terça-feira, maio 31, 2011

Xenomania Frenética

«Do Estado nada podemos esperar também, mas, aqui, por uma outra razão. O Estado não é português, o Estado não é decente, o Estado está, desde 1820, na posse de homens cuja obra é a essência da traição e da falência. Procurar o auxílio do Estado é tão absurdo como procurar influenciar os homens que o possuem. Não há neles uma centelha de boa vontade patriótica, nem de lucidez portuguesa. Vivem daquilo e nem vivem elegantemente. O esforço revolucionário para os deitar abaixo é um gasto espúrio de energia. Quem é que se lhes vai seguir? Não há em Portugal nenhum grupo ou partido, nenhuma reunião de homens duradoura ou ocasional capaz de gerir o país. O que há é péssimo, mas é o que há. Sidónio Pais era Sidónio Pais, e a sua regência foi célebre pela imoralidade, pela profusão de apadrinhamentos, pela prolixa desvergonha dos negócios escuros e nos crimes políticos. Quando esse homem, que tinha as qualidades místicas do chefe de nação, que tinha as qualidades de astúcia precisas para manejar os homens, e as energias para os compelir, não pôde, honesto como era, romper com a cercadura de ladrões que tinha, não pôde, leal como era, evitar estar cercado por traidores e bandidos, não pôde, nobre na coragem como era, evitar ser rodeado de assassinos e trauliteiros - que espécie de homem esperamos nós que virá, que faça a obra da regeneração?
(...)
Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro. Nem as vamos buscar aos movimentos filosóficos profundos do estrangeiro; vamos buscá-las à superfície, ao jornalismo de ideias.»

- Fernando Pessoa, "Sobre Portugal"

domingo, maio 29, 2011

Onanolepsia

Vamos lá ver... Países como a Grécia, a Irlanda, Portugal, etc, precisam de empréstimos de emergência ( a bem do sistema maravilhoso, porque, caso contrário, lá rebenta a bernarda) e são brindados com juros da ordem dos 5% (cito apenas o caso português, porque os outros parece que foi bem pior).
Não obstante, os queridos bancos pelintras e carentes, como o Goldman Sachs, entre vários outros do mesmo jaez, receberam bateladas de biliões ao enormíssimo juro de - cocheiros, contai! - 0,01%!! Pela porta dos solípedes.
Isto tem um nome muito pitoresco: subsídio. Puro e duro.
A Reserva Federal andou a subsidiar os grandes bancos.

Afinal, parece que o liberalismo, à semelhança do mano socialista, também se incompatibilizou com a realidade. Só funciona em modo onanoléptico, ou seja, nas cabecinhas de alho chocho dos seus devotos. Que, levados pela imaginação e pelo instinto, se agarram àquilo como certos caninos visionários às pernas das visitas.

Dodó...lar

«U.N. sees risk of crisis of confidence in dollar»

Tudo o que vier das bandas da ONU vale tanto como caca de galinha. A única coisa que isto pode significar é que urge reforçar duas medidas de emergência globais:
1. Porfiar no ataque cerrado ao Euro (essa ameaça feroz ao dólar);
2. Prosseguir na cruzada democrática pelo aumento de preço do petróleo, de modo a garantir o escoamento do dinheiro fals... digo, do dólar.

Traduzido por miúdos: Espanha, Itália, Bélgica, França, preparem-se para levar com as agências de ratinguice assanhadas. Síria e, em último caso, Irão, preparem-se para a visita duns misseizinhos avulsos.

sábado, maio 28, 2011

Massacre por uma Bagatela


O título diz tudo. Não é exactamente uma obra para ser levada muito a sério. Céline, aliás, explica-a sucintamente: "chatearam-me. Pois vou também eu chateá-los!..." E o facto é que chateou. Embora o que mais os chateie, aos fariseus, tartufos, medíocres e demais criadores de mofo de todas as épocas e de todas as academias, nem seja o "bagatelas", mas a "Viagem". Essa é que lhes ficou atravessada. Ficou e ficará.
Mas como eu também gosto é de chatear, aqui fica, em primeira mão (isto não basta querer, é preciso poder), um trecho inédito das "Bagatelles", um opúsculo que é um puro gozo, uma estreita hipérbole, mas que, convenhamos, tem a sua piada.
Prometido é devido. E vale mais tarde que nunca.


«(…) Ferdinant, estás transformado num fanático, num partidário ... mas previno-te, aviso-te, os judeus são muito inteligentes …. Acontece que em França lêem livros, documentam-se, têm canudo … armam-se com conhecimentos, ocupam agora todos os lugares, têm a polícia nas mãos, sabem tornar-se populares … de resto, são bons p`ró povinho, olha as 40 horas, são a sua coroa de glória … e depois as férias … vais fazer com que te prendam … com que te cortem às postas, sem dúvida ….

