sexta-feira, dezembro 31, 2004

Surpresa Tropical


Nesta passagem de ano, o Dragão dedica o irrisório conto que se segue a todos os turistas na diáspora e aos hedonistas em geral.
Divirtam-se! A vida é curta e a terra insaciável. Lambona!...


Preparou mais um whisky, puro, óptimo, doze anos. Saiu com o copo para a piscina.
O sol resplandecia, quente e confortável, saturando a paisagem com o seu hálito tropical. Sentiu a relva macia sob os pés. O Rolls, parado, cintilava nos cromados. Lá ao fundo, na alameda, entre as acácias, aproximavam-se dois descapotáveis, competindo. Deviam ser elas, as garotas. Sorriu...
Deslumbrado com o momento, radiante com o destino, apeteceu-lhe um mergulho. Tinha tempo. Todo o tempo. A vida era bela.
Poisou o copo. Subiu à prancha superior disposto a um voo espectacular. Memorável. O Porsche e o Cadillac chegavam nesse instante. Balançou-se e encarpou na atmosfera, por entre os raios de sol. Dois mortais ainda a ouvir aplausos...
Tocou a água tranquila num clarão faiscante, electrocutor.
Alguém ligara a piscina à Alta tensão.

terça-feira, dezembro 28, 2004

A Denúncia da Usura

O Que é um Banco?
-Uma instituição de malefício público que se locupleta de vender às pessoas o seu (delas) próprio tempo e o seu (delas) próprio dinheiro.

Já devem ter percebido: é da usura que vos vou falar.
Diz o Código Civil, no seu artº282 (Negócios usurários): «1. É anulável, por escusa, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrém, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados

A usura é crime. E o Código penal, no seu artº.226, estipula-o:
«1. Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência, ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias. (...)
4. – O agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias se
Fizer da usura modo de vida;
Dissimular a vantagem pecuniária ilegítima exigindo letra ou simulando contrato; ou
Provocar conscientemente, por meio da usura, a ruína patrimonial da vítima.»

Os factos:
A. Dos bancos:
Os bancos fazem da usura modo de vida;
Simulam contratos e exigem letras;
Provocam, fria e dolosamente, a ruína patrimonial das vítimas;

B. Das Vítimas dos Bancos:
1. Padecem de situação de necessidade (em grande parte dos casos, são jovens casais que doutra forma não conseguiriam acesso à habitação –direito consignado na Constituição); além disso, são desde tenra idade endrominados com a ideia de que o supérfluo é necessário. Ou melhor: tudo o que os grandes empórios e marcas oferecem é essencial. Não possuí-lo é fonte de assolapantes angústias existenciais, as únicas, de resto, admissíveis.
2. Encontram-se de psique alterada por via do bombardeamento ininterrupto de propaganda sedutora, onde os incitam e empurram a endividar-se, a qualquer preço, de todas as maneiras possíveis e imaginárias; são constantemente assediados por uma espécie de proxenetas financeiros que lhes exibem pornografia excitante e vaporizam perfumes afrodisíacos; vendem-lhes crédito como quem lhes vende heroína ou charros ao domicílio;
3. Fruto dessa intoxicação consumista, levada a cabo com a conivência e o beneplácito mais que escandalosos das autoridades, tornam-se crédito-dependentes. Zombificam, abdicam da própria liberdade e livre arbítrio, hipotecam o futuro, e entregam-se a uma servidão rastejante da dose, ou melhor dizendo: do juro. Incapazes, por clara debilidade mental, à partida, de discernirem o que verdadeiramente está em causa, atolar-se-ão cada vez mais nas areias movediças do mistifório e da vigarice, e acabarão tragados por um labirinto de cláusulas, micro-cláusulas e alçapões legais;
4. São geralmente ígnaros e ineptos em matéria financeira, ou em qualquer outra que transcenda a vida dos futebolistas, o enredo das novelas, o casamento dos príncipes, o último grito dos telemóveis e outras do mesmo jaez. Aderem infantilmente ou por compulsão osmótica às promoções irresistíveis que, em ubíqua algazarra, arautos e almocreves de todos os quadrantes proclamam. Junkies da publicidade, padecem, em fase terminal, de onerreia –isto é, de incontinência aquisitiva;
5. São comprovadamente inexperientes. Aliás, inexperientes é pouco: ingénuos, simplórios, totós, papalvos, é mais o termo. A facilidade com que desembestam atrás de qualquer ilusão, a tendência para confundir anseio com evidência, a facilidade com que se babam de roda de qualquer fábula, coloca-os praticamente num estado de completa vulnerabilidade a todo e qualquer charlatão. Mesmo parlapatões pouco mais que unicelulares não encontrarão grandes dificuldades para lhes venderem lotes em Marte ou nuvens na Austrália. Por esta altura, já compram a própria água que bebem e, adivinha-se, não tardará que paguem pelo próprio ar que respiram.
6. Referi-los como fracos de carácter é claramente um exagero. Na verdade, em termos de carácter, a definição correcta é "ausentes", ou "acaracterísticos". O carácter, em rigor, desempenha neles a mesma função que a vértebra nos moluscos. Não admira pois que, à inexperiência, se some a irresponsabilidade e se subtraia, quase de todo, a individualidade.

Concluindo:
Como é bem patente, o crime existe. É público e notório. Atenta contra a saúde mental e moral da população e mesmo contra a existência física do país. Sendo um crime público não carece de denúncia para que o Ministério Público proceda e investigue. Mais: é-lhe obrigatório fazê-lo. Então porque é que não se investiga?...
Só me ocorre uma explicação: pela mesma razão que não se procede contra a espoliação dos papalvos por parte da Igreja Universal do Reino de Deus. Ou seja, ao abrigo do pleno –e constitucionalmente sagrado - direito à Liberdade de Religião e Culto.
Afinal, não é usura: é cobrança do dízimo.

segunda-feira, dezembro 27, 2004

A Zurrapa

«Depois dos vazadouros autárquicos, lixeiras, sucatas, aterros sanitários e congressos partidários, os locais com maior densidade de lixo por metro quadrado são, sem sombra de dúvida, as livrarias.»
- Dragão
À laia de introdução:
O postal que se segue serve para explicar porque é que eu deixei de entrar em livrarias e passei a peregrinar alfarrabistas. Também considero que se alguém acertasse em cheio com um míssil na Feira do Livro, não se perdia grande coisa. Seria, certamente, um míssil inteligente. O único, alías, dessa estirpe, por aquelas bandas e evento, àquela hora.

Quando se pisa a uva, em pleno lagar, não é ainda vinho aquilo que se extrai. É apenas sumo. Dum sabor um tanto ou quanto adocicado e enjoativo. Se sorvido sem mais preâmbulos, pode causar dispepsias eméticas ou mesmo, em caso de abuso flagrante, diarreias agudas.
O vinho, não restam dúvidas, requer um tempo de maturação. E também recipiente adequado – madeira ou cuba que lhe refine o sabor.
É claro que também existe o vinho a martelo, que não requer nenhuma dessas minúcias. Basta ter a fórmula química, juntar os ingredientes, misturar bem –homogeneizar, estabilizar - e eis pronta para comercialização uma zurrapa altamente lucrativa. Mascara-se, trafica-se, o público agradece e o mercado justifica.
Quem diz o vinho, diz a literatura. Só que em vez de uvas são palavras. No resto, os processos de fabrico são semelhantes. E os resultados também.
Se a zurrapa a martelo arruina a figadeira, envenena o sangue e corrói as tripas, a zurrapa literária, paga a metro, vendida a granel, trata com idêntico malefício a mioleira.
É um crime contra a saúde pública? Pois é. Mas se o público gosta, se o comprador prefere...A coisa, por via de dogma mercantil, ganha contornos de decreto divino.
Ninguém se lembra de constatar que o público gosta daquilo que lhe vendem e compra aquilo que a publicidade lhe sugere ou que a emulação compulsiva com o filisteu do lado implica. Escolhe livremente dentro duma oferta pré-determinada que alguém, entretanto, fez por ele. O público, em boa verdade, faz lembrar uma vara de suínos em regime de internato rigoroso: não é propriamente apreciador de pérolas. Prefere substâncias mais aconchegantes: baldes de lavagem, de sobras e refugos amassados em farelo. Seja na forma de livro, de disco, de filme, ou até dessa frioleira que uns cognominam de blogue e outros mutilam à inglesa, a atracção fatal é sempre a mesma: o semelhante atrai o semelhante, a mixórdia encanta a turba.
De facto, não consta que haja falta de compradores para a heroína, nem para telemóveis que fritam os neurónios, já de si depauperados e semi-liquefeitos, dos utentes. Nem, tão pouco, consta que haja, por esse mundo fora, falta de compradores para toda a espécie de bodeguices, pinchavelhos e contrafacções. Basta um relance pelos tops de todas as latitutes e mercados, para que quaisquer ilusões quanto à racionalidade –ou sequer decência – dos consumidores se dissipem.
Não falta também quem argumente que essas obras barbitúricas (dessa tal literatura-light e não só) são beneméritas pois instauram o hábito da leitura em pessoas que, doutro modo, permaneceriam imunes aos encantos e delícias da bibliofagia. É um argumento deslumbrante. Com a mesmíssima lógica contundente, poder-se-ia alvitrar que as pastilhas de ecstazy criam o saudável hábito de ingerir vitaminas ou que a frequência de discotecas constitui a iniciação básica de qualquer melómano que se preze. Parafraseando o povo: o que é que o cu tem a ver com as calças? Ou dizendo à moda dos eruditos: em que é que a lobotomia a conta-gotas favorece o pensamento?
Até o velho e sábio aforismo de Lichtenberg reclama por uma actualização. Dizia ele: «Um livro é um espelho: se um macaco nele se mira não é, evidentemente, a imagem dum apóstolo a que aparece.» Pois bem, se isso no século XVIII era, regra geral, válido, neste nosso tempo, em contrapartida, o fenómeno complicou-se, os macacos sofisticaram-se. Se outrora se remiravam nos livros, agora, com petulância inaudita, vão mais longe: escrevem-nos.
Que, por isso, em vez de chacota recebam prémios é outro sinal dos tempos e da sua perfeição. Um macaco escrever um livro não deixa de ser uma proeza considerável. Mas mais extraordinário ainda é que cada vez mais macacas também o façam. Julgo que dentro em breve até os macaquinhos...
A Agustina, confessou ela, com 14 anos já sabia que ia ser uma grande escritora. Há gente assim.
Nas leis da Sobrevivência, disciplina que em tempos leccionei, uma das regras elementares da comestibilidade dos frutos é observar os macacos: se os macacos comem é porque não é venenoso para o ser humano. Na literatura é precisamente ao contrário: se os macacos devoram é porque não presta. Mas a regra mantém-se: convém observar os macacos. Nem sequer é difícil: estão por todo o lado, verdadeiramente infestantes, sobretudo de roda de tops e tabelas de vendas ou de audiências.
Há livros e autores que, graças a esse providencial expediente, evito com o maior dos cuidados. Com a mesma precaução, aliás, com que contorno os dejectos largados pelos animaizinhos de trela no glauco empedrado dos passeios. Ao cidadão humano é-lhe tão útil ler os primeiros como pisar os segundos.
Em suma, estou de volta.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

O Natal do Ultramar








Cenário: Algures, num pântano em África... (ou na Europa, é igual).

