outra conquista ambicionara na vida.
Outro belo resultado das campanhas americanas: a terrífica gangrena antes confinada à Alemanha, agora transbordou aos quatro cantos do planeta, com especial gravidade nas regiões ricas em petróleo ou valor estratégico. Em vez de sumir-se, o Nacional-Socialismo internacionalizou-se. Em vez dum uso exclusivo a arianos, pertence agora à categoria das ferramentas multi-usos. Poli-grupos. A cada minuto, nos locais mais insuspeitos, de dentro das pessoas e raças mais improváveis, irrompem novos nazis, SSs em ponto de rebuçado, SAs aos molhos. Eruem, desabrocham, cogumelejam. Na atmosfera, na zoosfera, na blogosfera, em toda a parte. Em todos os países, povos, regimes, discussões, conversas. Até já há judeus nazis: judeus que querem exterminar os outros judeus que apenas gostariam de exterminar os palestinianos e os árabes dos arredores. Listas inteiras, índexes, libelos. Eu próprio, aqui há tempos, por denúncia aguda de monglóides exacerbados, já era também nazi. Nazi certificado, instantâneo, efervescente. Bastava juntar água. Assim mesmo: à martelada, à priori, por patalógica transcendental... Fast-nazismo, pois claro. Coisa de putos, de imberbes mentais. Já nem é coisa que se escolha: é-se nomeado. Carimbam-nos. Junta-se uma posse, à maneira do faroeste, aos urros impacientes, imperiosos... só que em vez da corda ao pescoço, enfiam-nos a camisa negra pela cabeça abaixo. Gente audaz, acostumada e perita em safaris aos gambosinos, de repente, para glória da prole e ablução das miudezas da consciência, desata a descobrir nazis emboscados detrás de cada pintelho.
São, também eles, prova viva da mesmíssima Lei geral da Física atrás enunciada. Apesar de americanos apenas de imitação, de pechisbeque, de telenovela, não deixam de participar das contingências e fatalidades dos seus ídolos mentecaptores: quanto mais combatem uma coisa, mais ela alastra, infesta e conspurca. Talvez porque, como qualquer bom fariseu, aquilo que combatem por fora, criam e cultivam por dentro. É toda uma série de ninhadas ectoplasmáticas que vão segregando à maneira das aranhas. Ou dos bichos-de-seita. Ódios que trazem na ponta da língua e que decerto manam dos esgotos da alma.
O que me leva, em jeito de epílogo, a uma consideração particularmente pertinente dum músico judeu contemporâneo:
«Anti-semita, antigamente, era alguém que odiava os judeus; agora é alguém que os judeus odeiam.»
Se bem que eu nem diria os judeus, mas apenas alguns judeus. Anti-semita, de facto, é alguém que esses judeus específicos odeiam. Eles e, escumalha bem mais assanhada ainda, toda a caterva de circuncisados mentais da paróquia.

Ao retardador



«Florida e Califórnia suspendem execuções por injecção letal.»


Enquanto por cá se inauguram, nos Estados Unidos suspendem-se: as salas de chuto. Também chamadas "de injecção assistida".
É o costume: o obsoleto lá fora constitui inavariavelmente a última moda entre nós. As ideias chegam cá sempre com décadas de atraso e, para agravar a coisa, são sempre implementadas "ao ralenti". Uma tarefa que o Estado Americano despacha em 15 minutos, o Estado Português consegue prolongar por dez ou quinze anos, senão mais. É a diferença de postura em relação à agonia: enquanto uns se propõem abreviá-la, outros tratam de favorecê-la e assisti-la.

domingo, dezembro 17, 2006

Dragão em fuga

Por este andar, não tarda nada, graças à perspicácia esotérica do ilustre comentador Templário, este será o único blogue que, além de fornecer aos leitores o nome e a biografia do autor, disponibiliza também a carta astrológica.
Enfim, nada que espante os eméritos leitores familiarizados com as extravagâncias desta casa: o Dragoscópio sempre à frente do seu tempo, pedalando evadido, em fuga épica e pundonorosa ao pelotão!...
De resto, não foi por acaso que, em pequenino, a Moira Laquesis me atribuiu por guia um Anjo não da Guarda, mas da Vanguarda.
Até porque também não nasci na Guarda, nem em 1956, nem nos dois anos seguintes. Ou sequer lá perto.

Da Audio-Inflação histérica

É com toda a propriedade que Portugal é um país dedicado à Virgem Maria. Deve ser, aliás, derivado disso que, embora a gravidez natural esteja a cair cada vez mais em desuso, já o emprenhamento pelos ouvidos vai de vento em popa. Ganhou mesmo foros de compulsão natural. De tara endémica. Mais até entre os homens que entre as mulheres. Nestas, geralmente, a coisa entra por um ouvido e sai pelo outro, como de costume. Mas entre eles, ao invés, instala-se, aninha-se, calafeta-se e entra de pronto em gestação. E que fertilidade inaudita, meus amigos! Que ventres, digo, crânios procriadores! Uma mera audição, por regra, resulta em ninhadas inteiras de teorias, suspeitas, conjecturas, manias, todas elas maquiavélicas e cada qual mais capciosa e rasteira que a anterior. No oceano de dúvidas, cinismos, pulhices descartáveis e cepticismos de conveniência por onde voga à deriva, uma única e bem atada certeza serve-lhe de jangada, ao português: todos os outros portugueses conspiram contra ele. Todos urdem e cabalam os mais ínvios projectos, invejas, traições, ódios, desconsiderações, ratonices, assaltos, conchavos, etc. E quanto mais próximos, mais aparentemente amistosos, pior. Mais provável, plausível e verosímil a trama. A palmada nas costas apenas estuda o melhor local para a facada. Portanto, nenhuma revelação será suficientemente implausível, nem nenhuma terá o condão de surpreendê-lo. O português hodierno, com velhacaria congénita, arfa e rosna nos antípodas do Mosqueteiro romântico: o seu lema fundamental é “um contra todos e todos contra um!” Ou dito na voz activa: "Eu contra todos, porque estão todos contra mim".
Pilotado por um espírito santo de orelha em débito contínuo, esta formidável máquina de escuta, não possui um cérebro mas um útero ao fundo dos pavilhões auricolares. Um par de amplos, incansáveis e buliçosos ovários em forma de radar acolhe e propaga toda a espécie de rumores, notícias ou boatos. Donde germina, à maneira das gravidezes histéricas, a confirmação plena da suspeita hiperactiva: cercam-no armadilhas, predadores, campos de minas e emboscadas.
E impensável, para ele, só existe uma coisa: a interrupção voluntária de tal audio-gravidez. Nem até às dez semanas, nem cinco, nem duas, nem nunca. É uma barriga de aluguer em permanente estado de desesperanças. Nunca aborta: acumula.
Também nunca pare, porque nada de sólido traz lá dentro: apenas bufa.
Na realidade, é todo um sobejo de país que padece não de excesso de imaginação, mas de flato. Mental.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Os elos perdidos