Quê? Inteligentes? … Insurjo-me. Eles são racistas, eles têm o ouro todo, eles apoderaram-se de todas as alavancas, eles estão colados a todos os comandos … é isto a sua inteligência? … Não há sítio em que não estejam! … Seguem admiravelmente a marcha do pelotão, eliminam, enojam, atormentam, cercam … tudo o que possa rivalizar … fazer-lhes a mínima sombra … é a sua cruzada contra nós, a cruzada para a morte … é esta a sua inteligência! … O bom pitéu, metem-no à bolsa … açambarcam, expulsam dum só golpe ou aos poucos tudo o que não é inteiramente judeu … sordidamente judeu … judengo … pro ydisch … seca de judeu … É a magistral técnica do cuco … Para dizer tudo, para ilustrar bem as coisas, se Einstein não fosse judeu, se Bergson não fosse mestiço, se Proust fosse apenas Bretão, se Freud não tivesse a marca distintiva … não se falaria muito nem duns nem doutros … Não seriam estes génios que fazem com que o sol se erga! … Posso garantir-te … A mínima manifestação de descontentamento do judeu é um estrépito! Nos nossos dias, meu amigo, uma revelação instantaneamente admirável! Pelo efeito automático da maquinaria judaica mundial … Milhões de cascavéis que se agitam … monta-se nesta pobre bufa como num milagre! E a galope! Quer seja pintura de Cézanne, Modi, Picasso e todos os outros … Filmes do Senhor Benhur, música de Tartinowsky, de repente tudo se torna um acontecimento … o enorme preconceito favorável, mundial, precede, preludia, toda a intenção judaica …. judeus, todos os críticos do universo, todos os cenáculos … todas as informações! … Ao menor rumor, ao menor sussurro de produção judenga, todas as agências judaicas do mundo se põem a escarrar os raios do Trovão … e a publicidade acusada de racismo contra os judeus ecoa maravilhosamente … Todas as trombetas tiram a rolha, de um extremo ao outro dos continentes, saúdam, entoam, estilhaçam, lamuriam o maravilhoso Hosana! Ao sublime enviado do céu! Obviamente um judeu, incomparável na paleta! No écran! Na rabeca! Na política! Infinitamente mais genial! Mais inovador, sem contestação, do que todos os génios do passado (evidentemente todos Arianos). A epilepsia apodera-se dos goymes grotescos, como uma tromba de água. Eles aclamam em coro estes cucos. Atacam violentamente no coro, com toda a força da sua estupidez. Rebentam com tudo! … O triunfo do novo ídolo judeu! … Para os satisfazer basta que se lhes ofereça um pouco de merda judaica para chafurdarem … contentam-se com pouco … perderam todo o instinto … já não sabem distinguir o morto do vivo … “o orgânico” do superficial, o papelão do sumo puro, o falso do autêntico, a patranha de preferência à verdade … eles já não sabem nada … mamaram demasiado lixo, desde há muitos séculos e eras, para poderem perceber o autêntico … regalam-se com falsidades … confundem a lixívia com água pura … e acham-na bem melhor! Infinitamente superior. Estão em sintonia com a impostura. Evidentemente, a consequência é infelicidade, bordel! Todo o indígena que dê nas vistas por um qualquer dom original, por uma cantilena própria … uma pequeníssima tentativa! Torna-se logo suspeito, detestado, completamente maldito pelos seus irmãos de raça. É a lei dos países conquistados que nada em tempo algum deverá sacudir do seu torpor de horda escrava … Tudo deverá cair rapidamente … em ruminações de ébrios … São eles, os irmãos de raça, que se encarregam encarniçadamente da obstrução metódica, da difamação, da asfixia. A partir do momento em que um indígena se revela … os outros da mesma raça insurgem-se, o linchamento não anda longe … Na prisa, as sevícias mais asquerosas são infligidas pelos próprios forçados … Entre si … mil vezes mais cruéis que o carcereiro mais atroz …

Os irmãos de raça estão bem amestrados … Para o alcoólico, a água pura é um veneno. Odeia-a com todas as forças … não a quer ver à mesa … ele quer bosta engarrafada … em filmes, em livros, em tiradas, em canções de amor, em mijo … Só compreende o Judeu … tudo o que sai do esgoto judeu … regala-se com isso, pasma-se com isso … e nada mais! Os Arianos, sobretudo os franceses, já não existem, já não vivem, já não respiram, senão sob o signo da inveja, do ódio mútuo e total, da maledicência absoluta, fanática, máxima, do mexerico furioso, mesquinho, da bisbilhotice delirante, da alienação maldizente, do julgamento cada vez mais baixo, campónio, obstinado, vil e desprezível … completos escravos, agentes de provocação entusiásticos, carneiros, falsos como judas, cretinos de permanência e de taberna, admiravelmente adestrados pela polícia judaica, as delegações do grande poder judeu … Já não há qualquer sentido racial de entre-ajuda. Qualquer mística comum. Os judeus nadam adoravelmente neste mijo … Esta enorme e permanente velhacaria, esta traição mútua de todos contra todos, encanta-os e preenche-os … a colonização torna-se uma fonte de riqueza. Sobre esta venalidade mesquinha, absoluta, da costela campónia dos franceses, os judeus regalam-se, exploram, agiotam às mil maravilhas … atiram-se a este cadáver em decomposição abracadabrante como a hiena à tripa podre … Esta podridão é uma festa, o seu elemento providencial. Eles só triunfam na gangrena total.»

- Céline, "Bagatelles pour un massacre"


A Vingança do Chinês

É um pássaro? É um avião? Não, é... é a Super-China!...

«China to buy Portuguese bailout bonds. Euro ralies.»

Os américas devem estar capazes de morder tapetes.

quinta-feira, maio 26, 2011

Impagável

«O economista Medina Carreira considerou hoje que a economia portuguesa «não vai crescer o suficiente para que Portugal possa cumprir o exigido pela troika» e sublinhou que não ficará surpreendido se a dívida pública tiver de ser renegociada.»

Só não vê quem não quer. Ou por desonestidade simples ou estupidez agravada.
Analogicamente falando, o momento actual equivale a uns tipos que decepam as pernas a outro e depois pretendem estancar-lhe a hemorragia aplicando-lhe um torniquete pelos joelhos.
No fundo, partem dum misto de presunção e fantasia: a de que as pernas dos países se regeneram à maneira das caudas dos répteis.

Divinas marquises

«A mocidade de hoje viu, além disso, que os libertários, os socialistas, os democratas a arder em amor pelo povo, acabavam na concussão e no peculato, no uso, nas suas relações com o povo, da polícia e do exército. E, como esta experiência é a última, a mocidade de hoje lembrou-se de concluir que a realidade vale mais que as boas intenções, que é inútil pregar boas doutrinas se apenas as más podem vingar. |Mais vale, pensaram eles, que se defendam, desde logo, as doutrinas antipáticas. Por mim, acho preferível defender, como algum dia farei, com a devida argumentação sociológica, que é legítimo que os políticos roubem e espoliem o povo, do que roubar e espoliar o povo chamando a essa atitude "governo popular", "democracia", "liberdade" e outras cousas assim.
O amor à verdade substitui, na mocidade de hoje, o amor à mentira, ainda que generosamente encarado, que caracterizava a mocidade de ontem e de antes de ontem. De nada serve servir a mentira, por generosidade que seja. O anarquismo, o socialismo, o democratismo - todo esse lixo de coisas simpáticas que se esquecem de que teorizam para a humanidade de carne e osso - foram divinizações da mentira. E foram essa cousa a que Carlyle chama a pior espécie de mentira - a mentira que se julga verdade. Não foram o erro, que é admissível. Qualquer um erra. Mas não todos mentem inconscientemente.»