Fala o Alferes miliciano "CMD", Dragão Zorro, Grupo de Nomadização Especial, Angola...
Para o
José, a Zazie, a Margarida, o Dodo, o Manuel Azinhal, o NTC, o BOS, o Clark59, o A, o Serendipity, a Inês, e também para o Rui Silva, o R., o Flávio, o Takitali, o Pedro Guedes, o Carlos.a.a., o Petronius, o LFV e a todos os restantes amigos (sem esquecer os Blasfemos, inimigos de estimação) aí na metrópole, votos sinceros dum Feliz Natal e dum Próspero Ano Novo.
Adeus e até ao meu regresso.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

20 Maravilhas do Sistema Eleitoral Americano

Uma leitora geralmente bem informada enviou-me um mail deveras interessante, que considero de interesse público aqui editar...

«20 Amazing Facts About Voting In The United States By Bob Rowe

1. 80% of all votes in America are counted by only two companies: Diebold and ES&S.

2. There is no federal agency with regulatory authority or oversight of the US voting machine industry.

3. The vice-president of Diebold and the president of ES&S are brothers.

4. The chairman and CEO of Diebold is a major Bush campaign organizer and donor who wrote in 2003 that he was "committed to helping Ohio deliver its electoral votes to the president next year."

5. 35% of ES&S is owned by Republican Senator Chuck Hagel, who became Senator based on votes counted by ES&S machines.

6. Republican Senator Chuck Hagel, a long-time friend of the Bush family, was caught lying about his ownership of ES&S by the Senate Ethics Committee.

7. Senator Chuck Hagel was on a short list of George W. Bush's vice- presidential candidates.

8. ES&S is the largest voting machine manufacturer in the US and counts almost 60% of all US votes.

9. Diebold's new touch screen voting machines have no paper trail of any votes. In other words, there is no way to verify that the data coming out of the machine is the same as what was legitimately put in by voters.

10. Diebold also makes ATMs, checkout scanners, and ticket machines, all of which log each transaction and can generate a paper trail.

11. Diebold is based in Ohio.

12. Diebold employs 5 convicted felons as developers. These are the people who write the voting machine computer code.

13. Diebold's Senior Vice-President, Jeff Dean, was convicted of 23 counts of felony theft in the first degree.

14. Diebold Senior Vice-President Jeff Dean was convicted of planting back doors in his software and using a "high degree of sophistication" to evade detection over a period of 2 years.

15. None of the international election observers were allowed in the polls in Ohio.

16. California banned the use of Diebold machines because the security was so bad. Despite Diebold's claims that the audit logs could not be hacked, a chimpanzee was able to do it! (See the movie at http://blackboxvoting.org/baxter/baxterVPR.mov.)

17. 30% of all US votes are carried out on unverifiable touch screen voting machines with no paper trail.

18. Bush's Help America Vote Act of 2002 has as its goal to replace all machines with the new electronic touch screen systems with no paper trail.

19. All -- not some -- but all the voting machine errors detected and reported went in favor of Bush or Republican candidates.

20. Major statistical voting oddities (odds on the order of 250 million to 1!) -- again always favoring Bush -- have been mathematically demonstrated by experts.
Such amazing odds, the equivalent of statistical miracles these were. Was it God? or was it Diebold...?»

http://www.coastalpost.com/04/12/02a.htm

Sem comentários. Cada qual que retire as suas próprias ilações.

Blogue ou Morte!...

Está em vias de se abrir mais um grande cisma na blogosfera, isto se já não se escancarou mesmo, qual goela abissal, pronta a devorar-nos a todos. Estarrecei, meus amigos: É mais uma transcendente questão que irrompe, na senda de outras que a precederam, como o morar no direito ou no esquerdo, assinar com pseudónimo que ninguém sabe quem é (excepto os amigos), ou com possidónio que ninguém conhece de lado nenhum (excepto os compadres). Mas se estas já causaram devastações retumbantes, aquela, a mais recente e peregrina, promete abrir crateras insanáveis e rasgar lenhos sangrentos na carne avulsa. Adivinham-se carnificinas épicas e fratricídios eloquentes. Quem sobreviver, que conte.
Uma jovem Pandora –que em português se diz "Papoila" –, descobriu o embrião desse vórtice aniquilador e, com a leviandade característica do género, soltou-o desaçaimado no mundo.
Tomei conhecimento desta tragédia iminente no "Touch of Evil". Mas, caro Rui, isto é bem mais que "touch", isto é mais "crush", "punch", ou "lunch", porque, ou eu me engano muito, ou vai-nos tragar a todos, sem dó nem piedade.
Mas perguntais vós, já a ficar impacientes :"Em que consiste afinal a espoleta que vai fazer deflagrar o mundo?"
Segurem-se: uns grafam blog, os anglófonos; outros grafam blogue, os lusófonos e saloios como eu. É este o busílis, o pomo da discórdia que nos vai mergulhar numa nova Tróia.
Cada qual que corra a alistar-se na facção que lhe compete. Eu, por mim, não tenho dúvidas: Sou lusófono, caralho! Nada de "dick", é caralho mesmo! "Caralho" com todas as letras! Caralho e colhões e cona da tia! Comparado com "dick", "cock", "bollocks" "pussy", nem dá para aquecer. É bater em coninhas, em aleijadinhos, em larós! Se pensarmos num "vai levar na peida!", a que nos ripostarão com um "up yours", então, até dá vontade de rir. É o mesmo que estarmos a desancá-los à paulada e eles responderem com almofadas ou ramos de salsa!
E quanto ao argumento que a palavra era inicialmente deles, que a inventaram...Ora porra, também a Índia era nossa, que a descobrimos em primeiro lugar!...
Além disso, não lhes fanámos o termo: apenas o tornámos inteligível, apenas o arrancámos às capoeiras do ruído e o aperfeiçoámos para uso da linguagem humana! É que a Língua Portuguesa sempre tem algo mais que meras onomatopeias.
Mas basta de conversa, passemos à acção...
Às armas! Saloios da blogosfera, a mim!...Glória ou morte!
Aliás, blogue ou morte!...

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Democracia com Todos

Hão-de, Vocelências, desculpar-me a imodéstia, mas não conheço ninguém mais democrata do que eu: Dou bordoada à esquerda e à direita, com esplendorosa isenção e vigor imarcescível. Em matéria de carneirada, longe de mim pôr-me com desconsiderações!...
Se isto não é democracia, então não sei o que seja!...

Abruptamente

O Clark59, nitidamente fragilizado pela suave quadra que atravessamos, entrega-se à candura. Depois duma tolerância inaudita para com uma súcia inominável, eis que volta à carga com novo acesso de benevolência cristã. Refere ele, num misto de perplexidade e –desconfio eu – nojo (ou tédio, se preferirem, os mais sensíveis) que o "Abrupto", essa farol da blogosfera, debitando uma palha de teor incaracterístico, cativa todavia que nem mel e já ultrapassou mesmo o milhão de visitas. Pressinto que através deste pasmo agoniado, o Clark abana a cabeça e interroga misticamente o Cosmos. Não vá o Cosmos estar ocupado com planos apocalípticos ou a dar à luz mais não sei quantas constelações pelo buraco do telescópio parteiro dalgum cientista anglófono, acudo eu ao meu bom amigo (antes que ele, tomado pelos arranques, se entorne sobre algum presépio).
Pois, ó Clark, o fenómeno é elementar. Não tem nada de surpreendente, nem, muito menos, constitui atestado ISO de excelência. É sabido que o bom povo português, vá de carro ou vá de cibernave, aprecia sobretudo embasbacar-se com escabrosidades e desastres. Pela-se por descarrilamentos e alúvios.
De resto, é sinal inequívoco: quanto maior o enxame em redor, maior o aparato do despiste e a monumentalidade da asneira. Dito mais simplesmente: O número de moscas atesta, única e exclusivamente, da qualidade da bosta. Da qualidade, que é como quem diz: do alcance e exuberância do fedor.

Quando não souberes, pergunta.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

O Clamor pela Estabilidade

Não sei –francamente, não sei mesmo – porque é que no raio dum país estagnado, não há cão nem gato que não clame por estabilidade. Mais?...
Senhores, algum pudor, que diabo! Se o cemitério ainda se move é apenas porque a Terra gira.

A Solução da Adivinha

A menina Zazie, essa açambarcadora, ganhou o prémio. No entanto, o júri (que sou eu) decidiu, por unanimidade, desclassificá-la, pois usufruiu de ajudas extra-regulamentares.
Foi o Saint-Just, de facto. Trata-se do "Relatório apresentado em 10 de Outubro de 1793", intitulado "Para um Governo revolucionário". Em termos concretos, este "relatório" à Convenção marca o início daquilo a que se convencionou chamar de "Terror".
Mas porque carga de água me fui eu lembrar de tão tenebroso personagem? É simples, ó leitores: é que no mesmo dia em que postei, ouvi o ilustre Miguel Cadilhe, esse angariador de clientela para o bordel nacional, queixar-se da mesmíssima coisa. Confiram nos jornais e noticiários do dia e pasmem, ó sonâmbulos! E, vai daí, espingardei para com os meus botões: Então, há progresso ou não há progresso?! Avança-se ou não se avança?! Ou estamos sempre a ouvir a mesma tecla, do mesmo piano, e ainda por cima desafinado?...hein?!...
Quanto não vale esta santa ignorância e alegre imbecilidade que grassa na terrinha!...

A propósito, não sendo de todo personagem das minhas simpatias, Saint-Just, não obstante, neste mesmo "Relatório", tem uma tirada que até eu me atrevo a considerar épica. Profere ele, preto no branco:
«Um povo não tem senão um inimigo perigoso, o seu governo; (...)»