O caso foi o seguinte: o Caguinchas apareceu com uma ucraniana que me interessava sobremaneira (foi gula à primeira vista) e eu não tinha nem uma brasileira para a troca. Já se dispunha o energúmeno a ir refastelar-se com a suculenta febra e já desesperava eu quase a afogar-me com tanta água que me crescia na boca, quando me ocorreu a fatídica transacção: não vendi a alma, mas emprestei as chaves do blogue. Foi nessa noite que os linkes foram ao ar. Mal se apanhou ao volante, o Caguinchas estampou com o template de encontro a um postal de iluminação púbica.
Desde então ando a ver se mando o salvado ao bate-chapas, mas tem-me faltado o carcanhol. E o tempo.
Como já devem ter reparado, sou um bocado avesso às novas tecnologias, o que, regra geral, utilizo como alibi para a minha infonabice galopante.
Todavia, se por aí houver alguma alma caridosa com paciência bastante para me industriar na melhor forma de repor os linkes, naquela modalidade em que, suponho, se colocam todos duma vez - todos os que referem a blogues portugueses, como se vê amiúde nalguns blogues -, eu agradeço.
Corrijo dessa forma expedita (e natalícia) uma certa descortesia minha dos últimos tempos . O que executo, adicionado, digamos assim, das devidas taxas e juros.
Em suma, passo do estado actual de não ter nenhuns para o estado ideal de tê-los a todos.
Que o Pai Natal vos abençoe!... (E, já agora, a Mãe também.)

Memórias do Dragão enquanto réptil nascente

Não nasci no Porto no ano de 1950. Esta é a mais pura das verdades. Também não nasci nos cinco anos seguintes, nem no Porto, nem nos arredores. Aliás, nem sequer nasci no Porto.
Quem alvitra que nasci em Angola ou Moçambique, erra por um hemisfério de distância. De resto, enunciar aqui todas as localidades em que não nasci ocupar-me-ia por uns bons meses, correndo, ainda assim, o risco de não ser exaustivo. O certo é que era Verão, Agosto, dizem, e o sol acabava de nascer todo pimpão. Animado por tal sucesso, predispus-me a imitá-lo. Para o efeito, havia que desembaraçar-me de minha santa mãe, excelente senhora, mas criatura algo complicada no que concerne a partos. Um ano antes, já o meu irmão precedente, embrulhando-se trabalhosamente no cordão umbilical, havia sucumbido à dura prova. A cesariana, ao que dizem, e não tenho motivos para duvidar, apenas serviu para resgatar o nascituro já sem vida e, à tangente, salvar a mãe. Por via disso, sensivelmente um ano depois, lá me apresentei eu à rampa de lançamento. Armado dos meus 3 quilos e oitocentos gramas, fui duma audácia sem limites: lancei-me neste vale de lágrimas disposto a tudo. E, sobretudo, a vender caro o riso.
Desde então tem sido uma odisseia. Neste momento, aliás, navego entre Cila e Caribdis.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Memórias do Dragão enquanto pequeno réptil