- Fernando Pessoa, "Páginas de Sociologia Política"

Quando todos mentem inconscientemente, todos des-São, se assim posso dizer. Este Des-Ser resulta, por exemplo, na actual Descida colectiva. Ao abismo.

terça-feira, maio 24, 2011

Quem pode não deve



Em todo o caso, convém recordar que o Paraíso Terreal não está exactamente - em mera questão de finanças estatais - muito melhor que nós. Os tipos pedem emprestado à media de 125 biliões/mês. A quem? Bela questão. Parece que funciona mais ou menos assim: pedem à Reserva federal. Esta vai na máquina de imprimir notas que tem na cave, imprime mais uns biliões, emite títulos, e já está. Distribui o guito pelos do costume e vende os títulos aos chineses. E tiveram estes gajos o descaramento de prender o Madoff, imaginem só!...
Em resumo, parece que com o liberalismo também não vamos lá.

segunda-feira, maio 23, 2011

Questões prementes

Existem duas questões prementes neste momento em Portugal: uma de higiene e outra de política. A primeira resolve-se com a remoção do actual Primeiro-ministro mais a respectiva associação de malfeitores. A segunda vai permanecer irresolúvel até que a necessidade force a remoção do actual regime. Porque longe de resolver-se com qualquer eleição alternativa ao actual escroque entronizado, vai agravar-se à medida que o tempo passa. Cada hora, cada dia, cada mês representarão mais um degrau na descida ao - ia para dizer vórtice, mas é mais ralo garantido. É só calcular os juros e multiplicar pelo índice crescente e consecutivo de recessão.
Por um lado, isto é trágico. Por outro, não deixa de ser justo e merecido: um povo e um país que deram em patos bravos só andaram a pedi-las este tempo todo. E se os políticos foram a trampa que se reconhece e proclama, o povinho não andou melhor. Que pare de armar ao sonso e à vítima profissional e adquira urgentemente um mínimo de vértebra e testículo. Caso contrário, Ibéria aí vamos nós!...
Bem digo eu que a substituir o lema "orgulhosamente sós" improvisaram à pressão o "alguém que tome conta de nós". E se não forem os espanhóis, hão-de ser, por algum desígnio ou vocação súbitos, os brasileiros ou, cereja no topo do monturo, os angolanos.

sábado, maio 21, 2011

O Médico e o Monstro




Haverá quem se admire com este excesso zelota da justiça americana no que concerne a crimes de índole sexual. E, de facto, que a violação efectiva seja merecedora de exemplar e rigoroso castigo é uma certeza; mas que daí se salte automaticamente para a prisão perpétua, mais lembra histerismo judicialeiro que justiça minimamente digna desse nome.
Poder-se-ia contrapor que tem um sentido prático toda esta desmesura penal do código americano: o de constituir firme mecanismo dissuasor dos crimes. Inferir-se-ia que, perante uma tal ameaça de apocalipse pessoal por dá cá aquela palha, ninguém se sentiria tentado a infringir as leis. O resultado seria assim benigno: menos delitos, menos condenações, menos dispêndio para os contribuintes com populações prisionais. Eu seria o primeiro a louvar a fórmula. A enaltecer a bondade da teoria.
Porém, o que é que nos mostra a realidade?
1. Os Estados Unidos têm um índice de encarceramento de 743 por cada 100.000 habitantes. O mais pequeno do mundo? Não, o maior.

Equivale a um número de cidadãos encarcerados na ordem dos 2,2 milhões (em fins de 2009). Ou seja, 3,6% da população adulta residente.
2. Este índice ou taxa de encarceramento experimentou uma subida vertiginosa a partir dos anos 80 do século passado.

Presumo que deve ter sido um dos maravilhosos resultados da ascensão do santo e liberal Reagan ao poder.

Mas, pergunto eu, se não serve para o que seria de esperar que servisse (isto é, para dissuadir a criminalidade) para que serve então um código penal tão exacerbado?
Bem se não serve para dissuadir, pelos vistos, serve para implementar. Os resultados, a avaliar pelos números , atestam-no. Ou então a criminalidade, para o caso, é irrelevante. Não se trata dum esforço racional, mas dum gozo puro: o de reprimir. A mentalidade calvinesca e puritoina (para quem aprecie freudices, que não é bem o meu caso) poderia, em parte, explicá-lo (na verdade, não explicava, embrulhava simplesmente em papel fantasia e psicopatologia de cordel).
Ou então não tem explicação, nem explicacinha. É mesmo assim: um monumento ao absurdo, mais um apenas, neste mundo devotado à loucura e à bestialidade imarcescíveis.
Seja como for, a nossa natureza curiosa de humanos incita-nos à demanda. Temos que procurar um nexo neste labirinto... um qualquer fio de Ariadna. O facto do paraíso liberal ser o país da Terra com mais cidadãos encarcerados não pode ser deixado ao mero acaso ou capricho do Destino. Mesmo o Rwanda, pós genocídio, em pleno coração de África, é suplantado por larga margem... e até Cuba, Deus meu, até Cuba!...