Cá para mim, o Saint-Just era pseudónimo. O gajo era português. Só podia. Uma verdade destas não está ao alcance de qualquer um. É preciso experiência. Ou melhor: calo. Muito calo.

domingo, dezembro 19, 2004

Dragão e Cavalheiro


Caríssima Inês,

Eu, como já deve ter reparado, sou um admirador inveterado de demolições e catástrofes. Prossiga, pois, com o seu armagedão blogoclástico, arrase links e quejandos, que só subirá na minha consideração.
Permita-me, não obstante, que preserve o link que lhe devoto, doravante com redobrada estima e orgulho acrescido.
Quanto à volubilidade humana que por toda a parte grassa e que a mergulha num justificado cepticismo, duvide que o sol volte a nascer amanhã, mas não duvide da sinceridade, visceralidade e, sobretudo, eternidade da minha iconoclastia apocalíptica. É mais provável o primeiro fenómeno que o segundo.
Em relação à "outra". Não sabia que essa tal lambiscóia (acabo de inventar o termo) era tal qual a descreve. Não conheço nem sei o que faz na vida. Tão pouco avalio a qualidade e quantidade de eunucos que a frequentam. Não são questões que me ocupem. A categorização define o blogue, que a mim, quando por estúpida curiosidade lá passei, deu-me vómitos. Isto não invalida que o mesmo possa ser excelente e a sua autora uma eugénia fulgurante, ou até uma agustina bessa qualquer coisa da pata que a pôs. De maneira nenhuma; eu é que, simplesmente, saí de lá com as botas todas emporcalhadas e quando assim é não levo a coisa na desportiva. Também ninguém me manda enfiar a metediça penca fumegabunda em estábulos e cavalariças. Foi para aprender.
Não me alongo muito mais. Orça, a cara amiga, que tem quinze leitores. Pois bem, além desses fiéis a toda a prova, sugiro-lhe que inaugure uma nova secção: a dos fãs. Tem aqui um. Não tanto da sua beleza –que estou certo ser imensa, mas aí não posso competir com os príncipes encantadores em babosa fila – mas do seu mau feitio, que isso é adorno que um velho e irascível Dragão reconhece à légua e não pode deixar sem prémio. E o seu, da mesma família do meu pelo que já pude ver, era caso para eu a trancafiar numa torre ignota e velar-lhe as imprecações, pragas e vitupérios por um ou dois séculos. Ainda sei reconhecer música abissal quando a oiço.

Minha senhora, curvo-me e rendo-lhe as minhas merecidas homenagens,

Dragão

sábado, dezembro 18, 2004

À QUEIMA-ROUPA

«Benvindos ao Blog do Dragão!Era para se chamar "Lança-Chamas", título muito mais apropriado ao meu feitio, mas estas porcarias anglófonas (raios as partam!) não aceitam pacificamente o "Ç" (o cê cedilhado, pois), pelo que tive que me contentar com esta arma mais discreta, mas não menos letal, felizmente. Nos tempos que correm, um dragão não pode vir prá rua armado só com as garras que Deus e a Natureza lhe deram, sob pena de acabar maltratado por algum energúmeno ou malta brava.Por conseguinte, instalem-se, ponham-se a jeito, que eu já vos trato da saúde!...E se os lenhadores gritam "madeira!", eu, em contrapartida, grito "lume!"...Depois não digam que eu não avisei!...»
- Dragoscópio, 18 de Dezembro de 2003, 1ºPostal.

Há doze meses atrás, num dia 18 aziago para toda a blogosfera, era assim que um certo energúmeno rompia as hostilidades. Desde então, a criatura não melhorou. Pelo contrário, foi de mal a pior. Actualmente, anda péssimo. Àquilo que disse há um ano atrás, em compensação, só alteraria um pequeno detalhe: em vez de "lança-chamas", chamar-lhe-ia "à queima-roupa".
Porque, de facto, é assim que eu escrevo e é assim que este blogue se quer.

À QUEIMA-ROUPA!

Amor e Guerra


«A partir de Verdun, que os alemães baptizam de Batalha do Material (Materialischlacht), o paralelismo instituído pela cavalaria entre as formas do amor e da guerra parece dissolvido.
Sem dúvida que o fim concreto da guerra foi sempre o de forçar a resistência inimiga, destruindo as suas forças armadas. (Forçar a resistência da mulher pela sedução é a paz; pela violação é a guerra). Mas não se destruía por isso a nação que se desejava subjugar: bastava reduzir as suas defesas. Batalha organizada contra um exército profissional, sítio das fortalezas, captura do chefe: um sistema de regras precisas, portanto uma arte, designava o vencedor. E este vencedor triunfava sobre algo vivo, um país ou povo ainda desejáveis. A intervenção duma técnica desumana que mobiliza todas as forças dum Estado mudou a face da guerra em Verdun.
Porque a partir do momento em que a guerra se torna "total" –
e já não apenas militar – a destruição das resistências armadas significa o aniquilamento das forças vivas do inimigo: operários mobilizados nas fábricas, mães que procriam soldados, em suma, todos os "meios de produção", coisas e pessoas equiparadas. A guerra já não é uma violação mas um assassínio do objecto cobiçado e hostil –quer dizer, um acto "total", que destrói esse objecto em vez de se apoderar dele. Verdun, de resto, não foi mais que um prólogo a essa guerra nova, pois que o processo se limitou à destruição metódica dum milhão de soldados, não de civis. Mas esse Kriegspiel permitiu o aperfeiçoamento dum instrumento que, posteriormente, se viria a achar habilitado a operar em campos bem mais vastos, como Londres e Berlim; já não apenas sobre a carne para canhões, mas sobre a carne que fabrica os canhões, o que é evidentemente mais eficaz.
A técnica da morte a grande distância não encontra o seu equilíbrio em nenhuma ética imaginável do amor. É que a guerra escapa ao homem e ao instinto; volta-se contra a própria paixão de que nasceu. E é isso, não a envergadura dos massacres, que é novo na história do mundo.»
- Denis de Rougemont, "O Amor e o Ocidente"

Esta é uma obra que recomendo vivamente. Além de muito bem escrita, na forma, palpita igualmente de relâmpagos deveras interessantes, no conteúdo. A perspectiva do autor, que vislumbra um paralelismo entre as formas do amor e da guerra ao logo da história do Ocidente (entre os séculos XII e XX), descobre no surgimento da "guerra total", ou "técnica da morte a grande distância" –a que eu chamaria "tele-guerra" (ou traduzindo: guerra telecomandada, gerida à distância)-, o princípio da "dissolução das formas instituídas pela cavalaria".
Quer dizer, a guerra, ao deixar de cumprir, transpondo, as regras de sedução e conquista inerentes ao amor cavalheiresco, desembaraça-se duma série de escrúpulos pouco rentáveis e cada vez mais obsoletos (tendo em conta dtoda uma nova concepção de mundo emergente e triunfante –a burgueso-científica).
Rougemont é, de resto, deveras ilustrativo quanto a isso:
«Cerca do fim do século XIX, o amor havia-se tornado, nas classes burguesas, uma estranha mistura de sentimentalismo à flor da pele e de histórias de rendimentos e de dotes: o que não deixou e ser ainda hoje em dia nos anúncios matrimoniais. A sexualidade pura só intervinha para "perturbar" esses pequenos cálculos e esses "belos sentimentos" de série. (...) Do mesmo modo, a guerra era um composto de excitações da opinião pública –que é a "desforra", senão um sentimentalismo nacional? – e de planos comerciais ou financeiros. O elemento propriamente guerreiro já aí não tinha lugar, a não ser como contrabando. A guerra emburguesava-se. O sangue comercializava-se. O tipo do militar surgia já como uma anomalia aos olhos dos realistas ou como uma sobrevivência lisonjeira aos olhos das mulheres e dos papalvos curiosos. (Por isso as democracias se excitam a propósito dos casamentos dos príncipes).
E julgava-se poder liquidar sem dano o formidável potencial de frenesi e de grandeza sangrenta que séculos de cultura e de paixão haviam acumulado no Ocidente.
A guerra de 1914 foi um dos resultados mais notáveis desse desconhecimento do mito.»
De realçar que Rougemont escreve em vésperas da Segunda Grande Guerra.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Quem quer adivinhar?...

«Todos os que o governo emprega são preguiçosos; todo o homem colocado não faz nada e utiliza funcionários secundários; o primeiro funcionário secundário tem os seus, e a República está nas garras de vinte mil idiotas que a corrompem, que a combatem, que a sangram.
Deveis diminuir por toda a parte o número dos funcionários, a fim de que os chefes trabalhem e pensem.
O ministério é um mundo de papel; não sei como Roma e o Egipto se governaram sem este recurso; pensava-se muito, escrevia-se pouco. A prolixidade da correspondência e das ordens do governo é uma prova da sua inércia, pois é impossível que se governe sem laconismo. Os representantes do povo, os generais, os administradores, estão rodeados de secretárias, como os antigos funcionários do tribunal; não se faz nada mas a despesa é enorme. As secretárias substituíram o monarquismo, o demónio de escrever faz-nos guerra e não se governa nada. »

- ??????????

Adivinhem lá, ó digníssimos leitores, qual foi o ilustre "liberal" que escreveu (e leu a uma singular Assembleia) estas teses inspiradíssimas?...
E, já agora, ponderem outro detalhe: Seria de esquerda ou de direita?...


Sugiro que comecem por tentar identificar a "área política" (esquerda/direita) e depois o nome. Assim, ao menos, talvez consigam 50% do prémio.

O prémio é surpresa.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Da Humana Estupidez

Filosoficamente falando, poderíamos dividir a História Humana -da Pré-História até à presente data- em duas épocas aparentemente distintas: a tirania dos instintos e a tirania da razão (sendo que esta constitui apenas um verniz, uma cobertura chantilizada daqueles). Ambas obstruem e têm como função e preocupação principais impedir uma coisa: o reinado da inteligência.
De quem julgue que a civilização racional é um avanço extraordinário em relação à selva, desengane-se. Não passa dum sublimado desta, duma selva complicada e aberrante. Nela abundam, à exuberância, o exultar dos predadores, a angústia dos predados e o pairar dos necrófagos.
Entretanto, do que é possível avaliar, dadas as fracas ferramentas que possuímos, o acesso à inteligência é, infelizmente, restrito – a indivíduos. Desde a Caverna de Platão que o suspeitamos.
Também, ao contrário do que hoje se propagandeia, em fumigenação ao domicílio, a inteligência não é um derivado da razão, mas sim da ética imanente ao próprio cosmos. Assim, comparativamente, o homem, tal qual o mundo o tem apresentado, não parece ser o mais inteligente, mas sim o mais estúpido dos animais. Ao contrário dos outros, enquanto espécie, não alcança um nível de aprendizagem básico: no essencial, não aprende com a experiência. Nem melhora com o decorrer do tempo. Actualmente, dá-se ao requinte psicótico, alucinado, de se barricar contra as gerações passadas e plantar minas, venenos e armadilhas como legado às vindouras.
Se a liberdade existisse, eu teria preferido nascer golfinho.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Preceitos para um Jovem Lutador

Introdução.

