terça-feira, dezembro 26, 2006

Saparmurat I, o Magnífico

Para reabertura oficial das hostilidades, a notícia mais triste da quadra natalícia:
«Morreu o presidente do Turcomenistão Saparmurat Niyazov.»

Primeiro, onde fica isso do Turcomenistão?

Pois bem, à saída leste da Turquia, seguindo em frente, passando o Mar Cáspio (caso os Iranianos o permitam, naturalmente), vira-se à esquerda e aí têm o Turcomenistão. Detalhes mais relevantes, desta terra outrora abençoada e agora triste, na geopolítica actual: faz fronteira com o nordeste do Irão e o noroeste do Afeganistão. Além disso, confina a oeste com o Mar Cáspio e possui uma das maiores reservas de gás natural do mundo.
Quanto a Niyazov, o mínimo que podemos dizer dele é que não era um ditador excitante, daqueles que catalisam a opinorreia ocidental, como Pinochet ou Fidel, entre outros. Estranhamente, não suscitava os fornicoques da imprensa escrita e, por arrasto oxíurico, dos blogadeiros destros, sinistros ou assim-assim. Por incrível que pareça, ninguém parecia desejar avidamente a sua morte, nem ninguém parece deplorá-la agora todo indignado e enxofradinho, por a mesma, entre outras preciosas alegações, constituir uma subtracção inqualificável às prerrogativas dos areópagos. Em resumo, não atraía hienas nem entusiamava chacais.
E no entanto, protagonizava uma das ditaduras mais catitas à flor do planeta, o Saparmurat turcomeno. Tirano mais encantador é difícil. A começar pelo facto sempre louvável de, desde 1999, com a solenidade devida, se ter auto-proclamado presidente vitalício e pai da pátria (Turkmenbachi, no idioma local). Aqui chegados, não esqueçam onde vamos, porque é forçoso que entreabra um parêntesis:
De resto, sufocaria já aqui se não o dissesse: prefiro um presidente vitalício a um presidente mortalício, ou, o que ainda é pior, um presidente hortalício. Como dizia o meu deseducador Nietzsche, "antes um mau sentido, que sentido nenhum". Ou por outras palavras, e transpondo na geografia, antes um Saparmurat Niyazov que um Jorge Sampaio. Com um presidente vitalício a gente entende-se: sabe quem ele é, sabe quem responsabilizar, sabe de quem dizer mal (ou bem) e contra quem conspirar, resistir ou armar revoluções. Com um presidente mortalício, como o que temos agora, ou hortalício, como o que acabámos de ter, a malta não sabe quem raio manda nisto afinal. Não sabe, nem sonha. Quando muito, sabemos quem mama; mas quem manda é que não. Por mim, suspeito da Coca-Cola e isso não me deixa lá muito tranquilo.
Por outro lado, o presidente vitalício, tanto quanto reprimir, estimula. E, pormenor nada despiciendo, ao concentrar em si as prerrogativas açambarcadoras e cleptofóricas, obsta a que toda uma marabunta desenfreada infeste à rédea solta e devaste sem dó nem remissão. Se compararmos o deita-a-unha actual, cá no rincão pátrio, com o do tempo do António Salazar, constatamos que exercem os mesmos daquela época (as tais "duzentas famílias" perenes) acrescentadas duma chusma de pilha-erários por via dos trampolins partidogénicos.
Mas voltemos ao Saparmurat inefabilíssimo (o que Portugal não lucraria com um presidente destes!...)
Falar nele resume-se a enumerar-lhe as extravagâncias - que coincidem exactamente com as virtudes:
1. Mandou construir um zoológico no deserto Karacoum, local aprazível dado a temperaturas da ordem dos 40 graus (positivos, naturalmente). Uma das principais funções deste éden artificial era a de, graças ao palácio de gelo com que estava argutamente equipado, tornar-se um santuário de asilo para todos os pinguins perseguidos do planeta;
2. Mandou substituir os nomes das ruas de Achkhabad, capital do Turquemenistão, por números. (Suponho que se desse o seu nome a todas elas, como o povo reclamava, criaria uma certa confusão nos correios e não só);
3. Proibiu os jovens de usarem cabelos grandes, bigodes, barbas, ou qualquer manifestação externa de hirsutismo beatnick;
4. Extinguiu o ballet no Turquemenistão, argumentando implacavelmente: "Não entendo o ballet. Para que serve? É impossível fazer os turcomenos amarem o ballet se eles não gostam dele.";
5. Por ocasião duma maratona de 36 quilómetros em prol da saúde, obrigou todos os ministros a participarem nela;
6. Declarou fora da lei todas as doenças infecto contagiosas, incluindo a Sida e a cólera, e proibiu até que se mencionasse o ignóbil nome das ditas;