Devo, desde já, proclamar que assim como não viajo em psicanalhices, também não embarco em análises estruturalistas da loja dos trezentos. Portanto, ponho já de parte toda e qualquer explicação baseada no índice de pobreza dos Estados Unidos - 43,6 milhões à data de 2009 (qualquer coisa como 14,3% da população edenal); ou baseada no índice de Sem-abrigos à mesma data - 1,6 milhões; ou, ainda menos, escorada no índice de doenças mentais - 2,2 milhões de esquizofrénicos (1,1% da população), 5,7 milhões de desordeiros bipolares (2,6% da população), 3 milhões à beira de ataques de pânico, 2,2 milhões de desordeiros obsessivo-compulsivos, 7,7 milhões de desordeiros stress-traumatizados, além dos 3% da população que padece de Desordem de Ansiedade generalizada (GAD). Descartável também, logo à partida, é qualquer índice derivado de tendências suicidas ( e aqui permitam-me um parêntesis para enaltecer a minha generosidade investigadeira... reparem como seria simples derivar o crime nos Estados Unidos, dado o descabelado e furioso código penal, como simples fruto de impulso suicidário - "mãe, adeus! Fui fumar um cigarro em público e, à hora em que lês este bilhete, espero já estar linchado!"; "estou cansado de viver com tanta felicidade, vou convencer a minha namorada a denunciar-me por violação e arrastamento contrafeito do quarto para a sala; assim, além de perpétua pelo estupro, alcanço cadeira eléctrica pelo rapto!", etc, etc).
Voltando à vaca fria. Poderíamos eventualmente conjecturar que o excesso repressivo pós-80 corresponderia a uma retribuição mais ou menos fatal para os excessos tolerantes dos decénios anteriores. Isso, ainda que admissível, poderia explicar a repressão enquanto surto, mas não a repressão enquanto cultura arreigada e galopante. Quer dizer, a repressão endémica pode ser justificada por uma criminalidade endémica, mas não a explica nem é por ela explicável. Porque o que as explica a ambas, na íntegra, é o desregramento e a desregulação de uma determinada comunidade. Ora, é esse desregramento que geralmente, seja nos States seja em qualquer parte do mundo, acarreta toda uma crescente, infestante e panóplia legal, judiciária e encarcerante. A este propósito, e de modo a deixar bem explicitado o que significo por regra e consequente ausência, cito-me, de há dois anos atrás:
«A regra estabelece e fixa caminhos, configura mapas e fronteiras: a lei, mais que reforçá-los ou alterá-los através de códigos escritos, vigia-os, policia-os. Assim, a função principal da regra é orientadora; a da lei é repressiva. A regra rege, a lei obriga.
Se tivessemos que definir a nossa civilização, desde a Antiguidade até hoje, nestes termos, descobriríamos facilmente que o predomínio da regra foi sendo usurpado pelo predomínio da lei. Significa isto que, à medida que foi sendo menos regrada, a sociedade foi-se tornando mais legalizada e policiada. O que não é difícil de entender, basta levarmos em conta o seguinte axioma: "quanto mais desregrada é uma sociedade, mais leis e polícias exige". Ou, dito analogicamente, quanto mais doente está um organismo, mais médicos e enfermeiros precisa; ou quanto pior funciona uma máquina, mais mecânicos, reparações e oficinas reclama.
Assim, a regra implica um sistema de policompetências - há uma regência/competência familiar, há uma regência/competência religiosa, há uma regência/competência escolar, uma regência/competência militar e uma regência/competência profissional. Conforme transita por estes domínios, o cidadão, desde o berço à sepultura, aprende, introjecta e cultiva determinadas regras. Regras, essas, que imbricam mais em virtudes, valores e costumes de ordem cultural do que em códigos severos de ordem artificial/legal. Ao contrário, a lei, sobretudo a lei das sociedades onde o legalismo urde a hegemonia social absoluta, impõe uma monocompetência: a lei compete ao Estado. Dito por outras palavras, a regra é administrada por todos, segundo uma hierarquia; a lei é administrada por Um - o Estado Todo poderoso, segundo uma burocracia.
Também, enquanto a finalidade da regra é formar cidadãos autónomos, responsáveis, possuidores e administradores dum auto-domínio, o objectivo da lei, ao inverso, promove cidadãos dependentes, irresponsáveis, sujeitos à administração central e sob vigilância.
É evidente que uma sociedade burocratizada é muito menos livre que uma sociedade hierarquizada. Como é indiscutível que o desregramento constitui apenas o cavalo de Tróia da repressão. E no entanto, pasme-se, são as sociedades burocratizadas, onde o desregramento orquestrado apenas justifica e promove o fortalecimento do aparato repressor e policial, que clamam a liberdade como sua padroeira rainha. O que não admira: sempre foi na boca de escravos que medraram as cantigas.
(...)
Somos testemunhas vivas, se bem que desatentas e ofuscadas, de todo este processo. Quando, por exemplo, citando um caso recente e em vias de banalizar-se, o desregramento duma escola é invocado como motivo para intervenção da polícia e dos tribunais, ou seja, quando a corrosão das regras serve de pretexto à ingerência da longa patorra da Lei, está-se a surpreender em flagrante todo esse tortuoso enredo. Note-se como os mesmos -burocratas do aparelho de Estado - que promoveram e instauraram a destruição das regras na escola (tanto quanto na família) vêm depois, em clamores escandalizados e pudibundos, convocar a intervenção urgente e exemplar do Estado. Num ápice deveras conveniente e programado, o problema da falta de regra transforma-se num problema de falta de lei: um défice de civismo dos cidadãos degenera rapidamente em défice de polícia. Não custa muito adivinhar que, brevemente, se instalarão câmaras de vigilância nas salas de aula, como se vêm instalando nas auto-estradas, centros comerciais, aeroportos, estádios, etc. Logo reforçadas a detectores de metais, vigilantes, pulseiras de segurança e sabe o diabo mais o quê. Nada disto é inocente. Não é puro acaso. O desregramento a martelo traficado por liberdade puro néctar em que todos estes bufarinheiros e vendedores da banha-da-lei se desunham não é acidental. Dito ainda com maior precisão, o desregulamento que é - permanente e persistentemente - insuflado na nossa sociedade (e que se traduz na dissolução da família, da religião, da escola, do exército e das profissões ), apenas prepara tudo para a absorção completa pelo Estado. Um Estado - uma hiper-burocracia sociofágica - que, estilhaçadas todos os limites e fronteiras que a Regra estabelecia, numa ultrapassagem permanente e desenfreada de todos os marcos, lateja agora em ímpetos e furores para-nacionais, globais, planetários. Um Estado que propositadamente desregula para depois reprimir e obrigar. Este desregulamento tem no mercado o seu agente catalizador. É um facto. Como podia tê-lo (e já experimentou usá-lo, em tandem) na classe, na crença ou no pedigree. Porque, além do mais, o Estado corporiza essa capacidade maléfica de instrumentalização desmedida puramente materialista, mundana, artificial. Ou seja, desregulada, mecânica, execranda, porque desligada de qualquer vínculo ao sagrado, sem qualquer respeito à História, nenhuma atenção ao Cosmos, nem a mínima consideração pelo indivíduo. Uma mera exorbitância e proliferação de meios sem qualquer princípio nem fim.»

Pois bem, na sociedade americana constatamos este sinistro paradoxo: ao mesmo tempo que é uma sociedade que faculta, facilita e incita ao desregramento, à violência, ao ego-rex, é uma nação com acessos paroxísticos e desgrenhados dum exorbitante e rústico puritanismo, duma moralidade a raiar a histeria evangélica, em recriação grotesca e labrega do génesis primordial - que é como quem diz, do paraíso como mero pretexto para o castigo e a condenação. Da liberdade como estreito parque jurássico para o pecado e a culpa. Tudo isto, claro está, coado, filtrado e bombado através de ecrãs. Absorvido, injectado e subministrado por via intra-venal. Uma nação genuinamente esquizofrénica? Temo bem que sim. E, no entanto, uma horda desenfreada que se arvora o título de locomotiva do progresso e da civilização. Exportadora em série e por atacado da sua própria esquizofrenia particularmente furiosa. Em todas as áreas e domínios, da cultura à economia, da educação à segurança, da ciência à propaganda. De tal modo que, ao mesmo tempo que são os que mais desrespeitam limites de défice, dívida ou tratado, são, com idêntica pressa, superlativa velhaquice e por manhosas vias, os que mais insuflam nos outros a exigência de austeridade forçada, crise crónica e rigor nas contas públicas. Ou, exemplo ainda mais emblemático, a sociedade que mais liberdade exporta pelo mundo, que mais libertação e democracia salda ao desbarato, é aquela que mais prisioneiros fabrica entremuros. Faz lembrar aqueles psicopatas que passam na rua por beneméritos e em casa brutalizam a mulher e os filhos. Ou aquele personagem de Stevenson que de dia era médico e à noite monstro.
Para quem, apesar disto tudo, continuar ainda a surpreender-se com o tele-pelourinhamento do tal DSK na capital da Liberty Inc, relembro apenas um conjunto de eventos do não muito distante ano de 2006:

Episódio isolado, aberrante e bizarro? Exagero pontual de educadores desequilibrados, senão mesmo psicopatas?
Tirem daí o sentido. Em Novembro, os administradores duma escola no Texas suspenderam uma aluna de 4 anos por esta ter tocado desapropriadamente uma auxiliar educativa. A petiz terá, vejam lá bem, abraçado a senhora. Também durante o ano lectivo de 2005/2006, no Maryland, 28 crianças de infantários foram suspensas por ofensas sexuais. Por conseguinte, meus amigos, não se trata dum caso anómalo. Antes pelo contrário, é toda uma nova tendência do Melhor dos Mundos. De pequenino se policia o pepino. Mais uns anitos e ninguém duvide: temo-la aí entre nós, à bela tendência, já meio requentada, como sempre, mas ainda toda pimpona. Americanos de imitação, aspirando a novos upgrades na disquete operativa, é o que por aí menos falta.»

Em síntese e conclusão: para que serve então o abstruso código penal americano? Apenas para proporcionar e demonstrar a excelência do sistema judicial americano. Tantas pessoas encarceradas só podem significar que aqueles polícias, procuradores, juízes e carcereiros não brincam em serviço, não vão em grupos e, pelo contrário, ministram inexorável e incansavelmente a lei. Deve ser por isso que a excelência portuguesa também é tanta: também somos um dos três países com maior taxa de encarceramento da Europa.

Adenda: Mais um caso recente deveras sugestivo. Uma professora suspeita de manter relações sexuais com cinco alunos, todos maiores de 18 anos, numa escola do Texas. Que faz a direcção da escola? Convoca a professora para inquérito e eventual procedimento disciplinar (suspensão ou despedimento, por exemplo)? Não; chama a polícia e a docente vai presa. Incorre em prisão maior, presumo.

quinta-feira, maio 19, 2011

Descubra as semelhanças




Lembram-se do Eliot Spitzer? Presumo que não. E o vosso problema é esse: fora a milupa da notícia, no instante a ferver, manjada de pé, ao balcão, fica nada.
Mas eu relembro:

Naturalmente, o leitor não é daqueles ingénuos que acreditam que um político pode ruir por razões de moral pública. Nem a moral pública é coisa que exista, nem a sua mistificação significa mais que uma invariável cortina de fumo. Quando se abate um político, arranja-se um pretexto e abate-se. Mas a razão pela qual é abatido nada tem que ver com o pretexto. Permanece oculta, como oculta fica a mão que move os fios. Portanto, não foi por ir às putas que o Eliot se tramou. Nem ninguém estava minimimente preocupado, a começar na própria esposa, que ele andasse ou não andasse nas putas. Por essa ordem de ideias, então o que não seria quando se descobriu que o correspondente na Casa Branca, James Guckert, que fazia perguntas de encomenda para a administração republicana, era, na verdade, o prostituto gay Jeff Gannon, e que, pior ainda, segundo os próprios registos do Serviço Secreto (que trata dos acessos à Casa Branca), muitas das suas visitas tiveram registos da hora de entrada mas não de saída?... E o que é que aconteceu? Nada. Dois bloggers descobriram a morosca, meteram a boca no trombone, O Gannon foi bugiar e acabou-se. Agora comparem com o escândalo em redor das nódoas do vestido da Monica Lewinsky...
Após meditar no assunto, dei comigo a descrer da própria premissa base de tudo isto - a de que Eliot Spitzer estava na calha para se vir a tornar o primeiro presidente judeu dos Estados Unidos... Ponho-me no lugar dos israelitas. Estaria eu interessado em ter um presidente judeu nos Estados Unidos? Se tenho chusmas de gentios prontos a desempenhar a tarefa com bem maior zelo e diligência, com fanatismo de renegado e fervor de tartufo, para quê arriscar com um alvo vivo e permanente para todas as campanhas de desconfiança e de verberação de geonepotismo, geotribalismo, etnofacciosismo, etc., etc.? Se um gentio desempenha com vantagem o cargo, para quê queimar e sujeitar ao desgaste um congénere? Além de que um judeu acabaria por dar menos garantias de submissão. Basta atentarmos que muitos dos críticos mais contundentes de Israel até são judeus e nem todos o fazem por encomenda. Basta também constatarmos como se encontra muito maior liberdade de expressão crítica ou informativa no próprio Estado de Israel do que na generalidade dos media ocidentais. É claro que, pelo sim pelo não, estavam a tratar de ter o Spitzer na mão, com o devido cordelinho preso aos testículos, mas esse era um cuidado básico, elementar, estrita rotina operativa. Não significava forçosamente uma aposta declarada ou conspirativa. Tudo somado, uma tal exposição futura até acabaria por constituir mais um risco do que uma conquista. A discrição é regra basilar da manipulação; a trama hospeda-se e nidifica na penumbra. (...)»

Na altura, o meu vaticínio final saiu errado. Perdi redondamente na aposta. Para compensação, dou-vos agora uma dicazinha bonificada: sabem quem é que veio agora ajudar ao enterro de DSK? Calculem: a mesma "madame" que já tinha tratado do enterro de Spitzer. Nem mais. Pura coincidência, claro está.


Pois, filhinhos, é fodido, custa até admitir, mas o mundo não é exactamente a Disneylandia. Embora, há que reconhecê-lo, o que não falta por aí é Plutos, mickeys, patinhas e manchas negras. Aos pinotes.

quarta-feira, maio 18, 2011

Proud friend of Israel

A pedido. E apenas por isso.

Facto: DSK estava na rampa para ser o próximo presidente de França. Já não está.

O resto é conversa. Fizeram-lhe a cama? Não era difícil. Ele, pelos vistos, deitou-se nela. Ou dizem que se deitou. Ou, pelo menos, tentou ou esboçou deitar-se, o que, por aquelas paragens pode dar no mesmo. E como certas notícias, oriundas de certos quadrantes, antes de se tornarem dogma, estabelecem lei...

Factos à parte, restam as conjecturas. Aprecio trilhos pouco frequentados. Por isso mesmo, dou voz à insuspeita comunidade judaica francesa (passe o oximoro).