Tu, meu rapaz, que tens uma sólida formação moral, bons sentimentos e lês Nietzsche (confessou-mo a tua pobre mãe, preocupada), procuras na luta um campo de honra, um ordálio privado de virtudes e coragem. Isso é muito digno e atesta eloquentemente da tua qualidade masculina. Mas não te iludas: os teus futuros adversários pertencem, regra geral, a outro escol. O seu intuito é puramente calhorda, alvar, bandalhabundo. Ardem numa mera sofreguidão de se eximirem das frustrações e do mau carácter congénito. Ou então é puro exibicionismo, macaquice de filmes que lhes devastaram a mioleira. O teu dever, nunca o esqueças, é ajudá-los, conduzi-los nessa odisseia desconchavante. Não sendo do teu nível, não caias na asneira de lá desceres. Guia-os apenas. Providencia para que se espanquem a eles próprios. Empresta-lhes, quão somente, os teus punhos e patadas para tão caritativo efeito. Não te oponhas nem obstines; acompanha-os, facilita-lhes a tarefa. Permite que alcancem tão sadio desiderato. É uma aprendizagem que lhes compete exclusivamente.
Se te sacrificares, servindo de bombo, nada aprenderão. Se os sacrificares, moendo-lhes o coiro, ficar-te-ão eternamente gratos, olhar-te-ão com respeito e recordar-te-ão cheios de reverência.
Eles, bem no fundo, não o sabem; mas vão ali para aprenderem um pouco de humildade, para compensarem –duma forma brutal, é certo, mas é a única que os alcança – as falhas e tibiezas da educação moderna. Não hesites: educa-os. A sova, digo-to eu, pode ser uma das mais sublimes formas de altruísmo.
Para o efeito, aqui te deixo alguns preceitos que julgo pertinentes e de comprovada utilidade. A mim, pelo menos, ao longo duma vida que, como bem sabes, foi repleta de aventuras, combates e solavancos, ajudaram-me a manter o arcaboiço intacto e o frontispício indemne.

PRECEITOS

1. Em tese, o teu adversário é um ser humano. Em tese, repito. Porém, como o ringue não é propriamente o local adequado para prolegómenos a qualquer tipo de metafísica, o melhor mesmo é pensares nele como um réptil execrável que se propõe danificar-te o canastro e amarrotar-te o ego. Não deixes.
2. Usa a cabeça . Dá-lhe com ela. Com o osso frontal, mais precisamente; no nariz, na boca, nos malares, é tudo boa colheita.
3. Usa também a cabeça dele. De preferência com os teu pés. Mas não te arrisques em acrobacias supérfluas. Procura primeiro desequilibrá-lo, fazê-lo estatelar-se ao comprido no tapete. Uma vez aí, devidamente acondicionado, poderás pontapeá-lo com bem maior precisão e segurança.
4. Nunca tenhas pena antes de lhe bater. É um absurdo. Massacra-o. Põe-no feito num Cristo e então, então sim, quando ele estiver a ser levado de maca, pára de lhe bater e assume uma fisionomia piedosa.
5.Sê generoso. Quando lhe puderes dar três, não lhe dês apenas duas. A avareza é própria do banqueiro, não do lutador. Além do mais, em estando a distribuir fruta nunca te ponhas com mesquinhices.
6. Sempre que possível, tenta perceber onde lhe dói mais. É aí que lhe deves bater.
7. Não te desgastes inutilmente. Marimba-te no espectáculo e no rococó técnico. Não enfeites. Lembra-te: o objectivo é dares-lhe porrada, não é armares em decorador.
8. Prefere sempre a demolição metódica ao ballet. Nunca confundas um ringue de cacetada com o "Lago dos Cisnes".
9. Cuidado com o sangue dele. Caso esparrinhe, não te ponhas a bebê-lo, entoando bramidos selvagens. Não é prudente. Os antigos faziam-no como acção psicológica, de modo a estarrecer o inimigo. Mas os antigos desconheciam a Sida e a Hepatite B. Felizardos!...Podiam lutar em paz e harmonia. Lutar e ir às putas.
10. As regras são muito lógicas e bonitas para os árbitros e os juizes, porque essas criaturas não estão lá dentro a enfardar. A única lei de ouro que deves ter sempre presente é a seguinte: Entre a tua pele e a regra, sacrifica a regra. Vai por mim, que sou mais velho: é mil vezes preferível seres penalizado (ou mesmo desclassificado) que seres sovado.
11. As manhas e astúcias do ser humano são inúmeras, como a História Universal documenta. As dos répteis ainda são maiores e é a própria Bíblia Sagrada que nos coloca de sobreaviso. Fingem muito. Em caso de dúvida (nunca te esqueças que pode ser simulação), bate-lhe.
12. Em teoria, não deves recorrer a golpes baixos. Em teoria, este também é o melhor dos mundos. É fácil, portanto, constatar que as teorias são muito falíveis. Não obstante, quando lhe acertares nos tomates, usa da maior descrição. Por precaução, fá-lo sempre como que por inadvertência, não vá o árbitro reparar.
13. Nunca te emociones. Se lhe partires um braço, deixa que seja ele a gritar, a queixar-se, a chorar, enfim, a fazer todas aquelas cenas lastimáveis e indignas do varonil garbo.
14. A tua professora, caso venha a sabê-lo, dir-te-á que estes preceitos são bárbaros e anti-desportivos. É provável. Também é certo que a criatura é campeã e atleta de renome. Mas diz-lhe, da minha parte, que no dia em que eu me der ao desplante de leccionar seminários sobre as dores de parto, ela, gentil menina, virá ilustrar-me, de cátedra, sobre guerra e pancadaria. Mas até lá...




terça-feira, dezembro 14, 2004

Da Decadência

«(...)Eu queria-me entender com o sr. Deputado, a fim de tirarmos algum proveito deste debate; mas S.Excª, pelos modos por me ver assim minguado de afeites poéticos, acoima-me de absurdidade, e despreza-me!...Valha-me Deus! Se o sr. dr. Libório me não lançasse da sua presença com tamanho desamor, havia de perguntar-lhe por que foram Atenas e Roma bem morigeradas quando pobres, e corrompidas quando ricas e luxuosas. Havia de perguntar-lhe que artes e ciências progrediram entre os Sibaritas e Lídios, povos que a mais elevado grau de luxo subiram. Havia de perguntar-lhe por que foi que os Persas acaudilhados por Ciro, cortados de vida áspera e privada do necessário, subjugaram as nações opulentas. Havia de perguntar-lhe por que foram os Persas, logo que se deram às delícias do luxo, vencidos pelos Lacedemónios.
A suprema verdade, sr. Presidente, a verdade que os arrebiques da retórica não sofismam é que, à medida que os impérios antigos se locupletavam, o luxo ia de foz em fora, e os costumes a desbragarem-se gradualmente, e o pulso da independência a quebrantar-se, e os cimentos das nações a estremecerem. Depois, era o cair do Egipto, da pérsia, da Grécia e Roma. »

- Camilo Castelo Branco, "A Queda dum Anjo"

O diagnóstico é de 1866. Fá-lo Camilo pela boca do seu personagem, o debutante e "incorruptível" Calisto Elói. A obra, a muitos títulos notável, esboça um retrato desapiedado dum parlamentarismo à portuguesa, já naquela data convertido em colmeia de estrangeirados, parasitas, sanguessugas e similares.
Mandando também eu às malvas os "arrebiques da retórica", digo que o nosso Camilo, que de burro não tinha nada, não pôs o dedo na ferida porque esta geralmente até reflecte dignidade, luta ou sacrifício, mas pô-lo certamente no líquido fétido e purulento que preenche os furúnculos ou as gangrenas. Ontem como hoje.
A corrupção, aliás, desde sempre, serviu (e serve) à mesa do luxo. Naturalmente, propaga-se em forma de cascata: desde os que se empanzinam, lá no alto, de caviar até aos que rapam as migalhas, lá debaixo.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Da Prepotência

Em bom rigor, a democracia não existe. Nunca existiu. Se exceptuarmos o protótipo ateniense, com os seus escravos insolentes, o que existe –e existiu desde então, sobretudo por influência romana -, são diversos modos de tirania. Quer dizer, diferentes modalidade de exercício de prepotência. A saber, a prepotência exercida por um, ou despotismo; a prepotência exercida por vários, ou oligarquia; e a prepotência da turba, da multidão, ou oclocracia ("democracia", para o vulgo). Dito de outra maneira: a tirania pode ser, respectivamente, obtusa, difusa ou confusa. Em qualquer dos casos, um tipo decente, vertebrado, regra geral, está fodido.