Sentados à mesa, devoravam, absortos, aquele óptimo bacalhau assado quando, do alto do seu trono infantil, na cadeira alta e complicada, com rocas e bolinhas, o César Augustinho, nove meses de ternura e enlevo, arquitectou as primeiras sílabas. A palavra brotou, completa, sonora, elucidativa: "Pénis!"
De repente, o bacalhau pareceu cheio de espinhas e a família encarpelou-se num engasgamento colectivo. O pai Rudolfo era mesmo o mais emparvoecido. Dir-se-ia que, perante o seu olhar estupefacto, a posta que assolava lhe acabava de fugir de volta ao oceano. Lentamente, de través, foram todos encarando o fenómeno, entre incrédulos e temerosos. A avó Amélia, sempre a arder em fé e superstições, caíra já de joelhos, agarrada fervorosamente ao terço. Largou a rezar, com empenho e exaltação, toda uma Avé Maria em latim, enquanto o primo Júlio que estudara ciências tentava sistematizar o prodígio e, de passagem, trazer a intempestiva anciã de volta ao bacalhau (que, segundo ele, estava uma delícia e até era pecado deixá-lo arrefecer num dia de Páscoa tão primaveril). Mas, na realidade, já ninguém parecia ligar pévia ao menu. Antes se embasbacavam, fitando hipnotizados o alto da cadeira complicada, com rocas e bolinhas, onde o César Augustinho correspondia à atenção geral com renovada -e ainda mais retumbante - emissão fonética: "Pénis!!"
Os talheres retiniram, com ruído, sobre os pratos. A avó Amélia prostrou-se numa benzedura repicada e, após um cruz-credo bem audível, clamou, semi-apoplética, por um padre exorcista. O primo Júlio que estudara ciência estava quase como Newton perante a queda da maçã. O pai Rudolfo olhava aterrado para a mãe Zulmira; a tia Ofélia mirava estarrecida o tio Epifâneo; as primas de França encaravam boquiabertas os Manéis respectivos; e apenas o irmão mais velho do distinto e debutante orador, o Malaquias de cinco anos, reagia condignamente ao portento, virando-se para o petrificado autor das suas moléculas, numa justa e pertinente questão: "Paizinho, o que é pénis?"
Os adultos, porém, tinham virado estátuas. Bem, nem todos. Excepcionalmente, o senhor Dias, um volumoso capitão radiologista, velho amigo da família, entusiasta dos espiritismos, permanecia numa viva -e até, poderíamos dizê-lo, maravilhada - contemplação do proto-energúmeno. Depois de gastar a vida profissional a radiografar corpos, uma vez reformado, dedicara-se a esquadrinhar almas mais os respectivos destinos. Era, pois, no exercício pleno dessas faculdades, que perscrutava agora, de alto a baixo e dum lado ao outro, o precoce e dealbante palrador. Sondava-lhe sobretudo, ao petiz, o espírito embrionário e o Guia de serviço. Este deve ter-lhe confidenciado qualquer coisa interessante, algum segredo apetitoso... Porque a culminar tão inefável exame, e com a certeza fatídica dos clarividentes abstrusos, o velho e saudoso Dias proferiu a sentença que ainda hoje me intriga e assombra:
"Este rapaz vai ser um grande oftalmologista!"
Repetiu-mo até à morte, de todas as vezes que nos visitou. Por fim, já cego, ele próprio, orientava-se pelo olfato e farejava a nossa casa através do aroma dos cozinhados de minha mãe. Detectava uma "Mão de vaca com grão" a léguas. Da última vez que o vi, pelos meus treze ou catorze anos, assegurei-lhe destemidamente: "Quando eu for oftalmologista, vou curar-lhe os olhos, sr. Dias, vai ver!"
Ele olhou para mim como se visse. Acho até que via coisas que mais ninguém via. Sorriu misteriosamente e retorquiu: "Não, meu filho, não é deste tipo de olhos que hás-de ser médico. Não é este tipo de cegueira que deverás combater."
Durante muitos anos não entendi que raio queria ele dizer com aquilo. A que género extravagante de oftalmologia me predestinava.
Hoje, acho que sei, ou pelo menos suspeito bem, o tipo de oftalmologista que ele vaticinou: aquele que eu, até hoje, nunca tive coragem de ser.
Por falar em Tele-paixonetas

Em homenagem a todas as Wonder Women blogosféricas.

Bullblog

O que é um blogue -este blogue - para mim?
Vinte e quatro horas diárias de árdua e esforçada resistência ao desejo imperioso de acabar com ele.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Quem ainda se lembra?

Os Pequenos Vagabundos... e a miúda que deixava a malta a suspirar.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Com as minhas condolências por ainda aqui estar



Por três razões principais:
1º Porque, essencialmente, este é um blogue de kung-fu;
2º Porque me pareceu o mais emblemático do espírito da casa;
3º Para comemorar os três anos de massacre contínuo e impiedoso que tem sido apanágio deste blogue à queima roupa;
escolhi, entre quase dois milhares de candidatos, o postal que se segue:

Preceitos para um Jovem Lutador

Introdução.
Tu, meu rapaz, que tens uma sólida formação moral, bons sentimentos e lês Nietzsche (confessou-mo a tua pobre mãe, preocupada), procuras na luta um campo de honra, um ordálio privado de virtudes e coragem. Isso é muito digno e atesta eloquentemente da tua qualidade masculina. Mas não te iludas: os teus futuros adversários pertencem, regra geral, a outro escol. O seu intuito é puramente calhorda, alvar, bandalhabundo. Ardem numa mera sofreguidão de se eximirem das frustrações e do mau carácter congénito. Ou então é puro exibicionismo, macaquice de filmes que lhes devastaram a mioleira. O teu dever, nunca o esqueças, é ajudá-los, conduzi-los nessa odisseia desconchavante. Não sendo do teu nível, não caias na asneira de lá desceres. Guia-os apenas. Providencia para que se espanquem a eles próprios. Empresta-lhes, quão somente, os teus punhos e patadas para tão caritativo efeito. Não te oponhas nem obstines; acompanha-os, facilita-lhes a tarefa. Permite que alcancem tão sadio desiderato. É uma aprendizagem que lhes compete exclusivamente.Se te sacrificares, servindo de bombo, nada aprenderão. Se os sacrificares, moendo-lhes o coiro, ficar-te-ão eternamente gratos, olhar-te-ão com respeito e recordar-te-ão cheios de reverência.
Eles, bem no fundo, não o sabem; mas vão ali para aprenderem um pouco de humildade, para compensarem –duma forma brutal, é certo, mas é a única que os alcança – as falhas e tibiezas da educação moderna. Não hesites: educa-os. A sova, digo-to eu, pode ser uma das mais sublimes formas de altruísmo.
Para o efeito, aqui te deixo alguns preceitos que julgo pertinentes e de comprovada utilidade. A mim, pelo menos, ao longo duma vida que, como bem sabes, foi repleta de aventuras, combates e solavancos, ajudaram-me a manter o arcaboiço intacto e o frontispício indemne.