E, logo adiante, um detalhe deveras interessante para o caso em causa:


Aqui entre nós, eu também não estou a ver a criatura, apesar de socialista e francesa, a armar ao fauno desenfreado, ao violador de Telheiras, ou ao sátiro louco assim por dá cá aquela toalha. Não sei porquê, mas não me parece lá muito verosímil. Não quadra. Enquanto socialista (fazendo fé nos seus émulos nacinhais), seriam mais rapazinhos; enquanto francês, seriam mais porcarias. Mas isso sou eu, que não percebo nada disto. Tresvejo, certamente. Pois se até sumidades morais como o prezado Jansenista (cuja sensatez não titubeia na maior parte dos casos) já taxaram liminarmente o desventurado de, e passo a citar, "sórdido e decadente varrasco que caiu nas malhas da justiça norte-americana"...
O que vale é que a culpa, a verdadeira culpa, não é do pobre hebreu, mera vítima de infecto-contágio social (e daí, quem sabe, o germe do seu socialismo), mas, outrossim, compenetremo-nos irmãos na desgraça, do "macho europeu", esse mesmo. Esse tal! Esse nefasto ogre ferrabrás! Esse todo, quem mais!... Ele próprio, ainda e sempre. De que ímpia maneira? Por via dessa tara ancestral e congénita que, apesar de semi-extinto, foragido, a monte, o bruto teima em exibir: a (no eloquente diagnóstico do caro Jansenista) "selvajaria cerda do direito de pernada" . Não obstante, mesmo com esta prudente salvaguarda, espero que a lesta catalogadura não chegue aos ouvidos da distinta e rinociosa comunidade transpirineica. Lá que o insigne blogueur me classifique de cerdo bravio, na minha assumida essência e existência de macho europeu, ainda é como o outro. Antes cerdo selvagem (javali prós amigos) que delicado e refinado gruim de chiqueiro. Agora que apode, assim de chofre, quase ao virar da esquina, de "decadente varrasco", um tão reputado "israelita" é que já não me parece nada primoroso, nem à altura dos seus (justíssimos) créditos e pergaminhos. Não vou desconsiderá-lo por tão pouco, fique tranquilo, mas passarei a temer seriamente pelo futuro da sua carreira e pela ementa dos seus filhinhos.
Além de que, repito, continuo a manifestar o mais profundo cepticismo sobre a peregrina hipótese de DSK e Ildefonso Caguinchas serem uma e a mesma pessoa.

PS: Do Ildefonso, aliás, não tenho quaisquer dúvidas que se atiraria fogosamente à camareira. Mas duvido muito que ela se queixasse.


Da Geo-Panaceia, vulgo Banha da Cobra

«Ainda se o liberalismo compensasse o ser anti-egoístico com o ser, de qualquer forma, um aspecto de sentimento patriótico; se, por exemplo, a teoria liberal tivesse por base o ser aplicada só a determinada nação - a dos seus teóricos - com o fim, absurdo mas explicável, de dar a essa nação a superioridade, pelo "gozo da liberdade", sobre todas as outras, até certo ponto, talvez o liberalismo, equilibrasse o mal que lhe advém da outra parte da sua tese. Mas se há traço característico do liberalismo é o de ser extensivo a toda a humanidade, de ser uma panaceia universal. E assim, nem esta defesa, absurda que fosse, lhe resta.
O assunto comportaria, a não ter que limitar-se, uma série muito mais extensa de considerações, entre as quais a menos interessante não seria, por certo, a demonstração de que um povo são é espontaneamente aristocratista ou monárquico; de que nunca um povo foi liberal ou democrático; de que nunca um povo defendeu, de seu, senão os seus egoísmos, indivíduo a indivíduo, e a sua pátria, colectivamente; que nunca, nunca, excepto por doença da sociabilidade, ou perversão da decadência, os seus "direitos", as suas "justiças" foram assunto por que um homem do povo desse o esforço de se levantar de um banco ou de tirar as mãos das algibeiras.
Deixemos , porém, o assunto, e esses "direitos" e "justiças" aos que forçaram o comércio do ópio sobre os chineses, estrangularam as crianças irlandesas com os cabelos maternos, e deixaram morrer as mulheres boers nos campos de concentração do Transvaal.»

- Fernando Pessoa, "Páginas de Sociologia Política"

terça-feira, maio 17, 2011

Da ubíqua elitose

«Um povo, de resto, sobretudo se se sentiu oprimido, pode a princípio simpatizar com o movimento liberalista; mas, tarde ou cedo, de desconfiar dele, passa a odiá-lo. O caso é simples. Ou o liberalismo segue o seu caminho lógico e justo, ou não o segue. Se o segue, entra, mais tarde ou mais cedo, em conflito com privilégios que a ele, povo, tocam já de perto; porque privilégios todos os têm, reais ou esperados. Se o não segue, que é o que em geral acontece - dada a impossibilidade radical da operação do liberalismo e os atritos que quotidianamente encontra ao tentar existir - vai o liberalismo gradualmente desviando-se do seu primitivo intuito, porventura sincero, e torna-se uma mera arma de espoliação para os políticos sem escrúpulos, modo-de-viver dos Lloy Georges e dos Clemenceaux da charlatanice política internacional. Mero implemento de ambiciosos, quando não positivamente de ladrões, o liberalismo acaba por despertar as iras do povo, quando o caso se não dê de no povo, por decadente, já não haver a possibilidade sã da ira legítima.
O caso é, pois, que, sendo assim anti-egoísta, o liberalismo é radicalmente anti-popular. Para se ser "liberal" é preciso ser-se inimigo do povo, não ter contacto nenhum com a alma popular, nem a noção das noções instintivas que lhe são naturais e queridas. Teoria, de resto, originada por emissários da aristocracia inglesa, no seu conflito com a velha monarquia; espalhada, depois, por homens de letras franceses, mais como arma contra a Igreja que contra o ancien régime, o liberalismo ainda hoje se conserva fiel à sua origem extra-popular. Hoje, porém, são os transviados do povo quem teoriza - os infelizes que saíram do povo e, perdido o contacto com ele e com os seus instintos naturais, não subiram, porém, a nenhuma das aristocracias que o esforço pode conquistar, eternos intermédios da vida social, sem cultura verdadeira, sem posição conquistada, sem valor interna ou externamente definido. Escravos de todas as invejas e de todas as falências, o seu subconsciente indisciplinado espontaneamente os leva a colaborar em quanto seja obra de dissolução social, traidores naturais a tudo, excepto à sua própria incompetência para tudo. Tão triste e débil época é a nossa que as próprias teorias falsas desceram de categoria nas pessoas dos seus sequazes! Feito, assim, por quem ou não é povo, ou já não sabe sentir como povo, que admira que este sistema venha eivado de todos os vícios anti-instintivistas, de todas as raivas anti-naturais?»