domingo, dezembro 12, 2004

O Fado do Desgraçadinho

Tu sabias à partida, ó Zazie, minha flor, que, munida desse mapa, entravas em terreno minado. Mesmo assim, trouxeste para aqui, onde não são de todo chamadas, as pérolas do VPV. Lá vou ter que desmantelar, mais uma vez, a bacoquice periódica do sujeito.
Acredita que não me dá gozo especial nenhum. Mas como sugeriste (em tom de desafio, que bem te topei), eu faço-te a vontade.
Começo por citar a tua citação: « Admitamos, por exemplo, que a democracia e a "Europa" deixaram relativamente intacta a nossa cultura de pobreza, de manha, de compadrio, de corrupção, de servilismo e de um ódio universal à lei e à justiça. Uma sociedade camponesa, isolada, quase indigente e quase sempre sujeita a tiranias várias, não se transforma em 30 ou 40 anos numa sociedade individualista, inovadora, solidária e disciplinada».
Isto terá escrito o VPV.
Tu puseste a cereja no topo do bolo: « É isto, Portugal é um país pobre e atrasado ».
É isso, não é?
Extrapolemos.
Pois bem, Portugal é um país pobre. E atrasado, valha-nos Deus.
No entanto, Angola é um país rico. Um dos mais ricos do mundo. E ainda é mais atrasado que Portugal. Em que é que ficamos? Ah, pois, Angola é atrasada por culpa de Portugal, já me esquecia –porque foi colonizada por um país atrasado. Mas eu poderia referir também o ex-Zaire, ou a Nigéria; esses foram colonizados por países adiantados. E também são atrasados. Ainda mais desorganizados, corruptos e caóticos que Angola. Mistério profundo.
Mas os mistérios não ficam por aqui. Diz VPV que em Portugal grassa, simultaneamente, em alegre pandilha suponho, uma "cultura de pobreza" e de "corrupção". Ora, sendo Portugal um país pobre onde, ainda por cima, predomina uma cultura de pobreza, não se compreende muito bem onde vão, os portugueses, maltrapilhos cósmicos, buscar combustível para a corrupção. Depreende-se –a fazer fé no costume – que a corrupção pressupõe uma prática desonesta, tortuosa, de angariar e acumular riqueza. Com certeza, ninguém se dá ao trabalho de surripiar fundos ou cobrar favores para ficar mais pobre, para exercer a tal "cultura de pobreza". Donde, novo paradoxo: há cultura de pobreza ou há, afinal, cultura – capciosa, frenética, trafulha – de riqueza? Queremos todos ser pobres, honrados e honestos; ou queremos, ao invés, seja lá de que maneira for, ser todos ricos, o mais rapidamente possível e vendendo o que estiver mais à mão de leiloar? É impressão minha, ou o país, ao contrário da putativa cultura de pobreza que a fábula em epígrafe testifica, apanhou, isso sim, uma valente gonorreia mental de novo-riquismo?! O que é que Portugal fez ao ouro do Brasil? O que é que fez e ainda vai fazendo ao ouro do Botas? E o que é que fez –questão crucial e proibida – ao dinheiro dos Fundos de Coesão Europeia? Banhou-se neles e, no entanto, não se perfumou. Ao contrário: cheira mal que tresanda.
E temos também - diz o VPV, acabado de descobrir a pólvora - a "cultura do servilismo". Fica sempre bem, no bordado retórico, mencionar o servilismo. É chique. E todavia o nosso servilismo não será, nem de perto nem de longe, maior que o dos chineses, por exemplo. Ora, a China não é a economia em maior expansão e crescimento no Mundo? Devíamos enviar embaixadas para aprender com eles? Devíamos organizar visitas de estudo, romarias e pós-graduações?...
Não esqueçamos, de caminho, os efeitos perniciosos das tiranias, em contraponto aos dotes balsâmicos das democracias milagreiras. Mas pasme-se: a mesma China foi sujeita a tiranias do arco-da-velha, que, à boa moda da crueldade oriental, nem nos passam pela cabeça (continua mesmo sob os rigores duma) e, não obstante, lá vai ela, toda pimpona, vacarrona inaudita, a grande velocidade, em adiantado estado de economia. Novo prodígio: o desenfreado servilismo não os impediu a eles, mas obstrui-nos a nós. Se calhar pecamos por defeito. É, deve ser isso. Devíamos treinar mais.
E quanto ao compadrio, esse cancro? Praticá-lo-emos mais que os italianos? Todavia, eles, que até inventaram a mafia, não se nota que se amargurem e descabelem como nós, ou pelo menos como o VPV. Não é patente que grandes complexos ou traumas, nesse departamento, os atormentem ou atrofiem. De tal modo, que até fizeram dessa infâmia produto de exportação. E não foi com importações dessas que os Estados Unidos se tornaram também uns adiantados de primeira água? E não suspiramos nós, e todos os virtuosos do mundo avançado, por Ferraris, Alfa Romeos, albardas Giorgio Armani e quejandas bugigangas para parolo adiantado-mental?
Mas tem pior, mais grave ainda: Nós, portugueses, párias do mundo, odiamos a lei e a justiça. Será que as odiamos mais, a essas virgens inefáveis, que os Americanos, ou os Ingleses? Basta comparar as taxas de criminalidade violenta, toxicodependência, densidade penitenciária, etc, etc. Ou será que simplesmente não estamos tão bem organizados como eles na mistificação e manipulação da lei e da justiça? Em qualquer dos casos, isso não os atrasa a eles, mas, para alta recreação do articulista, atrasa-nos a nós. Ora bolas!
E, por fim, culminar apoteótico, eis que, num vislumbre fulgurante, a criatura entrevê o paraíso na terra à beira mal plantada. E de que forma? Abracadabra: "uma sociedade individualista e...solidária", "inovadora e...disciplinada". Quer dizer, em simultâneo, uma coisa e o seu contrário. Vamos passar de país atrasado para país esquizofrénico? Belo e besta, por turnos? A desfazer de noite o que tecemos de dia?... Que maravilha!...
Mais palavras para quê? É um artista português.
E vem um tipo, que faz uma trafulhice destas num artigo, clamar contra a putativa trafulhice nacional.
Para mim, isto, este acto típico e campeão do tartufismo infestante, apesar de tudo, tem uma grande virtude: demonstra à saciedade que não só Portugal não é um país pobre, como, pelo contrário, é riquíssimo: pelo menos, em pobreza de espírito. De facto, "uma sociedade camponesa quase indigente", como radiografa o Vasco, já há muito vem dando lugar a uma sociedade urbana – de janotas cultorículas – a destilar pedantice e a chocalhar basófia. Urbanorreia, esta, e doravante, não apenas "quase" mas completamente miserável. Não apenas do espírito, mas também de todos e quaisquer valores que não sejam a vida fácil e o dinheiro homónimo dessa vida.

PS: Desculpa lá, Zazie. Deixas-te levar pelas simpatias goliardescas e nem sempre remiras com atenção. Assim, vou ter que to dizer outra vez (e espero que seja a última): o Rei vai nu! O Vasco faz-me lembrar o Dâmaso.

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Bodes, Bufos e Oráculos

E agora, para algo realmente iconoclasta...

Na antiga Israel, no deserto de Judá, habitava um demónio misterioso chamado Azazel. Anualmente, os Hebreus daquele tempo seleccionavam um bode, depositavam nele todos os pecados desse ano, e enviavam-no a Azazel. Realizavam assim um ritual de purificação da cidade e respectivas gentes. O animal depositário levava consigo o mal acumulado e lavava as consciências, servindo de veículo para descarga da culpa. Ficou conhecido para a posteridade como "bode expiatório" e ainda hoje, noutras roupagens e latitudes, é recurso frequente de toda a espécie de intérpretes.
Sobre a qualidade moral do povo hebreu, desde sempre, o Antigo Testamento é esclarecedor. Amante de bezerros de Ouro, velhaco, traidor e venal a quase todas as horas, esmera-se em levar Moisés à quase apoplexia e Ihavé, o seu descabelado Deus, ao genocídio exemplar. No fundo, o povo hebreu parece estabelecer o paradigma de todos os povos do futuro, pelo menos quando largados em momentos de deriva, de transição, de crise cultural ou de identidade. Chegamos assim ao Portugal actual.
O povo português da hora presente em nada desmerece do povo hebreu daqueles tempos do êxodo. De volta de bezerros de ouro e vacas de úbere fácil, como varejeiras de roda da bosta, compraz-se no escândalo, na obscenidade, no desastre. Sem pinga de honra nem esqueleto, deleita-se no próprio suplício, refastela-se na sordidez doméstica, entrega-se ao masoquismo degradante. Náufrago de sonhos, galopa qualquer estilha ou salvado de pesadelo que flutue ao alcance. Na política, na justiça, na administração pública, na economia, na cultura, vê-se ao espelho. Mira-se voluptuosamente e derriça-se num coquetismo de anoréctico. De alto a baixo, a sociedade portuguesa escorre, fede, serve de repasto a parasitas e vermes. É todo um cóio a liquefazer-se. É toda uma choldra à espera –como os outros de há milénios- do maná/subsídio/crédito/financiamento que cai dos céus; e à babugem, já não da Terra, mas seguramente do tacho prometido, da promoçãozinha a troco de favores, da recompensa pela prostituição transcendental.
No meio dum tal regime de cloaca, foragido de quaisquer cuidados de higiene moral, vacinado contra o escrúpulo, impermeabilizado contra o pudor, não admira que, já não anual mas mensalmente, experimente uma dispepsia por empanturramento de lixo mental. Como há milhares de anos, recorre-se ao rito providencial do "bode expiatório". Mas, a este, já não o mandam para o deserto: servem-no à mesa, ao domicílio, enésimas vezes ao dia, e funciona como uma mescla de hóstia e supositório, que degustam, em simultâneo, pelos olhos adentro e pelo esfíncter acima, numa comunhão híbrida de beatos tartufos, para glória duma religião de basbaques impotentes. Também, na essência, já não serve, o bicho redentor, para efeito duma qualquer ablução moral. Na verdade, protagoniza mais o clister sucio-pulhítico, a lavagem emética das entranhas à moda romana: só para restaurar o vazio que permita a ingestão de mais porcarias, logo a seguir e ad eternum. O próprio "bode" adquire, doravante, forma antropomórfica: de preferência é alguém que, por este ou aquele motivo (em si irrelevante), congregue a atenção da turba, hipnotize –pela sua notoriedade- o rudimento mental da horda. Cumpre diante desta, mais que o aterro sanitário da culpa duma determinada franja superior dela própria, a função providencial de fetiche desviante, espantalho polarizador do linchamento ou da lapidação pública. Enquanto o apedrejam e vituperam a ele, entretêm-se, ocupam-se, aliviam-se, e não nos apedrejam nem nos vituperam a nós.
É assim que os fait-divers pseudo judiciais –dos pedófilos a Pinto da Costa, com Camarate em lista de espera -, mais que um qualquer indício de ressurreição da justiça ou resgate desta às garras da impunidade endémica, consumam, ao invés, o primado do torcionarismo instalado, selectivo, aracnídeo, a culinária abjecta de bastidores, seitas e pontificados inconfessáveis. Continua a ser, para mais refinado porque labiríntico, o método inquisitorial de sempre.
O Inquisidor de outras épocas, leão necrófago, predador de hereges ou similares, fazia-se acompanhar e preceder, como é próprio dos leões oportunistas, de chacais e abutres –os seus delatores de serviço. O mesmo decalcaram e fizeram os esbirros-a-soldo de todos os regimes. Durante o Estado-Novo, a Pide serviu-se duma rede de bufos execráveis que minavam o país e, pelos vistos, deixaram escola. O bufo, faça-se notar, não existe, nunca existiu, para denunciar –digamos, fria e imparcialmente – quaisquer delinquentes genuínos (seja do foro material ou espiritual); serve, outrossim, para 1. Denunciar quem convém e lhe mandam denunciar; 2. Denunciar de quem não gosta (rivais, adversários ou alguém a quem inveja qualquer bem); 3. Delatar como modo de vida e fonte de rendimentos ou contrapartidas venais. Aliás, em bom rigor e na maior parte dos casos, o bufo não denuncia, malsina.
Acrescente-se que no passado, regra geral, esse mister, apesar de rendoso e concorrido, sempre decorreu sob o manto da infâmia e do opróbrio, na penumbra dos lacaios, párias e azeméis. Mas isso era dantes. Agora, foi reabilitado e institucionalizado. É fonte preclara de vedetas e luminárias públicas – novas sibilas, vates sacrossantos. Alcançou mesmo a glória de "quarto poder". Chama-se, com trompejante pompa, "Comunicação Social"*. Atribui-se fenomenais direitos e prerrogativas de Santo Ofício. É igualmente em nome da Inefável Verdade que exerce, só que esta, em vez de única, estática, por procuração divina, é agora múltipla, variável, dinâmica, ao gosto do freguês e da audiência. Os execráveis informadores da Pide de outrora deram lugar aos informadores do Povo – esse putativo soberano dum regime de fantasia – de agora. O mesmo povo que desinformam, manipulam, mistificam e vendem por trinta dinheiros aos pagadores de frete do momento. O destinatário será, em tese, diferente. Mas a mentalidade, infecta, é a mesma.
Ai de nós, a bufaria deveio elite social, alfobre de jet-set. E o bufo, esse, promoveu-se a oráculo.