PRECEITOS
1. Em tese, o teu adversário é um ser humano. Em tese, repito. Porém, como o ringue não é propriamente o local adequado para prolegómenos a qualquer tipo de metafísica, o melhor mesmo é pensares nele como um réptil execrável que se propõe danificar-te o canastro e amarrotar-te o ego. Não deixes.
2. Usa a cabeça . Dá-lhe com ela. Com o osso frontal, mais precisamente; no nariz, na boca, nos malares, é tudo boa colheita.
3. Usa também a cabeça dele. De preferência com os teu pés. Mas não te arrisques em acrobacias supérfluas. Procura primeiro desequilibrá-lo, fazê-lo estatelar-se ao comprido no tapete. Uma vez aí, devidamente acondicionado, poderás pontapeá-lo com bem maior precisão e segurança.
4. Nunca tenhas pena antes de lhe bater. É um absurdo. Massacra-o. Põe-no feito num Cristo e então, então sim, quando ele estiver a ser levado de maca, pára de lhe bater e assume uma fisionomia piedosa.
5. Sê generoso. Quando lhe puderes dar três, não lhe dês apenas duas. A avareza é própria do banqueiro, não do lutador. Além do mais, em estando a distribuir fruta nunca te ponhas com mesquinhices.
6. Sempre que possível, tenta perceber onde lhe dói mais. É aí que lhe deves bater.
7. Não te desgastes inutilmente. Marimba-te no espectáculo e no rococó técnico. Não enfeites. Lembra-te: o objectivo é dares-lhe porrada, não é armares em decorador.
8. Prefere sempre a demolição metódica ao ballet. Nunca confundas um ringue de cacetada com o "Lago dos Cisnes".
9. Cuidado com o sangue dele. Caso esparrinhe, não te ponhas a bebê-lo, entoando bramidos selvagens. Não é prudente. Os antigos faziam-no como acção psicológica, de modo a estarrecer o inimigo. Mas os antigos desconheciam a Sida e a Hepatite B. Felizardos!...Podiam lutar em paz e harmonia. Lutar e ir às putas.
10. As regras são muito lógicas e bonitas para os árbitros e os juizes, porque essas criaturas não estão lá dentro a enfardar. A única lei de ouro que deves ter sempre presente é a seguinte: Entre a tua pele e a regra, sacrifica a regra. Vai por mim, que sou mais velho: é mil vezes preferível seres penalizado (ou mesmo desclassificado) que seres sovado.
11. As manhas e astúcias do ser humano são inúmeras, como a História Universal documenta. As dos répteis ainda são maiores e é a própria Bíblia Sagrada que nos coloca de sobreaviso. Fingem muito. Em caso de dúvida (nunca te esqueças que pode ser simulação), bate-lhe.
12. Em teoria, não deves recorrer a golpes baixos. Em teoria, este também é o melhor dos mundos. É fácil, portanto, constatar que as teorias são muito falíveis. Não obstante, quando lhe acertares nos tomates, usa da maior descrição. Por precaução, fá-lo sempre como que por inadvertência, não vá o árbitro reparar.
13. Nunca te emociones. Se lhe partires um braço, deixa que seja ele a gritar, a queixar-se, a chorar, enfim, a fazer todas aquelas cenas lastimáveis e indignas do varonil garbo.
14. A tua professora, caso venha a sabê-lo, dir-te-á que estes preceitos são bárbaros e anti-desportivos. É provável. Também é certo que a criatura é campeã e atleta de renome. Mas diz-lhe, da minha parte, que no dia em que eu me der ao desplante de leccionar seminários sobre as dores de parto, ela, gentil menina, virá ilustrar-me, de cátedra, sobre guerra e pancadaria. Mas até lá...


Adenda:
Naturalmente, eu não iria recomendar algo que eu não testasse no meu dia a dia. Algo que a experimentação exaustiva não garantisse. Assim sendo, estes preceitos constituem não apenas princípios recomendáveis a outrém, mas também, e como facilmente extrapolarão, regras sagradas em vigor neste blogue. O preceito 6., por exemplo, e aproveito para confirmar, responde mesmo àquela objecção típica e recorrente de vários comentadores chico-espertos, quando me acusam de bater exageradamente nos americanos e nos judeus. Não é a mim que dá um especial gozo, acreditem: a eles é que lhes dói mais. Se a eles não lhes doesse tanto, decerto eu fustigaria menos. Assim, não há volta a dar-lhe: uma vez descoberta a vulnerabilidade, bater nunca constitui exagero, mas imperativo categórico. Regras são regras. E o método obsessivo é um dos karmas do meu signo.

Deus o proteja, ao Maincream

Porque nunca é demais enaltecê-lo, volto a proclamá-lo sem qualquer rebuço:
Felizmente, na blogosfera, existe uma espécie de diques primários onde a porcaria mais grosseira encalha. Vagalhões de merda alucinantes, ameaçadores, que de outro modo ficariam por aí à solta, levando o fedor e a ignóbil matéria - de enxurrada - por caixas de mails e de comentários, são assim confinados a tranquilas albufeiras, onde a placidez, a concórdia e o cheiro nauseabundo se concentram...e imperam.
Nunca agradeceremos o suficiente aos "abruptos", "murcões", "arrastões", "blasfêmeos" e "insargentos" todos da paróquia. O serviço que prestam à comunidade - estes paredões altivos, estes filtros colossais - é merecedor de público reconhecimento e justo louvor. Que as câmaras municipais, além de rotundas, mandassem erigir estátuas em sua homenagem não seria de depreciar. E que mesmo o PR lhes distribuísse comendas e o governo subsídios, só teríamos que saudar e aplaudir. De pé! Pedindo bis!...
Sei que podemos confiar neles. Que nunca esmorecerão na atracção fatal que exercem sobre esses exércitos de vil substância. Possuem um je ne sais quoi de irresistível que polariza toda uma providencial convergência desse imenso e inexaurível esgoto sideral (sideral porque sidera). Talvez uma força magnética única, escatotrípeta, sinal duma nova revolução destronadora do velho Copérnico: são, quiçá, a prova viva (ou melhor: zombie), de que afinal nem o sol gira à volta da terra, nem a terra de roda do sol, mas ambos, e tudo, gravitam em redor e adoração da trampa. Deus os abençoe e guarde pois, àqueles beneméritos, assim, utilíssimos, guichés da paloncice e da mentecapção apinocada, por muitos e longos anos!
Um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo a todos eles! Com muitas prendas na ferradurazinha.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Subsídio primeiro a um inquérito palramentar



«-O que é que lhe diz a palavra "Blogosfera"?»

