Sentados à mesa, devoravam, absortos, aquele óptimo bacalhau assado quando, do alto do seu trono infantil, na cadeira alta e complicada, com rocas e bolinhas, o César Augustinho, nove meses de ternura e enlevo, arquitectou as primeiras sílabas. A palavra brotou, completa, sonora, elucidativa: "Pénis!"
De repente, o bacalhau pareceu cheio de espinhas e a família encarpelou-se num engasgamento colectivo. O pai Rudolfo era mesmo o mais emparvoecido. Dir-se-ia que, perante o seu olhar estupefacto, a posta que assolava lhe acabava de fugir de volta ao oceano. Lentamente, de través, foram todos encarando o fenómeno, entre incrédulos e temerosos. A avó Amélia, sempre a arder em fé e superstições, caíra já de joelhos, agarrada fervorosamente ao terço. Largou a rezar, com empenho e exaltação, toda uma Avé Maria em latim, enquanto o primo Júlio que estudara ciências tentava sistematizar o prodígio e, de passagem, trazer a intempestiva anciã de volta ao bacalhau (que, segundo ele, estava uma delícia e até era pecado deixá-lo arrefecer num dia de Páscoa tão primaveril). Mas, na realidade, já ninguém parecia ligar pévia ao menu. Antes se embasbacavam, fitando hipnotizados o alto da cadeira complicada, com rocas e bolinhas, onde o César Augustinho correspondia à atenção geral com renovada -e ainda mais retumbante - emissão fonética: "Pénis!!"
Os talheres retiniram, com ruído, sobre os pratos. A avó Amélia prostrou-se numa benzedura repicada e, após um cruz-credo bem audível, clamou, semi-apoplética, por um padre exorcista. O primo Júlio que estudara ciência estava quase como Newton perante a queda da maçã. O pai Rudolfo olhava aterrado para a mãe Zulmira; a tia Ofélia mirava estarrecida o tio Epifâneo; as primas de França encaravam boquiabertas os Manéis respectivos; e apenas o irmão mais velho do distinto e debutante orador, o Malaquias de cinco anos, reagia condignamente ao portento, virando-se para o petrificado autor das suas moléculas, numa justa e pertinente questão: "Paizinho, o que é pénis?"
Os adultos, porém, tinham virado estátuas. Bem, nem todos. Excepcionalmente, o senhor Dias, um volumoso capitão radiologista, velho amigo da família, entusiasta dos espiritismos, permanecia numa viva -e até, poderíamos dizê-lo, maravilhada - contemplação do proto-energúmeno. Depois de gastar a vida profissional a radiografar corpos, uma vez reformado, dedicara-se a esquadrinhar almas mais os respectivos destinos. Era, pois, no exercício pleno dessas faculdades, que perscrutava agora, de alto a baixo e dum lado ao outro, o precoce e dealbante palrador. Sondava-lhe sobretudo, ao petiz, o espírito embrionário e o Guia de serviço. Este deve ter-lhe confidenciado qualquer coisa interessante, algum segredo apetitoso... Porque a culminar tão inefável exame, e com a certeza fatídica dos clarividentes abstrusos, o velho e saudoso Dias proferiu a sentença que ainda hoje me intriga e assombra:
"Este rapaz vai ser um grande oftalmologista!"
"Este rapaz vai ser um grande oftalmologista!"
Repetiu-mo até à morte, de todas as vezes que nos visitou. Por fim, já cego, ele próprio, orientava-se pelo olfato e farejava a nossa casa através do aroma dos cozinhados de minha mãe. Detectava uma "Mão de vaca com grão" a léguas. Da última vez que o vi, pelos meus treze ou catorze anos, assegurei-lhe destemidamente: "Quando eu for oftalmologista, vou curar-lhe os olhos, sr. Dias, vai ver!"
Ele olhou para mim como se visse. Acho até que via coisas que mais ninguém via. Sorriu misteriosamente e retorquiu: "Não, meu filho, não é deste tipo de olhos que hás-de ser médico. Não é este tipo de cegueira que deverás combater."
Durante muitos anos não entendi que raio queria ele dizer com aquilo. A que género extravagante de oftalmologia me predestinava.
Hoje, acho que sei, ou pelo menos suspeito bem, o tipo de oftalmologista que ele vaticinou: aquele que eu, até hoje, nunca tive coragem de ser.
Ainda que não falou "caralho"! :o)))
ResponderEliminarai que maravilha de texto!
ResponderEliminar":O)))
modéstia, Dragão,modéstia... as suas oftálmicas são do mais apurado que vi nos últimos anos. abençoados olhos!
ResponderEliminarQue menino tão precoce!
ResponderEliminarÉ a Biografia do MEC ou é só para encher o olho à malta?
Um abraço.
eheheheh.
ResponderEliminarMais uma chama do dragão.
Ah! Então já é oftalmologista desde muito novo!?
MEC?
Dragão, you did it again!!! :D - Brilliant!
ResponderEliminarExcelente, não fora um senão! Bacalhau no Domingo de Páscoa?
ResponderEliminar..........................
Isto é a constactação que perante tão brilhante texto todas as observações só podem ser patetas.
"Bacalhau no Domingo de Páscoa"...
ResponderEliminarA observação do anónimo, por um lado, faz todo o sentido; por outro, vê-se que não conhece o meu distinto pai.
O bacalhau, para ele, na Noite de Natal e no Domingo de Páscoa, é um dogma. Que me lembre, toda a família sempre se insurgiu contra esta tirania sacro-gastrnómica (a ala materna, em destaque, reclamando galo natalício e cabrito pascoal); mas ele, com a prepotência característica dos ferrabrazes e a fobia vitalícia àquilo que ele menoscaba como a "padrelhagem", nunca arredou pé. Não se escapa facilmente aos efeitos dum pai assim.
Um pai tirano...portanto.E uma mãe submissa, como deve. Inteligente, porque as submissas, geralmente, são-no.
ResponderEliminarEpá! Também sei o que é isso, embora a tirania do meu, fosse devidamente temperada com grandes discussões à mesa, antes, durante e depois das prândias.
Só agora, depois de muitos anos, deixei de discutir, discordar e passei a...concordar.
É o tempo que nos faz um bem do camandro.Ou do caraças. Ou do caralho, para ser mais primário.
E agora, vou daqui até outro lado.
Vou ver o Amadeo, na Gulbenkian. Amanhã ou passando. Inté.
"Inteligente, porque as submissas, geralmente, são-no."
ResponderEliminarE para que é que uma mulher inteligente haveria de ser submissa? Para ficar com o seu homem? E quem é que quer um homem chauvinista? Pó caraças para não ser tão primária.
Permitam-me um parecer:
ResponderEliminarSer submissa não implica que seja inteligente; nem implica o contrário.
Pode haver mulheres submissas inteligentes e pode havê-las não inteligentes.
Um porco machista, como o Caguinchas, ou qualquer outro trolha ou camionista, dirá: as mulheres submissas não podem ser inteligentes,porque não existem mulheres inteligentes. Mas isso são casos extremos.
Pessoalmente, sempre gostei de mulheres com personalidade. Fortalezas para tomar de assalto. E quanto mais difíceis, mais interessantes. :O)