* - Uma certa "comunicação social de aluguer" ou da "meia-porta". Não confundir com as pessoas honradas que existem em todas as profissões.

terça-feira, dezembro 07, 2004

Carta ao Pai Natal

Estimado Pai Natal,

Aproximando-se mais uma quadra da tua jurisdição, tomei a liberdade de te remeter uns sarrabiscos. Como deves calcular, venho formular-te alguns pedidos, não muitos, não com intuitos açambarcadores e egoístas (como bem sabes, o liberalismo não me fascina), mas em nome de todos os portugueses meus irmãos, de esquerda e de direita, masculinos e femininos, velhos e crianças, portistas e benfiquistas, enfim, todos, excepto os neoconas, os neoliberais e os fariseus, passe o pleonasmo, porque esses como já são umas ricas prendas não precisam delas. Aliás, corrijo: se puderes, traz-lhes um escarépio. Não dos mentais, que desses já eles têm, mas daqueles clássicos, de trazer na gaita e que só desaparecem ao fim de muito tempo e várias injecções. Não te esqueças.
Mas vamos ao que realmente interessa.
Pai Natal, já nos conhecemos há um bom par de anos. Por causa aquela bicicleta essencial que te esqueceste naquele Natal fatídico (um raio te parta!), sabes que ainda estás em dívida para comigo. Estás e estarás, porque por mais anos que eu viva não me esquecerei. Portanto, sendo que desta vez até estou imbuído de autêntico espírito altruísta digno da efeméride que aí vem, desta vez –e ao contrário daquela noite fria de há muitos anos (grande sacana) – confio que não me deixes ficar mal.
Começo por te pedir uma coisa que estes gajos, os portugueses, estão muito carentes neste momento: um governo. Mas não daqueles de imitação, em miniaturas tele-comandadas, a corda ou a pilhas, chiça! Para isso já temos estes do costume, das lojas dos trezentos, dos bazares monhés e da feira de Carcavelos. São de péssima qualidade, estes, mesmo enquanto brinquedo – não duram nada e ainda agora acabaram de escavacar o último (regista aí nos teus apontamentos que estes gajos oscilam quotidianamente entre a alarvidade e a broncolatria). Não, Pai Natal, é dos outros que convinha que trouxesses, daqueles reais, feitos de pessoas a sério, com coluna vertebral e tudo. Eu sei que aí na Lapónia correm rumores de que estes gajos são ingovernáveis e, viciados no desgoverno, junkies da balbúrdia, a última coisa que desejariam seria genuína ordem, justiça e competência ao leme da colectividade. Não é que não haja um certo fundo de verdade nesses boatos (para te ser franco, até é mais que um fundo), mas, mesmo assim, tendo em atenção a quadra natalícia, há que usar duma certa generosidade, não achas? É melhor que aches, porque senão ainda vou ter que me chatear contigo. Bem sabes que o meu sonho secreto era ser um ditador sanguinário.
Por isso não me venhas com a história que governos desses, verdadeiras obras de arte, já não se fabricam. Que agora vem tudo da China, ou de Taiwan, que é aquela china mais o pequenina que a outra, ou da Malásia, ou do raio que os parta a esses cabrões dos capitalistas! Procura, ó Pai Natal. Se te resignas, não admira que os gajos te substituam pelos shopping coisos e pelos cartões Visa. Desenrasca-te, que diabo! Põe um anúncio na internet! Informa-te junto dos blogues. Algum artesanato ainda há-de restar –alguma daqueles oficinas vetustas onde burilam ainda velhos mestres virtuosos. Senão, manda embaixadores a outros planetas, vasculha noutras galáxias, faz qualquer coisa, criatura de Deus!... Envia sondas pelo Cosmos, aconselha-te com o Altíssimo, vais ver que nalguma constelação logo ali ao virar da esquina devem estar a saldá-los ao preço da uva mijona. É uma lei da física –a única, aliás, com ar de valer mais que um tostão furado: se aqui há uma penúria do caraças é porque nalgum outro lugar do universo certos nababos nadam na abundância. Seja justiça, seja comida, sejam governos. Vai por mim: procura bem que vais ver que ainda encontras.
Não obstante, usa de alguma prudência. Se entrares em desespero, não deixes que em parte nenhuma ele transpareça. O teu e o meu, que de ver-te assim a arrepanhar os cabelos também me preocupo. Desconfio que os mercadores são iguais em toda a parte: desespero e necessidade são para eles música celestial e pretexto ágil para especulação e ganância desinsofridas. E depois, mesmo que não tenham o que procuras, nunca têm, tratam logo de te impingir outra bugiganga qualquer, que embalam de superiores performances e infinitas vantagens. À falta de governo vertebrado, não te admires, pois, se te acenarem, em jeito de último grito ou pechincha de ocasião, com um "homem providencial". Não é que não tivesse a sua piada, largares-lhes tu um desses pela chaminé abaixo, todo pimpão, de código draconiano numa mão e cavalo marinho na outra, sobretudo para chatear os liberais e vê-los a coçarem-se desvairados, servindo de repasto à urticária. Mas desconfia, será pechisbeque pela certa: um verdadeiro homem providencial –um Péricles, um Alexandre, um Napoleão -, é ainda mais raro que os governos a sério. Não é por acaso que os associam, regra geral, esses diamantes políticos, aos cometas e aos augúrios celestes, sendo o seu nascimento normalmente presidido por eventos extraordinários e conjunturas mirabolantes. De resto, o último providencial que lhes trouxeste, não sendo um Stradivarius desses (longe disso), mesmo assim durou que se fartou, parecia que nunca mais acabava; e não fora a velhice e o parricídio mancomunados para o empurrarem duma cadeira abaixo, estou em crer que a História não teria tido vida fácil. Ainda dizem que o fabrico nacional não é bom!... Mas o pior foi que ardia em fervores paternalistas e estragou esta pandilha toda com mimos. Empanturrou-os de hóstias e bacalhauzadas; mandou-os em safaris e piqueniques pelas Áfricas ou estudos no estrangeiro, como opção para os mais alérgicos ou melindrosos ao paludismo; estimulou-os ao turismo laboral por seca e meca (quando se foi a ver, andavam aos milhares a flausinar por Paris e Hamburgo, a passearem-se pelas férias e natais na terrinha em brutas máquinas, e a erigir mansardas ao estilo alpe suiço); etc, etc. Claro está, quanto mais ele os apaparicava, mais malcriados, birrentos, sornas, velhacos e flácidos eles ficavam. Quanto mais porfiava por superprotegê-los, mantendo-os em redomas de moral e beatice sonsa, mais lhes atiçava a lubricidade reprimida e os treinava para a futura prostituição, para a escandalosa militância. Uma tragédia familiar, enfim. Manter os filhos na incubadora até à andro ou menopausa não constituiu, de facto, boa política. Resultou em flores de estufa. Hipocondríacos e neurasténicos, queixinhas profissionais, sempre a lamuriarem-se de qualquer coisa e de toda a gente, sobretudo de quem escape ao molde ou tenha o desplante de adoptar a postura erecta.
Por conseguinte, ó Pai Natal, se não conseguires trazer um governo a sério, tem cuidado com esses saldos de homens providenciais. Quase sempre é publicidade enganosa, refugo das fábricas do Absoluto. Os de contrafacção, mesmo de qualidade razoável, além de não se reproduzirem decentemente, promovem, à saída, salgalhadas babélicas e dédalos irresolúveis ainda piores que aqueles que encontraram à entrada.
Vê lá o que é que fazes, ó alma crédula!...

Por hoje não te maço mais e termino. Sei que, bem no fundo, te estou a pedir um milagre. Mas eu acredito em milagres e não há desilusão que me desencoraje. Não continuo eu, passados estes anos todos, a acreditar solenemente em ti?!...

Cá te espero em impaciente vigília,

Dragão

PS: Caso te seja de todo impossível realizá-lo, não obstante as exaustivas buscas e pesquisas, não esmoreças. Em vez disso, aproveita a campanha interplanetária e, de passagem ali pelas bandas de Marte, conforme reza a lenda, traz-me, a mim, teu credor prioritário, o "raio da morte". Assim, de momento, o único homem providencial verdadeiramente excepcional que me ocorre e conheço, neste país –sobretudo depois de armado com o "raio da morte" – sou eu. Dá-me pois tu o raio, que, à falta de governo vertebrado, o homem providencial lhes darei eu. E digo-te ainda mais: Traz-me essa benemérita ferramenta este Natal e ficamos quites quanto à bicicleta. Palavra de Dragão!

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Consultórios ou confessionários

O Padre Manuel Freitas (conheci-o lá pelas bandas das filosofias), ao contrário de outros figurões da sua espécie, afigurou-se-me uma pessoa de espírito. Dizia (e penso que ainda diz) até coisas carregadas de senso. Há padres assim, graças a Deus.
Uma dessas tiradas sensatas, com imensa piada e abençoada mordacidade, era a seguinte:
«Não ides aos consultórios de psiquiatras, psicólogos e outros veterinários da alma; vinde antes ao confessionário, que, ao menos, é gratuito.»

