sábado, maio 21, 2011

O Médico e o Monstro




Haverá quem se admire com este excesso zelota da justiça americana no que concerne a crimes de índole sexual. E, de facto, que a violação efectiva seja merecedora de exemplar e rigoroso castigo é uma certeza; mas que daí se salte automaticamente para a prisão perpétua, mais lembra histerismo judicialeiro que justiça minimamente digna desse nome.
Poder-se-ia contrapor que tem um sentido prático toda esta desmesura penal do código americano: o de constituir firme mecanismo dissuasor dos crimes. Inferir-se-ia que, perante uma tal ameaça de apocalipse pessoal por dá cá aquela palha, ninguém se sentiria tentado a infringir as leis. O resultado seria assim benigno: menos delitos, menos condenações, menos dispêndio para os contribuintes com populações prisionais. Eu seria o primeiro a louvar a fórmula. A enaltecer a bondade da teoria.
Porém, o que é que nos mostra a realidade?
1. Os Estados Unidos têm um índice de encarceramento de 743 por cada 100.000 habitantes. O mais pequeno do mundo? Não, o maior.

Equivale a um número de cidadãos encarcerados na ordem dos 2,2 milhões (em fins de 2009). Ou seja, 3,6% da população adulta residente.
2. Este índice ou taxa de encarceramento experimentou uma subida vertiginosa a partir dos anos 80 do século passado.

Presumo que deve ter sido um dos maravilhosos resultados da ascensão do santo e liberal Reagan ao poder.

Mas, pergunto eu, se não serve para o que seria de esperar que servisse (isto é, para dissuadir a criminalidade) para que serve então um código penal tão exacerbado?
Bem se não serve para dissuadir, pelos vistos, serve para implementar. Os resultados, a avaliar pelos números , atestam-no. Ou então a criminalidade, para o caso, é irrelevante. Não se trata dum esforço racional, mas dum gozo puro: o de reprimir. A mentalidade calvinesca e puritoina (para quem aprecie freudices, que não é bem o meu caso) poderia, em parte, explicá-lo (na verdade, não explicava, embrulhava simplesmente em papel fantasia e psicopatologia de cordel).
Ou então não tem explicação, nem explicacinha. É mesmo assim: um monumento ao absurdo, mais um apenas, neste mundo devotado à loucura e à bestialidade imarcescíveis.
Seja como for, a nossa natureza curiosa de humanos incita-nos à demanda. Temos que procurar um nexo neste labirinto... um qualquer fio de Ariadna. O facto do paraíso liberal ser o país da Terra com mais cidadãos encarcerados não pode ser deixado ao mero acaso ou capricho do Destino. Mesmo o Rwanda, pós genocídio, em pleno coração de África, é suplantado por larga margem... e até Cuba, Deus meu, até Cuba!...