7. Mudou, por decreto presidencial, o nome de alguns meses no calendário: Janeiro tem agora o seu nome; Abril, o de sua augusta mãe; e Setembro o do seu sagaz livro de máximas fundamentais - o Ruhnama, ou livro das almas;
8. Condescendeu em que construíssem em sua homenagem uma estátua de ouro maciço que, através dum engenhoso mecanismo de rodízios e engrenagens, gira de modo a estar sempre virada para o sol;
9. Baniu do país os jogos de vídeo e interditou o uso de rádios em automóveis;
10. Proibiu as obturações em ouro e recomendou aos filhos/súbditos que mascassem ossos para fortalecerem a dentadura;
11. Decretou a obrigatoriedade geral na leitura e memorização do Ruhnama. Semanalmente, todos os estudantes deviam devotar um dia inteiro ao estudo da luminosa obra; e todo aquele que conseguisse ler três vezes em voz alta o livro santo ia direitinho (e merecidamente, reconheça-se) para o paraíso;
12. Imbuído de grande sabedoria, e não menor prudência, clarividência e sensatez, além de Presidente Vitalício e Pai da Pátria, Niyazov acumulava ainda os cargos de primeiro-ministro, chefe das forças armadas e líder do Partido Democrático, única formação política do país;
13. Através dum decreto fulgurante, também redefiniu -e resolveu duma vez por todas - o problema das idades do homem. Assim sendo, no Turcomenistão a infância termina aos 13 anos; a adolescência acaba aos 25; a juventude jamais poderá exceder os 37; a maturidade estende-se até aos 49. Depois, entre os 49 e os 62 situa-se a denominada idade do profeta; em seguida, até aos 73, ocorre a idade da inspiração; até aos 85 acontece a idade do ancião de barba branca; até aos 97 é a velhice; e daí em diante, para os longevos excepcionais, fica a idade de Oguz Khan (antigo chefe ancestral dos turcomenos).
Não obstante toda a constelação de virtudes e superpoderes de que estava revestido, couraçado e recheado, Saparmurat Niyazov era um homem humilde e modesto, que sofria muito com o exacerbadíssimo culto da personalidade de que era alvo no seu reino, digo, país. Já várias vezes pedira aos seus filhos, (pois um dos títulos que, justamente, ostentava era de "Pai de todos os turcomenos"), para deixarem de o elogiar tão militantemente; mas em vão. O desporto nacional do Turquemenistão era apenas um: erigir panegíricos ao seu bem amado líder. De manhã à noite, rádios, televisões, jornais e revistas do Estado (porque na Turcoménia, para benefício de todos, não há imprensa privada, nem independente) não se cansavam de louvar, diariamente, a sabedoria e os feitos do genial dirigente, escritor, poeta, filósofo, esteta, filantropo, etc. «Em 2003, Turkmenbachi - que na língua local significa "pai de todos os turcomenos" - anunciou um concurso entre jornalistas de televisão com o tema "Aquele que menos elogia Turkmenbachi", sublinhando o baixo trabalho dos profissionais do ecrã que "em vez de concorrerem entre eles, nada mais faziam senão copiarem-se uns aos outros". »
Não sei quem ganhou. Nem julgo que isso agora interesse.
Sei que Saparmurat Niyazov, talvez porque se tenha esquecido de banir a Morte juntamente com o ballet do seu mágico Reino, faleceu na quinta feira passada. Um dia choroso e funesto para os pinguins perseguidos de todo o Mundo.

PS: Nunca maldirei o bastante toda a corja de jornalistas que, com mesquinhez e costureirice contumazes, nos ocultaram um autocrata tão pitoresco. Se ainda não existe - fora do Turcomenistão, quero dizer - eu estou desde já disposto a fundá-lo: o Clube de Fãs Póstumos de Saparmurat Niyazov!...

PS2: E o mais trágico é que morreu com apenas 66 anos. Portanto, e segundo a sua própria e preclara lei etária, em plena "idade da Inspiração". No auge duma carreira que, no mínimo, augurava a criação de mais um lugar à mesa no Olimpo. Que perda irreparável!...

2 comentários:

  1. Presumo que tal senhor não fosse desprovido de alma, pelo que paz à dita lhe desejo.
    A todos os Turcomenhos, agora, orfãos o meu pesar.
    Se céu ou o limbo não lhe tiver calhado, que o inferno seja de gêlo.

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  2. perto do sr. trujillo de s. domingo, nos anos trinta do sec xx, ainda apenas era um aprendiz.mas lá que tinha as suas originalidades,tinha.

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