(Confesso que compus um pouco o ramalhete –o "veterinários da alma", pois –, mas o digníssimo padre até merece e certamente saberá perdoar-me o ter adicionado um pouco do meu sarcasmo à sua justíssima ironia).

domingo, dezembro 05, 2004

Atrair Investimento

Refrão dos mais cantados no nosso país é "atrair investimento". Subitamente, esta é a fórmula de todas as panaceias. Quaisquer problemas que aflijam, onde quer que seja, não há que enganar, a solução é fácil: atrair investimento. De franceses, alemães, japoneses, esquimós, não há por onde enganar: atrai-se investimento e pronto...é melhor que o totoloto: é fácil, é barato e dá milhões. Criou-se mesmo uma agência com essa finalidade específica: atrair investimento. No meio da pior borrasca, basta entoar-se essa runa e o mar encapelado acalma-se como que por milagre – a frase abençoada é verdadeiro azeite sobre as águas. O povo geme, os usurários apertam, a nação periclita...Mas eis que o político remendado, ao volante dum novo governo eleito, recauchutado, sobe à tribuna. E o que é que ele diz? O que é que ele profere em tom sibilino? O que é que deixa sair pelo cerro dos dentes, em rasgo sublime, qual demiurgo retumbante? –Temos que atrair investimento! É a solução. É a saída. E é um mistério. Um grande mistério, se querem a minha opinião. Exactamente em que consiste, começo a desconfiar que ninguém sabe. Nem, tão pouco, para o que serve. Balbuciam uns quantos chavões enigmáticos, na quase forma de hieróglifos inefáveis –como "emprego", "riqueza", "modernização" – e pouco mais.
Mas também ninguém se interroga: temos que atrair investimento porquê? Essa, verdade seja dita, é higiene básica que a ninguém ocorre. Fora o ser o "abre-te Sésamo" destes novos Ali Babás, a coisa permanece envolta numa penumbra esotérica de segredo cabalístico. Todavia, atrevo-me à aventura e dou comigo a intuir que, senão pela razão avulsa, talvez pela analogia se lá consiga chegar. Ocorre-me mesmo, sem grande esforço, um portal descriptante:
Aquelas meninas, em trajes diminutos e apelativos, que se oferecem pela beira das estradas, na orla de encruzilhadas e pinhais, não estarão elas, stricto sensu, a "atrair investimento"?...

Os Dâmasozinhos

Estava eu, Dragão, posto em sossego e solene recolhimento no meu tenebroso antro, como, de resto, é costume ancestral na minha família.
Eis senão quando me irrompe pela caverna um Dâmasozinho, daqueles tão típicos – verdadeiramente endémicos – ao luso rincão.
Mirei a criaturinha peregrina com algum tédio e concluí:
-"Olha, um Dâmasozinho!..."
Para que servem os Dâmasozinhos?, pergunto-vos eu. Desde o Eça que se sabe, respondereis vocês: para levarem bengaladas, ora essa. Aprende-se na escola. Ou, pelo menos, aprendia-se. Para tão útil e pedagógico efeito, até compensam a mioleira atrofiada com a excelência e abundância de costados.
Vai daí, ao deparar-se-me tal espécime, perfeito e escarrado, dei-lhe uma bengalada. Uma senhora bengalada, muito bem dada. Tão bem dada que até, lá do céu, Deus e os anjos certamente abençoaram e o sol que nos alumia festejou.
São as leis da vida. Que, ao contrário das do mundo, são justas e santas, senão mesmo um dos raros imperativos categóricos que reconheço. Nós, diante de tais energúmenos, não temos alternativa senão largar-lhes a bengala, sem dó. Eles, em contrapartida, têm (alternativa, quero eu dizer): ou são masculinos e aguentam o brinde merecido a pé firme, em silêncio reverente, com estoicismo; ou nem tanto e desatam em escarcéus, ruídos e ganidos próprios de mercado de peixe e hortaliças. Pois bem, no caso vertente, nem tanto.
Sinal dos tempos, certamente. Antigamente, aí há cem anos, faziam, no essencial, como os poltrões. Agora fazem como as mulheres.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

O Pseudo-Portugal ou Das Quimeras


Tal qual o Homem tem muito a aprender com as plantas, e não propriamente com hortaliças do género nabo e abóbora que dessas já há seguidores em demasia, também a História tem com que se instruir na Botânica.
Na taxonomia, por exemplo. Cito um breve mas elucidativo caso: ao designar-se vulgarmente a Robinia, usa nomear-se essa singular espécie como Pseudo-acácia ou acácia-bastarda. Parece uma acácia, mas na verdade não é. O mesmo poderia fazer-se em relação ao Portugal pós-Dinastia de Avis. Também devia designar-se vulgarmente Pseudo-Portugal ou Portugal Bastardo.
Da mesma forma os seus habitantes seriam vulgarmente designados como pseudo-portugueses ou portugueses-bastardos.
Não digo isto com intuito desprimorante para os tais, país e habitantes (onde obviamente me incluo). Trata-se apenas de constatar, lucidamente, uma realidade. Parecem, mas não são. O país parece um país, mas não é um país; os habitantes parecem pertencer ao país, mas, de facto, pertencem de alma e coração a outros países - em seu esperto entender- mais modernos e gratificantes. Também, estruturalmente, os verdadeiros portugueses eram de cerviz altiva e braço vigoroso. Estes não, e não nos alonguemos nos detalhes por piedade. Fossem árvores e seria o mesmo que comparar a árvore de copa bem erecta e altaneira ao arbusto retorcido e rasteiro. Ou mesmo ao capim forrageiro, segundo alguns eruditos.
Poderia ainda citar outro caso sugestivo da botânica: refiro-me à enxertia.
Neste caso, talvez fosse possível entender-se o Pseudo-Portugal como um enxerto bizarro executado sobre a raiz e tronco decapitado do verdadeiro. O lastimável é que tudo indica (e daí a bizarria) que a operação equivaleu a enxertar uma silva sobre uma roseira (e não o contrário, como recomenda a arte). Prova disso são até as "rosas" actuais que não é preciso matutar muito para perceber que são, na verdade, pseudo-rosas, ou efectivamente, silvas. E quem diz as rosas, diz as laranjas e outros frutos ou flores claramente falsos ou imaginados.
Finalmente, num terceiro caso, só a título de curiosidade e ainda no campo da enxertia, lembro a chamada "quimera". Esta ocorre quando sobre um mesmo cavalo (a planta que serve de base radicular ao conjunto) se enxertam várias outras espécies e não apenas uma. Resulta daí que a mesma árvore ramifica na forma de diversas folhagens e cria frutos de diversas qualidades: poderei mostrar-vos, até num pomar aqui bem perto, laranjeiras que dão laranjas doces, laranjas amargas, limões, tangerinas, limas e goiabas. O Pseudo-Portugal seria, portanto, segundo este paradigma, uma Quimera. Com efeito, ao longo destes últimos séculos, objecto de todo o tipo de enxerto, cada qual mais extravagante e peregrino que o anterior, poderia a sua desafortunada história ser contemplada como uma sucessão de ensaios mais ou menos alucinados de pô-lo a dar franceses, ingleses (na verdade, pseudo-franceses ou pseudo-ingleses), ou o que parecesse melhor e mais rentável ao fruticultor da época. Até russos tentaram. Ultimamente, parece que se tenta uma variedade híbrida de espanhol-americano. Aguardemos os frutos. Até hoje, apesar dos denodados esforços, das mais diversas podas e adubações, o mais que tem dado é bananas. É um facto que são cada vez maiores. Estas, a fazer fé no percurso e no crescimento -já por esta altura - desmesurado, devem vir a ser gigantes. Quase abóboras.
Nisto tudo, talvez haja (oxalá!) um grande exagero e lapidar crueldade da minha parte. Mas que dá que pensar, lá isso dá.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Sombras e Nevoeiro

Hoje é feriado. Comemora-se, segundo reza o calendário, a Restauração. A generalidade dos portugueses actuais, e quanto mais jovens mais piamente, acreditam que isso significa um dia dedicado aos restaurantes. Em conformidade, aproveitam para almoçar e jantar fora.
Da mesma forma, daqui a vinte e cinco dias, quase todos eles celebrarão um dia de opípara comezaina que sabiamente interpretarão como dia de trocarem prendas e mercadorias, e não como o dia em que há muito, muito tempo, nasceu um menino chamado Jesus que fez aquilo que todos os meninos fazem quando nascem: acendeu uma centelha de esperança no mundo. A dele era só um bocadinho maior que a de cada um de nós. Porque era a de todos.
Ao contrário da esperança –que é, por concessão titânica, imortal –, Portugal morreu em Alcácer-Quibir. Morreu de pé, como morre tudo o que é vertical e nobre. Morreu porque aquela lhe pareceu uma boa hora para morrer. Morreu porque acima do império dos homens, por melhores que sejam, vigora o império do Destino.
Desde então resta-nos um simulacro, uma espécie de sonho brumoso onde vagamos, como um navio fantasma, entre ilhas de fortuita coragem ou dignidade, e oceanos de torpe infâmia e cobardia. Há quase quatro séculos atrás, no dia 1 de Dezembro de 1640, ocorreu algo que exemplifica o primeiro caso. É pena que, desde então, só excepcionalmente tenhamos sido dignos, quase sempre graças a meia dúzia de indivíduos foras-de-série, raramente como povo.
Dir-me-ão: "Vade retro, Dragão! Que pessimismo anti-patriota, que exagero!..."
Dir-vos-ei: De Portugal, ajuntando os destroços que deram à costa, refizeram a aparência, recuperaram o bandulho –improvisaram um espantalho animado, em cima da cruz do defunto, com farpela comprada em saldos na estranja, cabeça de palha, verbo de encher e chapéu de fancaria. Mas a coluna vertebral, e a alma que a sustentava, essas, ficaram lá.
De Portugal, hoje, restam sombras. Como na caverna de Platão, no Hades de Homero e no canto de cisne de Camões.

Sombras no nevoeiro.

«Já esconjurei mil ciladas,
esgota-se-me o esconjuro.
Sigo as minhas pegadas
e não encontro quem procuro.»

terça-feira, novembro 30, 2004

Crónica duma Morte Anunciada




Há quatro meses atrás, aquando da fuga do na altura Primeiro-Ministro para a Europa, eu fiz a análise que agora publico de novo. E pespego-vos com ela aqui de novo nas trombas, não por vaidade balofa de áugure triunfante e historicamente corroborado, mas porque, mais que a lotaria dos acontecimentos, do frito e cozido que parece esgotar as cabecinhas iluminadas e pensabundas da toinosfera, releva um quadro envolvente, confrangedor, que se mantém inalterado; um húmus de imbecilidade nacional que potencia todo o lastimável folclore que parece ter montado arraiais entre nós, portugueses, e que, na altura, descrevi. Ora, como se mantém inalterável, escuso de escrever outra vez.

Quanto a acertar nas análises, bem mais jeito me dava acertar no totoloto.