- Bem, dizer, propriamente, não me diz nada. Nada que eu perceba, pelo menos. Emite, se tanto, uns ruídos, uns arrulhos, uns gorjeios. Algo entre o "nham-nham!" e o "schloph-schloph!". Talvez mais adiante, quem sabe, em mudando de posição, ficando-lhe o órgão fonético mais desavagado, ela venha a proferir sons mais articulados e menos prosaicos. Desinflamada que esteja uma certa sofreguidão.

Os trabalhos de sapa prosseguem a bom ritmo



No Financial Times:
«Oil producing countries have reduced their exposure to the dollar to the lowest level in two years and shifted oil income into euros, yen and sterling, according to new data from the Bank for International Settlements.»
«The review shows that Qatar and Iran, whose foreign exchange policy has sparked widespread market speculation, cut their dollar holdings by $2.4bn and $4bn respectively.»
«Overall, Opec’s dollar deposits fell by $5.3bn, while euro and yen-denominated deposits rose $2.8bn and $3.8bn, respectively. Placements of dollars by Russians rose by $5bn, but most of their $16bn additional deposits were denominated in euros.»


Um dia destes ouve-se aquele grito de aviso típico dos lenhadores: "Tiiimber!!..."

domingo, dezembro 10, 2006

Apaguem as árvores e acendam os menorahs




Este rabi era particularmente estúpido. Não quer dizer que todos os rabis são estúpidos, ou que todos os judeus são estúpidos. Quer dizer apenas que este era e deviam tê-lo tratado em conformidade. Mandando-o, por exemplo, enfiar o menorah num certo sítio. De preferência, aceso.

Nova e brava gerência



Os Seminole, uma lendária tribo de peles-vermelhas norte-americanos, compraram o Hard-Rock Café.
Se me garantirem que doravante vão escalpar os clientes, considerarei esta uma excelente notícia.

Só espero que, a seguir, comprem o McDonnald's. Se bem que para o MacDonnald's, o ideal mesmo fossem Apaches. Daqueles particularmente belicosos.

sábado, dezembro 09, 2006

Segurança e Higiene na Contracepção



«EUA lançam pílula anticoncepcional mastigável»
Lá estão eles, os United States, sempre na vanguarda das coisas importantes.
Assim, graças a estes engenhocas hiperactivos, as senhoras ou meninas não correm mais o risco de engravidar por via oral. Providencial avanço tecnológico este, temos que reconhecê-lo.
A bem duma cada vez maior impermeabilização das matrizes férteis, deixo até um repto: espero sinceramente que não abrandem neste ímpeto medicinal e desenvolvam, com urgência, uma pílula em forma de supositório, por razões óbvias facilmente deduzíveis (cuja enunciação detalhada, por mor da decência, poupo às almas mais pudibundas). E, já agora, também uma variedade em pomada ou creme para as mãos, simultaneamente amaciador, hidratante e espermicida, para ver se acabam duma vez por todas com a gravidez por via cutânea, essa praga do nosso tempo. Já não falando de certas ginásticas modernas que acabam em tragédia... Como aquele caso emblemático da exaltada erotomaníaca ( e swinguer voraz) que, após ordenhar o parceiro com toda a energia e exuberância, correu a fazer um vigoroso fist-fucking à melhor amiga. Se a seguir pensarmos que acabou a meter a boca onde antes tinha as mãos, o resultado, como é fácil de calcular, foram duas viagens a Espanha, para extracção de quisto intra-uterino indesejado e, de todo, inconveniente. O trabalho -e as despesas! - que não se tinham poupado com uma boa pomada.
Em todo o caso, suspeito que o contraceptivo mais eficaz, verdadeiramente inexpugnável, consistiria num modelo triplamente activo: introduzível, friccionável e absorvente. Seria, por exemplo - é uma mera sugestão- a forma dum dildo de grosso calibre. A paciente fricionar-se-ia com ele, metodicamente, no complexo vulvo-vaginal, bombeando-o ao ritmo que melhor lhe aprouvesse. No que o piston se ia derretendo, sendo gradualmente absorvido pelas mucosas e causando com isso crescente excitação e superlativo goivo à utente. Até que toda aquela frenética ginástica, por uma providencial confluência mecânico-química, redundava num orgasmo violentíssimo, devastador, reconfortante, que deixava a praticante toda regalada e satisfeita. Alcançado, assim, com o contraceptivo o prazer tradicionalmente associado ao membro problemático, deixava de haver necessidade deste. Ora, extinta a necessidade, extinguia-se igualmente o vício e, com ele, o tremendo risco. Parece-me óbvio: a melhor forma de acabar com a cópula perigosa é erradicar a própria cópula.
Chama-se a isto, em terminologia de Segurança, aplicar os consagrados princípios da dissuasão. Explicitando: tal qual a melhor forma de combater o crime consiste em retirar ao potencial criminoso a vontade da infracção, também a mais perfeita maneira de batalhar contra a concepção assenta em extirpar à porta-útero de risco o apetite do coito. Através, entre outras fórmulas infalíveis, de modalidades de descarga segura, como a que acabei de revelar.
Um tal nicho de mercado não é de menosprezar. Acho mesmo que vou montar uma empresa de Segurança e Higiene na Contracepção. Isto, claro está, partindo do princípio sine qua non de que consigo resistir ao soberano ímpeto de montar nas clientes.
Se não conseguir, o que é bem provável, também não vem grande mal ao mundo. Confirmo até uma nobre regra nacional: é apenas mais uma empresa conduzida à falência pela própria administração.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Para o Iraque e em força!...