- Fernando Pessoa, "Páginas de Sociologia Política"

Quase um século depois, a maleita, como está bem à vista, agravou-se. Do estertor, saltou-se para a putrefacção acelerada. Dizer que, mais que um problema de partido, nos aflige e arruína um problema de regime, sendo verdade, não diagnostica, todavia, com exactidão a doença. Na realidade, a Portugal avassalam-no, em perfeito tandem só na aparência paradoxal, uma ausência e uma abundância - a ausência de povo digno desse nome e a abundância copiosa de "liberais", ou seja, na definição rigorosa de Pessoa, "de traidores naturais a tudo, excepto à sua própria incompetência para tudo". Auto-proclamam-se, com imensa prosápia xaroposa, "elites". E vão dos Sócrates eleitos até a generalidade dos socratizados eleitores, passando pela grande maioria dos cripto-neo-pós-sócrates concorrentes.

domingo, maio 15, 2011

Tiro às bases

Em matéria de tiros no pé, o PS, convenhamos, está, mais que imunizado, sobreprotegido. Mesmo que os dê não os sente. Mesmo que os alveje, não os encontra. É a incomensurável vantagem de quem, a concurso ou desfile, comparece de cascos. Insensível aos cravos, inexpugnável às balas.

terça-feira, maio 10, 2011

O Concurso da Desordem

Algures, pelo ano da Desgraça de Deus de 2005, vaticinava eu o seguinte:
"Muitas vezes esquece-se que, mais que com ciências e filosofias, a humanidade, por estes nossos dias, atarefa-se, moureja e desunha-se com o aperfeiçoamento duma Teoria do Desconhecimento. A Antipistemologia, permita-se-me o neologismo. Não me espantarei até se a Ignorância devier forma de religião Global. Há indícios alarmantes, tendências avassaladoras, de que a liberalização dos mercados corresponde, nas mentes, à liberalização da asneira. Não é por acaso que o asno sempre foi o companheiro inseparável do almocreve."

Acho isto da "Teoria do Desconhecimento" um must. Aliás, é cada vez mais que evidente o fenómeno. Note-se, entretanto, o tremendo avanço: do conhecimento enquanto possibilidade desceu-se ao Desconhecimento enquanto necessidade.
De certa forma, é o descogito: não penso - desconheço -, logo existo. Em simultâneo, neste descartesianismo de conveniência, parece estar a ocorrer outra mutação sintomática: a dúvida converte-se em dívida. Metódica. Trouxe-nos longe o Discurso do Método: ao Concurso da Desordem.


quarta-feira, maio 04, 2011

Joint venture, lone desventure

Num artigo dos Idos de Março coloca-se o dedo numa das feridas:

«The lesson is clear, argues Barry Eichengreen, an economist and an expert on the euro and its origins — sustained austerity that is not supplemented by some form of debt reduction in which the holders of bank or government debt are forced to take a loss is not just unworkable but unfair as well.

“When you reduce the incomes of the people who service the debt but you don’t reduce the incomes of the bondholders, you won’t reduce the level of debt,” he said. “Some might call it shared sacrifice, but some people are not sharing.

While the argument against restructuring has been that the risks of contagion are too high, it is becoming increasingly clear that the real reason behind Europe’s reluctance to accept losses on Greek, Irish and Portuguese debt is that the cost to European banks would be prohibitive. »

No fundo, bem no fundo, estão a imolar-se países para que a Banca se salve. Pune-se o consumidor, o junkie mais que inveterado, mas poupa-se o dealer, a bem do negócio. Só a corrupção passiva merece, assim, repreensão e castigo. A activa passa por virtude empresarial e mais valia económica.

Os milhões que agora nos despejam em cima, servem essencialmente para pagar aos bancos alemães, para remendar os nossos e pagar as devidas comissões (as migalhas do costume) aos intermediários, alcaiotes e parasitas que nos desgovernam e apascentam ao Mercado. Daqui a três anos, ou eu me engano muito (oxalá!), ou estaremos bem piores. De caídos na merda, corremos o sério risco de acabarmos diluídos nela. Mas não será precisamente esse o corolário fatal e lógico de toda esta civilização do cuspo?...

Mamon é um deus impiedoso e cruel, que exige sacrifícios sanguinários e ininterruptos. E nem sequer podemos argumentar ingenuidade ou ignorância. Fomos fartamente avisados.

Eles vivem...



Entra-me ele, esbaforido, na tasca, digo ciber-tasca, Sua Estridência, o Caguinchas, e quase me danifica os tímpanos, tal o berreiro...
-"Dragão!, já sabes a última? O Seal matou o Bin Laden!!... Disseram mesmo agora! Foi o Seal, vê lá tu! O barbaças deve-lhe ter oferecido camelos pela Heidi!... E o bumbo, na volta, não foi de modas: com a ciumeira, fulminou o outro!..."
Tranquilizei-o.
- "Não, Caguinchas, não faças caso, isso é tudo desinformação. Trata-se do Bin Laden, não é?..."
- "Esse mesmo, ó Labaredas. Cuspido e escarrado. Aquele que 'tão sempre a matar e ele a ressuscitar como se nada fosse!... O super-felino!"
-"Pois. Então, se é esse, nunca poderia ter sido O Seal. Isso, digo-te já (mas não contes a ninguém), só pode ter sido o Elvis.

Eles vivem, eles morrem, eles matam-se uns aos outros!... Ciúmes não há piores que os macabros.

terça-feira, maio 03, 2011

Mais coisas da Loja dos Trezentos


Não é só por conveniência eleitoral que o "abate" de Bin Laden pode ser esgrimido numa altura destas. Essa, quando muito, poderá ser uma confecção conjuntural. Há uma outra, digamos assim, estrutural bem mais interessante e que, lá como cá, importa atenuar e anestesiar por todos os meios e métodos. Ora oiçam:

«U.S. to Take ‘Extraordinary’ Steps as It Nears Debt Ceiling


É a chamada vaselina para as massas. Lubrifica-as e reconforta-as. Tal qual nós gememos, com típica resignação, " estamos falidos e vamos ser esmifrados até à medula, mas temos a democracia; eles chilreiam, com patega euforia: hurra, estamos mais que falidos, vão-nos passevitar sem dó nem piedade, mas matámos o Bin Laden!...