Devo, desde já, proclamar que assim como não viajo em psicanalhices, também não embarco em análises estruturalistas da loja dos trezentos. Portanto, ponho já de parte toda e qualquer explicação baseada no índice de pobreza dos Estados Unidos - 43,6 milhões à data de 2009 (qualquer coisa como 14,3% da população edenal); ou baseada no índice de Sem-abrigos à mesma data - 1,6 milhões; ou, ainda menos, escorada no índice de doenças mentais - 2,2 milhões de esquizofrénicos (1,1% da população), 5,7 milhões de desordeiros bipolares (2,6% da população), 3 milhões à beira de ataques de pânico, 2,2 milhões de desordeiros obsessivo-compulsivos, 7,7 milhões de desordeiros stress-traumatizados, além dos 3% da população que padece de Desordem de Ansiedade generalizada (GAD). Descartável também, logo à partida, é qualquer índice derivado de tendências suicidas ( e aqui permitam-me um parêntesis para enaltecer a minha generosidade investigadeira... reparem como seria simples derivar o crime nos Estados Unidos, dado o descabelado e furioso código penal, como simples fruto de impulso suicidário - "mãe, adeus! Fui fumar um cigarro em público e, à hora em que lês este bilhete, espero já estar linchado!"; "estou cansado de viver com tanta felicidade, vou convencer a minha namorada a denunciar-me por violação e arrastamento contrafeito do quarto para a sala; assim, além de perpétua pelo estupro, alcanço cadeira eléctrica pelo rapto!", etc, etc).
Voltando à vaca fria. Poderíamos eventualmente conjecturar que o excesso repressivo pós-80 corresponderia a uma retribuição mais ou menos fatal para os excessos tolerantes dos decénios anteriores. Isso, ainda que admissível, poderia explicar a repressão enquanto surto, mas não a repressão enquanto cultura arreigada e galopante. Quer dizer, a repressão endémica pode ser justificada por uma criminalidade endémica, mas não a explica nem é por ela explicável. Porque o que as explica a ambas, na íntegra, é o desregramento e a desregulação de uma determinada comunidade. Ora, é esse desregramento que geralmente, seja nos States seja em qualquer parte do mundo, acarreta toda uma crescente, infestante e panóplia legal, judiciária e encarcerante. A este propósito, e de modo a deixar bem explicitado o que significo por regra e consequente ausência, cito-me, de há dois anos atrás:
«A regra estabelece e fixa caminhos, configura mapas e fronteiras: a lei, mais que reforçá-los ou alterá-los através de códigos escritos, vigia-os, policia-os. Assim, a função principal da regra é orientadora; a da lei é repressiva. A regra rege, a lei obriga.
Se tivessemos que definir a nossa civilização, desde a Antiguidade até hoje, nestes termos, descobriríamos facilmente que o predomínio da regra foi sendo usurpado pelo predomínio da lei. Significa isto que, à medida que foi sendo menos regrada, a sociedade foi-se tornando mais legalizada e policiada. O que não é difícil de entender, basta levarmos em conta o seguinte axioma: "quanto mais desregrada é uma sociedade, mais leis e polícias exige". Ou, dito analogicamente, quanto mais doente está um organismo, mais médicos e enfermeiros precisa; ou quanto pior funciona uma máquina, mais mecânicos, reparações e oficinas reclama.
Assim, a regra implica um sistema de policompetências - há uma regência/competência familiar, há uma regência/competência religiosa, há uma regência/competência escolar, uma regência/competência militar e uma regência/competência profissional. Conforme transita por estes domínios, o cidadão, desde o berço à sepultura, aprende, introjecta e cultiva determinadas regras. Regras, essas, que imbricam mais em virtudes, valores e costumes de ordem cultural do que em códigos severos de ordem artificial/legal. Ao contrário, a lei, sobretudo a lei das sociedades onde o legalismo urde a hegemonia social absoluta, impõe uma monocompetência: a lei compete ao Estado. Dito por outras palavras, a regra é administrada por todos, segundo uma hierarquia; a lei é administrada por Um - o Estado Todo poderoso, segundo uma burocracia.
Também, enquanto a finalidade da regra é formar cidadãos autónomos, responsáveis, possuidores e administradores dum auto-domínio, o objectivo da lei, ao inverso, promove cidadãos dependentes, irresponsáveis, sujeitos à administração central e sob vigilância.
É evidente que uma sociedade burocratizada é muito menos livre que uma sociedade hierarquizada. Como é indiscutível que o desregramento constitui apenas o cavalo de Tróia da repressão. E no entanto, pasme-se, são as sociedades burocratizadas, onde o desregramento orquestrado apenas justifica e promove o fortalecimento do aparato repressor e policial, que clamam a liberdade como sua padroeira rainha. O que não admira: sempre foi na boca de escravos que medraram as cantigas.
(...)
Somos testemunhas vivas, se bem que desatentas e ofuscadas, de todo este processo. Quando, por exemplo, citando um caso recente e em vias de banalizar-se, o desregramento duma escola é invocado como motivo para intervenção da polícia e dos tribunais, ou seja, quando a corrosão das regras serve de pretexto à ingerência da longa patorra da Lei, está-se a surpreender em flagrante todo esse tortuoso enredo. Note-se como os mesmos -burocratas do aparelho de Estado - que promoveram e instauraram a destruição das regras na escola (tanto quanto na família) vêm depois, em clamores escandalizados e pudibundos, convocar a intervenção urgente e exemplar do Estado. Num ápice deveras conveniente e programado, o problema da falta de regra transforma-se num problema de falta de lei: um défice de civismo dos cidadãos degenera rapidamente em défice de polícia. Não custa muito adivinhar que, brevemente, se instalarão câmaras de vigilância nas salas de aula, como se vêm instalando nas auto-estradas, centros comerciais, aeroportos, estádios, etc. Logo reforçadas a detectores de metais, vigilantes, pulseiras de segurança e sabe o diabo mais o quê. Nada disto é inocente. Não é puro acaso. O desregramento a martelo traficado por liberdade puro néctar em que todos estes bufarinheiros e vendedores da banha-da-lei se desunham não é acidental. Dito ainda com maior precisão, o desregulamento que é - permanente e persistentemente - insuflado na nossa sociedade (e que se traduz na dissolução da família, da religião, da escola, do exército e das profissões ), apenas prepara tudo para a absorção completa pelo Estado. Um Estado - uma hiper-burocracia sociofágica - que, estilhaçadas todos os limites e fronteiras que a Regra estabelecia, numa ultrapassagem permanente e desenfreada de todos os marcos, lateja agora em ímpetos e furores para-nacionais, globais, planetários. Um Estado que propositadamente desregula para depois reprimir e obrigar. Este desregulamento tem no mercado o seu agente catalizador. É um facto. Como podia tê-lo (e já experimentou usá-lo, em tandem) na classe, na crença ou no pedigree. Porque, além do mais, o Estado corporiza essa capacidade maléfica de instrumentalização desmedida puramente materialista, mundana, artificial. Ou seja, desregulada, mecânica, execranda, porque desligada de qualquer vínculo ao sagrado, sem qualquer respeito à História, nenhuma atenção ao Cosmos, nem a mínima consideração pelo indivíduo. Uma mera exorbitância e proliferação de meios sem qualquer princípio nem fim.»