O IRAQ STUDY GROUP REPORT - o relatório que está a dar que falar e que deixou os israelitas à beira dum ataque de nervos. Aliás, eles estão sempre à beira dum ataque de qualquer coisa...
Mas não nos dispersemos.
Uma das conclusões mais interessantes e, quanto a mim, mais meritórias do relatório resume-se ao seguinte: No Iraque, país trasladado ao perfeito caos, há militares a mais e civis a menos.
Começo por dizer-vos que estou completamente de acordo com este painel de sábios liderados por James Baker.
Os militares, convenhamos, são óptimos a instalar o caos, mas péssimos a geri-lo (só reconhecem dois extremos: ou instalar o caos, ou acabar violentamente com ele; não dominam minimamente as delícias intermédias). Ora, instalado o caos - com grande brilhantismo, reconheça-se-, a presença militar torna-se inútil, senão mesmo contraproducente (agora começariam com a mania de querer implantar a ordem). Torna-se, pois, manifesta, direi mesmo urgente, a presença generosa, abundante e entusiasta de civis peritos na gerência da balbúrdia. Não é por acaso que, ao contrário do ser humano, o civil, na bandalheira, se sente como peixe na água, ou girino no charco das águas matrizes. Por outro lado, até por um mecanismo lógico de compensação, tal é plenamente desejável: à medida que, em grande velocidade, os civis iraquianos diminuem, convém que os civis americanos aumentem, preencham os espaços vazios, não vá gerar-se algum desequilíbrio demográfico de consequências imprevisíveis. O ideal seriam até colonatos. De judeus americanos, por exemplo.
Mas não requeiramos para já a perfeição. O óptimo, lá diz o povo, é inimigo do bom. Razoável, portanto, nesta primeira fase de rescaldo, seria a Administração Bush nomear para comissões de serviço no Iraque, e despachá-los para lá em passo de corrida, todos aqueles peritos de geopolítica do Médio-Oriente que infestam as colunas dos jornais e os painéis televisivos. Os oráculos das revistas e os think tanks em barda. Todos os evangelistas da democratização a tiro. Não há nada como experimentar as próprias teorias na prática. É, de resto, esse, um requisito científico elementar, que essas almas positivistas certamente apreciarão.
Vou mais longe (que, neste caso, até é bem perto): se o presidente Bush precisar mesmo de entusiastas frenéticos, comissários políticos a toda a prova, até de bala, então é nos americanos em comissão de serviço em Portugal que deve recrutar os novos colonos-gerentes do Iraque. De modo a colaborar com tão útil e premente medida, facilito-lhe até, de antemão, uma lista sucinta de alguns candidatos ansiosos, fanáticos ululantes (todos eles) desde a primeira hora:
1.Os Vascos (O Graça Moura, o Rato e o Pulido Valente)
3. A puericaterva da "revista Atlântico" (aquilo funciona em enxame, não é passível de individualização)
5. O Luciano Amaral e o Pedro Lomba (operam em parelha)
6. O Zé Manel Fernandes
7. E, finalmente, o Paulo Portas. (Se levar também, de brinde, a família toda - a mãe, o pai, o irmão e a irmã-, erigimos-lhe uma estátua em praça pública, ao George W.).

Nota: Agradecemos, não obstante, que nos deixe ficar o João Miranda. Fará decerto imensa falta em Bagdad, mas a nós ainda nos faz mais. Agora que os Fedorentos entraram em decomposição acelerada, resta-nos ele, o truão*-mor, para adubo das nossas gargalhadas. Isto sem ele ficava sepulcral.

* Truão significa aquele que cavalga (e subjuga) a "true", em todas as suas vertentes e especialidades. Ou, em sinonimia alternativa, "aquele que titila o truísmo".

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Stan Meyers' Water Car

Um motor a água?... Parece que sim.

O inventor, Stan Meyer, entretanto, faleceu. De aneurisma cerebral, segundo o relatório da autópsia.
De envenenamento, segundo o mesmo relatório, na versão da wikipedia.

Lexicodiceia


O léxico vai ter que adaptar-se aos novos tempos. A juntar a "filho das ervas" e a "filho da puta", para designar pejorativamente um nascido de pai incógnito (ou incerto), é mais que garantido que emergirá dentro em breve o "filho do bidão" (ou "filho dum bidão"). Aliás, corrijo: acaba, neste preciso instante, de emergir. E não é todos os dias que se assiste a uma parto cósmico destes. Sois uns privilegiados, ó leitores do Dragoscópio!...

Não é só a palavra que cria a coisa: a coisa também cria a palavra.

Tratamento de resíduos

Deviam organizar depósitos, nas câmaras municipais, como fazem para o cães e gatos vadios. Depois implementavam uma frota de furgões espaçosos, tripulados por funcionários determinados, severos, bem musculados, armados de redes e bastões entorpecentes. Esbirros compenetrados, todos eles. E jovens, naturalmente. Daqueles entusiastas do primeiro emprego.
Esquadrinhavam as ruas, as avenidas, os parques e jardins, e recolhiam os desempregados com mais de quarenta anos. Todos os que apanhassem sem coleira, ou sem trela, ou sem açaime, sem dono, ou sem brilho nos olhos e esperança na alma. Sobretudo descartados da indústria, ou do comércio, ou dos serviços. Do que fosse.
Uma vez no depósito, devidamente desparasitados, limpos, enfileirados, num recinto próprio, recatado, injectavam-lhes um veneno letal. Ou abatiam-nos a tiro. Só para diferenciá-los minimamente dos cães. Era mais humano.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Polónio 210, um perfume só para plutocratas. As pessoas vão ter ainda que esperar.