segunda-feira, maio 02, 2011

A Luta Continua




Cá estamos nós perante um típico acto de fé. De fézinha, para não chamar outra coisa.
Temos que fazer fé(zinha) na palavra daquela espécie de Papa (no sentido milupa do termo) Calvinista, o presidente daquele amontoado de estados do outro lado do Atlântico. Proclama-nos ele, em tom seráfico e columbino, a morte do gambosino-mor. Como prova, temos umas fotos manhosas, uns inefáveis testes de ADN e o basqueiro simpático duns milhares de papagaios facilmente impressionáveis. Porque o corpo, esse, com despacho e pressa inauditos, foi lançado aos peixes.
Mesmo regimes trogloditas e semi-pré-históricos, como o de Eduardo dos Santos, por alturas de equivalente abate, deram-se ao cuidado básico de expor um presunto (neste caso, relembro, de Jonas Savimbi, devidamente crivado).
Caso para dizer: o anterior presidente ouvia vozes, o actual encorpora-as e debita à hora os noticiários. Compreende-se que perante um tal regime mediúno-apofântico certos comprovativos empíricos básicos se tornem despiciendos. A maralha está de tal modo aturdida e adestrada a emborcar todo o tipo de mistelas, que engole quanto lhe despejem pelo tele-funil. Aliás, é até nestas alturas bestialmente místicas, que dá gosto ver os nossos adoradores frenéticos de Locke e lambuzadores feéricos de Hume, todos à uma, sem excepção, num verdadeiro coro angélico, a aderirem subitamente à crendice e à superstição (se é que alguma vez de lá saíram).
Já o caso dos actuais chupa-cus da américa em pouco ou nada se distinguirem dos seus predecessores de volta do esfíncter soviético, até o lema com que encerram os palanfrórios de ocasião o atesta: "A luta continua". Pois continua. A luta e a puta que nunca mais os pára de parir a todos.

Quanto à foto em epígrafe, pertence a este artigo.

Coisas da Loja dos Trezentos

Glosando a citação de Twain, deste mesmo blogue, apetece complementar:
«Há três - aliás, quatro - espécies de mentiras: as mentiras, as mentiras sagradas, as estatísticas... e as notícias. »

domingo, maio 01, 2011

Lúmpen noticiariado


Há alguma classe tão ou mais venal e rameira do que a classe política? Há. A classe jornalística.
Mas acima dessas duas na desclassificação moral e ética, só conheço uma: a das agências de informação estatais, vulgo serviços mais ou menos secretos. É uma súcia ultradispendiosa cuja utilidade, tudo somado, é basicamente nenhuma; e que pode ser definida, sem grande margem de erro, como uma seita pseudo-esotérica transnacional de pirómanos bombeiros. Numa percentagem a raiar os noventa por cento (e estou a ser benévolo) estas cambadas de inúteis pagos a peso de ouro, não pesquisam informação: inventam-na; muito menos a analisam: atamancam-na ao gosto do freguês. Fala-se de rivalidades e atritos entre as diversas agências dos variados países (como, de resto, e em tese, seria de esperar). Pura fantasia. A sacanice e o chibanço imperam, isso sim, no interior das próprias agências. Os fulaninhos e fulaninhas não têm tempo para combater quaisquer agentes externos, mais ou menos hostis, porque estão muito ocupados a espiar-se a lixar-se entre si. A tentar usar o parceiro do lado como degrau para a sua ascensão urgente e meteórica aos mais chorudos cargos da corporação. Cada mamífero daqueles, mal transpõe a porta do curral hermético, julga-se automaticamente um semi-deus que deveria reinar sobre todos os outros, na forma inefável de sacrossantíssimo director da agência. Inebria-o, até ao verniz mais ou menos colorido das unhas, a descoberta saloia do "poder da informação". Desatam a sentir-se poderosos, coitados. Deste cafarnaum rasteiro resulta que a rede de informação raramente ultrapassa ou desancora da mera teia de quadrilhices e mexericos. Colocados no estrangeiro, numa qualquer missão, o caso piora. Além de antecipadamente revelado e denunciado pelos seus rivais intestinos, o peregrino entra - até porque o colocam - num verdadeiro stress noticioso. Todavia, nada que toda uma agenda previamente municiada (e municiadora) de fontes inquinadas e fantasiosas não resolva. E assim passa do stress à diarreia num abrir e fechar de olhos. Sobretudo fechar. O contribuinte paga tudo: as viagens, a estadia, as fontes mirabolantes e ainda as ajudas de custo.
Poderia alongar-me muito mais sobre este assunto,mas o estômago revolta-se, pelo que me fico por este retábulo sucinto.
Dir-me-ão que isto, eventualmente, retratará com fidelidade os Serviços de Informação da República Portuguesa, mas que, por exemplo, os Estados Unidos é outra loiça. Pois, realmente é. É isto elevado à décima potência. Se cá é uma seita, lá é uma constelação delas. Uma marabunta aos saltos e aos voos. Não é por acaso que o défice americano é o que é. Se a nossa confraria de mentecaptos já custa uma fortuna ao erário, aquela chusma nas américas sai por um imensilhão de balúrdios.
Os americanos, entretanto, já não sabem exactamente quantas agências de informação - a que eles chamam com imensa piada "inteligence" - têm. Nem, muito menos, para que servem ou do que efectivamente se ocupam. Há agências a espiarem-se umas às outras e a armadilharem-se, desinformarem-se ou , pelos mais diversos meios, embaraçarem-se entre si. A promiscuidade com aqueles que era suposto vigiarem, ou de alguma forma neutralizarem, essa, então, adquire já contornos de grémio industrial. Uma forma de qualquer super-potência preservar o seu estatuto hegemónico é tudo fazer para evitar que outros o adquiram. A rapaziada da CIA entende isso como carta branca para lançar o caos no mundo e retirar disso uma belo lucro pessoal. Os resultados já não apenas se adivinham, verificam-se, e não vão ser nada brilhantes.
Manda a prudência, a experiência e a eficácia que o pessoal das informações operasse num número o mais reduzido possível. De resto, à própria semelhança dos estados que deveriam servir. Mas é o contrário que acontece. Estados descomunais nutrem inteligence services exorbitantes. E os contribuintes - esmifrados sob a engrenagem de todo este mega-encefalo burocrático, à bela maneira das formigas obreiras, alimentam ambos: os dirigentes e os vigilantes. Poderá a União Soviética ter falido, mas o seu modelo mirmitónico de esbirraria prevaleceu e contagiou o globo.

PS: Nem me perguntem como é que eu sei destas coisas. Mas o facto é que sei.