Pois bem, na sociedade americana constatamos este sinistro paradoxo: ao mesmo tempo que é uma sociedade que faculta, facilita e incita ao desregramento, à violência, ao ego-rex, é uma nação com acessos paroxísticos e desgrenhados dum exorbitante e rústico puritanismo, duma moralidade a raiar a histeria evangélica, em recriação grotesca e labrega do génesis primordial - que é como quem diz, do paraíso como mero pretexto para o castigo e a condenação. Da liberdade como estreito parque jurássico para o pecado e a culpa. Tudo isto, claro está, coado, filtrado e bombado através de ecrãs. Absorvido, injectado e subministrado por via intra-venal. Uma nação genuinamente esquizofrénica? Temo bem que sim. E, no entanto, uma horda desenfreada que se arvora o título de locomotiva do progresso e da civilização. Exportadora em série e por atacado da sua própria esquizofrenia particularmente furiosa. Em todas as áreas e domínios, da cultura à economia, da educação à segurança, da ciência à propaganda. De tal modo que, ao mesmo tempo que são os que mais desrespeitam limites de défice, dívida ou tratado, são, com idêntica pressa, superlativa velhaquice e por manhosas vias, os que mais insuflam nos outros a exigência de austeridade forçada, crise crónica e rigor nas contas públicas. Ou, exemplo ainda mais emblemático, a sociedade que mais liberdade exporta pelo mundo, que mais libertação e democracia salda ao desbarato, é aquela que mais prisioneiros fabrica entremuros. Faz lembrar aqueles psicopatas que passam na rua por beneméritos e em casa brutalizam a mulher e os filhos. Ou aquele personagem de Stevenson que de dia era médico e à noite monstro.
Para quem, apesar disto tudo, continuar ainda a surpreender-se com o tele-pelourinhamento do tal DSK na capital da Liberty Inc, relembro apenas um conjunto de eventos do não muito distante ano de 2006:

Episódio isolado, aberrante e bizarro? Exagero pontual de educadores desequilibrados, senão mesmo psicopatas?
Tirem daí o sentido. Em Novembro, os administradores duma escola no Texas suspenderam uma aluna de 4 anos por esta ter tocado desapropriadamente uma auxiliar educativa. A petiz terá, vejam lá bem, abraçado a senhora. Também durante o ano lectivo de 2005/2006, no Maryland, 28 crianças de infantários foram suspensas por ofensas sexuais. Por conseguinte, meus amigos, não se trata dum caso anómalo. Antes pelo contrário, é toda uma nova tendência do Melhor dos Mundos. De pequenino se policia o pepino. Mais uns anitos e ninguém duvide: temo-la aí entre nós, à bela tendência, já meio requentada, como sempre, mas ainda toda pimpona. Americanos de imitação, aspirando a novos upgrades na disquete operativa, é o que por aí menos falta.»

Em síntese e conclusão: para que serve então o abstruso código penal americano? Apenas para proporcionar e demonstrar a excelência do sistema judicial americano. Tantas pessoas encarceradas só podem significar que aqueles polícias, procuradores, juízes e carcereiros não brincam em serviço, não vão em grupos e, pelo contrário, ministram inexorável e incansavelmente a lei. Deve ser por isso que a excelência portuguesa também é tanta: também somos um dos três países com maior taxa de encarceramento da Europa.

Adenda: Mais um caso recente deveras sugestivo. Uma professora suspeita de manter relações sexuais com cinco alunos, todos maiores de 18 anos, numa escola do Texas. Que faz a direcção da escola? Convoca a professora para inquérito e eventual procedimento disciplinar (suspensão ou despedimento, por exemplo)? Não; chama a polícia e a docente vai presa. Incorre em prisão maior, presumo.

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