Leitores e leitoras, se gostais de vos manter actualizados e necessitais, com certa urgência, de Polónio 210 para tratar a sogra, a esposa ou marido, o cão do vizinho, o vizinho, a família toda do vizinho, os cuscas do café, o presidente da vossa Câmara ou o Deputado do vosso círculo, não vos deixeis ficar cativos da mera fantasia. A boa notícia é que já existe um empresa que vende essa e outras interessantes substâncias ao público. Com todo o sigilo e rapidez. Disponibiliza até um sistema de vendas on-line, como podeis perfeitamente constatar aqui.
E com uma frescura garantida que só visto, tal qual eles próprios atestam:
Regubilai: é directamente do reactor para a casa do cliente! Como uma pizza estaladiça.

Mas como não há bela sem senão, a má notícia é que, segundo a mesma firma, vós, caros e empreendedores amigos, necessitaríeis de cerca de 15.000 micro-kits como os que eles vendem por cada encomenda para terdes uma dose tóxica; o que vos custaria a módica quantia de 1 milhão de dólares.

Não obstante, nada de perder a esperança. É continuar a apostar no Euromilhões. Ou pensar em alternativas mais inteligentes, credíveis e profissionais. Como o rícino, por exemplo. Não deixa rasto.

Já agora, durante a visita de estudo, aproveitai para conhecer o Amercium-241. Grande Amércio!... Um pândego, este Amércio!

terça-feira, dezembro 05, 2006

Regras para a Estupefacção do Espírito

Não é em vão que se está a democratizar, sabe Deus a que preço, o Afeganistão. Segundo o jornal “Expresso”, «a heroína de elevado grau de pureza já chegou a Lisboa.» Mais explica o repolhudo semanário, a todos os eventuais interessados na aquisição daquele precioso bem de consumo (e serão certamente muitos), que o mesmo pode ser encontrado à venda “ na Fonte Santa, perto do antigo Casal Ventoso, na Mouraria e no Bairro Alto”. Não refere os meios de transporte mais rápidos para lá chegar, o que é pena, mas um qualquer roteiro da cidade pode facilmente colmatar essa lacuna. Isto, partindo do princípio, assaz optimista, que sabem ler, ou estão em condições disso. Aconselhamos, no entanto, a irem cedo, pelo menos antes de almoço, pois adivinham-se grandes engarrafamentos nos acessos e junto às baias dos drogadouros com o avançar do dia.
Mais detalhes entusiasmantes: esta heroína de imaculada condição, segundo um consumidor experimentado, “tem o mesmo aspecto da outra, mas os efeitos são muito mais fortes.”
“A qualidade é muito superior” – acrescenta, entre o deslumbrado e o dorido, o mesmo atleta do hemochuto – “ sei que em Inglaterra também há heroína como esta porque vivi lá há uns tempos. Quem não estiver avisado morre facilmente de “overdose”.
O jornal identifica-nos este consumidor audaz e viajado como sendo Alberto, proprietário de 35 primaveras, técnico superior de parqueamentos automóveis (“melga”, na terminologia caguinciana; “mitra”, na do meu irmão). O seu depoimento, não obstante, é deveras instrutivo. Ficamos desde logo a saber que o junkie português é, à semelhança de todos os seus compatriotas, um consumado ambulatório - um turista da estupefacção. Anseia estupefazer-se por esse mundo a fora. Quieto no mesmo sítio é que ninguém o segura. Nada de âncoras! Viaja, nomadiza, peregrina. Está-lhe na massa do sangue. O resto que lá mete, na veia atávica, é só um pretexto para a viagem. Para a excursão não apenas psicotrópica, mas também, e não menos essencialmente, globofrénica. Quase aposto que estes toxicodependentes ludâmbulos, aquando de ocasionais encontros ou congressos entre-viagens, também trocam troféus e souvenires em forma de álbuns fotográficos e videogravações. Acompanhados, fatalmente, das legendagens da praxe: “Eu a dar na veia em Hyde Park”; “A Tereza e os miúdos a triparem um ácido porreiro no Bois de Bologne, antes de se prostituirem para a dose do dia seguinte”; “Eu a bezerrar junto aos Alpes”; “O Inácio a vomitar e a malta aflita a pô-lo de borco para ver se ele não se asfixiava, na Praça de S.Marcos”; “Eu outra vez, na ambulância para o Hospital de Geneve, com a minha terceira overdose”; “O Carlitos a ressacar em Berlim - a Vanessa Augusta tinha acabado de fugir com um turco, deixando-o sem abastecimento”; e por aí adiante.
Outra coisa que me aflige, quando não me escandaliza, é a ausência completa de “prevenção drogoviária” por parte do Estado – do Estado ainda por cima Democrático. Isso das “salas de chuto”, só para citar o bibelot mais folclórico, não passa de mera fachada, conversa para enganar tolos. Começa na inadequação do próprio nome: “sala de chuto” lembra escola ou hospital. Nenhum junkie que se preze, daqueles cosmopolitas e mundívagos, com tal tabuleta à porta, lá mete os penates. É garantido. Ou mudam o nome daquilo para “chuto lounge”, ou nada feito. E com separação de áreas de acesso, pois claro - classe executiva, económica, VIP -, que isto da estupefacção não é nenhuma ribaldaria. Há gente das melhores famílias, das melhores castas e proveniências; e das piores, das mais avulsas e banais também. É como em toda a parte. Há junkies de referência, faróis da coorporação, como há trolls anónimos, lingrinhas chupadinhos das carochas completamente irrelevantes.
Depois, a “sala de chuto” pressupõe uma sedentarização que contraria os princípios e leis sagradas da confraria. A não ser que se abram “chuto lounges” nos aeroportos, nos aviões, nos comboios internacionais (a criação de “carruagens especiais para junkies em trânsito” –o chamado “vagon delit” – é uma prioridade)... E mesmo assim, se não forem devidamente equipados com um sistema de “vending machines”, como já existem para cafés, sandochas e chocolates, só que agora abastecidas com as diversas variedades e doses de estupefacientes, leves e duros, não estou a ver como raio se fidelizarão os utentes e respectivos agregados familiares.
E aqui desembarcamos no cerne da questão. O Estado, com a hipocrisia característica, proclama condoer-se com os risco de HIV, hepatites e demais infecto-contágios nos estupefactos profissionais; mas não liga patavina à ameaça fulminante de “overdose”. Quer dizer, aflige-se todo com as condições da dose, socorre todo pressuroso a higiene da mesma, mas não passa cartão à iminência da overdose. Em suma, preocupa-se mais com a limpeza das ferramentas, que com a limpeza do sebo dos operários consumidores. É o costume: o humano, ainda que vegetalizado, que se lixe! Que se foda! Que rebente para aí cavalarmente! Que se envenene, mas nas devidas condições de higiene. Em ambiente asséptico, ultra-pasteurizado. Desarvoramos na droga em regime fast-food. Num mundo não apenas já hospício, mas também açougue McDonaldizado. O que conta não é a essência, mas a mera aparência. A marca e a embalagem.
Estivesse o Estado sinceramente interessado em cuidados básicos, em profilaxia elementar e, além das salas e seringas, trataria de fornecer também o produto. O pó devidamente garantido e rotulado. Indicando os comprovados ingredientes e misturas. O grau de pureza. A dose recomendada, de acordo com a idade e o peso, como qualquer papa Milupa ou farinha Cerelac. O modo de preparação e a data de validade. Os corantes e conservantes –esses malfadados Es, quase todos eles cancerígenos. O ano da colheita. A proveniência. O selo da Região Demarcada, como se impõe a qualquer néctar condigno. O carimbo do fabricante, do importador e distribuidor. Dos Serviços veterinários também. Os avisos como nos maços de tabaco: “A droga pode reduzir o fluxo do sangue e provoca impotência”, “a Heroína prejudica gravemente a sua saúde”, etc. Já que não quer acabar com ela, com a droga aos molhos, ao menos que o Estado regulamente e fiscalize a sua distribuição. Cobre uma taxa como a da radiodifusão – neste caso da “radioingestão” – pela mesma via, ou seja,, devidamente dissimulada nas facturas da electricidade. Que crie um “Código da Droga”, à semelhança do da Estrada, com sinalética e regras de tráfego adequadas. Sinais de perigo como, por exemplo, “Heroína pura”, “estricnina quase pura”, “Cocaína escorregadia”, “Passagem de droga com guarda”, “passagem de droga sem guarda”, “Aproximação de traficante com prioridade”, “turba e contra-turba”, “gado bravo”, “queda de pedrados”, etc; ou sinais de interdição do estilo “trânsito proibido a junkies descapitalizados”, “Sentimentos proibidos”, “proibido fumar”, “proibido beber”; ou ainda de obrigatoriedade, como “zombificação obrigatória”, “vegetalização rápida”, “prostituição a menos de cem metros”, etc. E isto já não falando na própria adequação do actual código da estrada ao tráfego estupefacto, com a criação, designadamente, de passadeiras e corredores especiais para junkies; semáforos psicadélicos; parques de bezerramento; vias rápidas para ressacados com urgências; quiosques devidamente identificados à porta das escolas; facilitação de acessos a junkies paraplégicos, tetraplégicos, invisuais ou meramente fetichistas de cadeira-de-rodas; estacionamento reservado a dealers; venda em portagens; rede de drive-ins, ou melhor dizendo, drug-ins; áreas de chuto para camionistas; zonas francas de amochanço junto a discotecas; etc.
Mas se o Estado é o descalabro que se assiste, que dizer da Deco? Sim, o que é que a putativa Defesa do Consumidor tem feito na defesa desta classe desamparada de consumidores? Nada! Népia! Nicles! Há contrafacções e mixordices de toda a espécie. Há desgraçados a fumar caldos Knorr, adolescentes crédulos a injectar farinha Branca de neve ou pudins Royal, papalvos a snifar Lauroderme à força toda, e a Deco - a Deco, no seu alheamento olímpico -, não quer saber! E, como se isto já não bastasse, a Quercus também não!
Dos macabros resultados de tanto desmazelo falam-nos as estatísticas:
«Segundo dados oficiais do Instituto da Droga e da Toxicodependência, no ano passado, morreram em Portugal 219 pessoas por motivos relacionados com o consumo de droga – um aumento de 40% em relação a 2004.»
Com tamanha desorganização, com tanta incúria e displicência, admira-me que só tenham sido 219. As estradas matam mais, é certo. Só este ano já liquidaram para cima de 337 pessoas. E são, dizem eles, não sei quem, os melhores resultados dos últimos 30 anos. Tal proeza, supõe-se, após um ror de fortunas gastas em legislações, fiscalizações e campanhas de prevenção. Amarga conclusão: a droga que circula nas artérias sanguíneas ainda não é tão perigosa e letal quanto a droga que circula nas artérias rodoviárias.
Mais perigoso que qualquer uma dessas redes viárias, só há um sítio em Portugal: o útero das mulheres. Em Portugal são feitos em média 20 mil abortos por ano em estabelecimentos clandestinos. Vá lá que sejam só metade...

E depois ainda nos vêm com aquela ficção anedótica dos terroristas fundamentalistas e bombistas que querem atacar-nos para darem cabo do nosso invejável "modo de Vida". Era preciso que fossem extraordináriamente estúpidos, os ditos cujos, o que é duvidoso que sejam. Ninguém perde tempo nem energia a atacar quem já se entrega, cega, febril e paulatinamente, ao suicídio.