«Ao contrário do Juíz televisivo, Sampaio decidiu, mas nada ficou decidido.O seu veredicto foi simples: Não dissolvo...Por enquanto.
A questão, agora, é: quanto vai durar o "por enquanto"?
Entretanto, uns rejubilam imbecilmente, com o foguetório digno do parolo, e outros esperneiam na poeira, dando urros doloridos e arrancando cabelos às mancheias. De parte a parte, os automatismos adquiridos durante as celebrações e lutos do recente Euro futeboleiro ainda não se dissiparam dos espíritos. À boa maneira de certas substâncias psicotrópicas mais potentes, persistem. Sampaio, se se dignasse perder tempo a ler as pérolas que por todo o lado chovem, havia de dar umas boas gargalhadas. Eu, no lugar dele, acho que me rebolava até às lágrimas. É um panorama, deixem que vos diga, a todos os títulos, histriónico, gaiteiro, quiçá rilhafolesco. A fábula de Régio -da criança, do velho e do burro- tomou conta da realidade. A asneira, essa, não é apenas livre: deveio campeonato. Em cada dia que passa, o débito aumenta, a incontinência opinativa ameaça um dilúvio iminente. Dou comigo, mesmo sem recado do Altíssimo, a projectar uma arca que resista à intempérie.
Entretanto, enquanto não dissolve, o PR vai, certamente, recrear-se. Põe de molho. Reconduzida a actual Maioria, esta, encantada com a sua nova coqueluche e exultante com o súbito hara-kiri do ex-líder da Oposição, vai entregar o leme ao novo Messias. Feliz da vida, acha tudo normalíssimo. É preciso é boiar, manter-se à tona. Um unanimismo ribombante impera já nas arcadas. O beija-mão segue os seus trâmites.
A ensombrar o idílio, apenas uma pequena nuvem tolda o horizonte e o futuro radiante destes novos peregrinos: quanto tempo vai demorar o Dr. Lopes a recrutar um Ministro das Finanças digno sucedâneo da Manuela draconiana (salvo seja!)?
Por outro lado, espécie de trovoada longínqua, como vai reagir a nação ao seu novo jóquei? Estabilizará ou instabilizará? Partirá a "ga-Lopes" ou morderá o freio, empinando-se e tentando cuspir o amazão?De certo, o que se sabe, até agora, é que, na cinantropia, a descida não termina em sabujo. Um degrau mais abaixo já se renconhece, demandado que foi entretanto: o de caniche levado a concurso. Prova disso é um primeiro ministro falhado que aceita ser Presidente pela trela duma Comissão Europeia; e um perpétuo candidato-ao-que-houver que abana a cauda radiante, a babar-se, de língua pendente, com a perspectiva -agora quase certa- de vir ser primeiro ministro pela trela dum PR em claro passatempo.
O resto deixo à vossa imaginação. Se ainda não percebesteis, ide ao Gorge que vos explique. Eu, alma prudente, tenho ali um casco e quilha para construir. Isto da construção naval tem muito que se lhe diga.»

Agora já sabemos quanto durou o "por enquanto".

A desgovernação, como a corrupção e a desmoralização não são a doença. São apenas sintomas. Quem está doente é o país. De alto a baixo. Da mioleira até às entranhas. Querem maquilhar as borbulhas, os eczemas, os furúnculos e acreditar, assim, que mascarando os sinais debelam a epidemia. Confundem a peste com uma alergia passageira. Confundem estertor com soluços.

Pesadelo Macabro ou De Metamorfose Horribilis

AVISO: Este postal não é recomendável a pessoas sensíveis. Depois não digam que eu não avisei.

Tive um pesadelo. Daqueles horripilantes, kafkianos. Começava comigo a acordar, uma insólita manhã, transformado num Liberal . Um liberal, ouviram bem. Ao princípio, ainda estremunhado, ao descerrar as pálpebras, era apenas uma sensação bizarra, de um estranho desconforto. Mas, quase de seguida, o desconforto transformou-se em angústia e, ainda não tinham passado cinco minutos, já a angústia degenerava em horror. Apesar do grande trauma que ainda agora me dilacera e me descompassa o sistema cardio-vascular, não resisto à narrativa. Tenho que contar a alguém, partilhar com terceiros esta medonha experiência... Talvez haja por aí um exorcista benemérito.
É verdade que eu, como referi, descerrava as pálpebras. É o que geralmente as pessoas fazem, ao acordar e, nisso, os dragões não diferem das pessoas. O problema é que quanto mais as descerrava –cheguei mesmo a escancará-las com desespero e desmesura – mais negras e densas me surgiam as trevas em redor. Imperscrutáveis, meus amigos. Dir-se-ia que eu flutuava num aquário de trevas. Porque, verdade verdadinha, quanto mais esgargalava as vistas, menos via. "Mau!", pensei para com os meus botões, "queres ver que acordei a meio da noite, devastado por alguma insónia?!..."
Toda a gente sabe que eu, a acordar devastado a meio da noite, prefiro uma Sónia a uma Insónia. Aliás, a insónia, está provado, só se instala na ausência da Sónia. Mas não tergiversemos. Falava-vos daquele estranho breu. Por causa das dúvidas, estiquei o braço na direcção do candeeiro. Experimentei então a curiosa descoberta de já não ter braço. Pelo menos, o direito. "Pôrra!", pensei, "mas que merda vem a ser esta?! Queres ver que alguma brigada de traficantes de órgãos e antropo-acessórios me amputou o braço durante a noite!..." Convenhamos que uma brigada dessas é pior que um acesso de insónia. Diria mais: muito pior. Acho mesmo que foi a partir desta conjectura que a angústia se instalou. Ora, em momentos de angústia eu cultivo o pouco recomendável tique de coçar os tomates. Vocês não sei, mas a mim ajuda-me a coordenar e reorganizar as ideias. À falta da mão direita, desaparecida com o respectivo braço para parte incerta, tive, naturalmente, que recorrer à esquerda para dar andamento à deselegante função. "Tive" é força de expressão, porque na realidade também a esquerda, verifiquei-o com amargura, primava pela ausência. Estou em crer que esta alarmante constatação iniciou o processo de catálise da angústia em horror. Nesta fase, se isso vos interessa, comecei a sentir aflição. Muita. O caso não era para menos, até porque a suspeita da brigada de pilha-órgãos agravava-se: quem rouba os braços também rouba os olhos, rouba os rins e, pior que tudo, supremo furto, até subtrai os testículos!
Nestas alturas vertiginosas, um homem lembra-se sempre de Deus. Um dragão, aí, também não difere muito. "Ó Deus!", carpi, já a ficar deveras preocupado. "Tu não ias permitir uma safadeza dessas, pois não?!" Mas então lembrei-me das safadezas todas que são autorizadas por esse mundo fora e um cabrão dum cepticismo teológico instalou-se-me no pensamento e desatou a dar-me nós na figadeira. Não há nada mais nefasto para a esperança dum indivíduo que o filho da puta dum cepticismo. Minúsculo que seja, basta uma gota para poluir um oceano. Veneno mais contaminante não conheço. Avinagrado, deixei-me de rezas e virei-me para os factos. Quando a oração não funciona, há sempre o anestésico, e nisso a ciência positiva é o que de melhor há para camuflar a coisa e iludir o mamífero, tanto quanto o mitológico. "Vejamos", ponderei, apelando à lógica, "deve haver uma explicação científica para tudo isto." Atrevi-me mesmo a enunciar uma tese: "se calhar, não sinto os braços porque estão dormentes". "Eureka!", quase gritei. Animado por esta perspectiva salvífica, e no fiel cumprimento do método científico, dispus-me a validar quanto antes tão promissor enunciado. Para o efeito, bastava levantar-me, fazer um pouco de exercício, até que a circulação de sangue se normalizasse por todo o organismo, e voltaria a sentir os braços, coçaria os tomates, abriria os estores, a luz do dia devolver-me-ia a visão (tudo por esta ordem prioritária), e eis-me de volta à normalidade. Nada, portanto, mais simples e todo aquele mal entendido se dissiparia.
Mas a minha saga de arrepiantes descobertas ainda não tinha terminado. A que me aguardava no instante seguinte não só confirmava como agravava as anteriores. E atirava com a ciência para o mesmo sítio para onde já despachara a religião. Estais preparados? Já retirastes as criancinhas da sala? Tendes o testamento em dia? Pois aí vai:
Ao querer levantar-me – naquele salto atlético, felino, viril, que me caracteriza e é apanágio e timbre das últimas vinte gerações da minha família (o meu pai, por exemplo, ainda é pior que eu e nem se levanta, irrompe logo vulcanicamente, audaz e sobreactivo), pois, ao ensaiar esse gesto quotidiano mas não obstante sempre glorioso – pude testemunhar, em primeiríssima mão, que não só, a juntar aos braços, me faltavam as pernas, como, por artes daninhas de sabe-se lá que destacamento demoníaco, não restava nenhuma das minhas outrora altivas e mui queridas vértebras. Pude também perceber que, em lugar das costas espadaúdas com que sempre me conhecera, equipava-me agora uma dura e convexa carapaça que, a fazer fé no design, me abeirava perigosamente dum qualquer coleóptero estivador de bosta.
Salvo erro, foi nessa altura, no preciso momento em que me palpitei transformado num repugnante insecto – o liberal, que ultrapassei a angústia, despenquei da aflição e mergulhei de cabeça no fedente e genuíno tanque do horror. Imaginai-vos equipados de élitros, armadura bocal trituradora e metamorfoses completas, e dizei-me cá se não é caso para cagaço completo?!...Mais que completo: absoluto! Não vos recomendo a experiência. Do que um liberal pensa (a segunda parte do meu pesadelo, quando, a seguir ao corpanzil hediondo, me surpreendi também monstrifugado -isto é, ouriçado na forma de antenas sobreciliares- de ideias liberais), guardo-vos para um próximo postal. O Horror, como a melancia, requer tempo de digestão. E se não faço agora um pequeno intervalo, é mais que certo que ainda vos borraríeis todos pelas pernas abaixo. Isto, aqueles que não golfassem as tripas, preferindo o esgoto superior ao anterior.
Por falar nisso... para a segunda parte trazei daqueles saquinhos de avião. É mais que certo que ides precisar. Dão um jeitão do caraças quando a náusea se instala, o chão desata a girar alucinantemente e nós, à falta de Deus, da Nossa Senhora e dos santos todos, vemo-nos sem outra alternativa que gritar ao Gregório. Bem alto!

segunda-feira, novembro 29, 2004

Da Esfinge



«A pergunta da Esfinge, sabemo-lo, é a pergunta pelo "homem". No seu percurso vital, a vida deste acompanha o sol. Caminham lado a lado. Nascem, elevam-se e declinam. Ora, se o sol se regenera, porque não se haveria de regenerar o homem? E se o homem acompanha o sol, como se regenera ele?
Chamamos amanhecer ao nascimento do sol; chamamos infância ao amanhecer do homem. A ideia de que cada homem é uma ilha, um indivíduo –no sentido de unicidade isolada - que nasce e morre definitivamente, choca, colide, alterca com essa outra forma, chamemos-lhe cósmica, de entrever o antropos. De facto, a forma aleijada e efémera de entender a vida humana, tanto quanto preside aos mecanismos potenciadores do mundo e do "estar-no-mundo", de igual modo emerge a partir duma redução, duma estreiteza grosseira de vistas. Porque, como a natureza inteira grita a plenos pulmões, nem a morte é definitiva, nem o nascimento é único. O bebé que nasce não irrompe súbita e unilateralmente, desligado e excêntrico, como um big-bang ad-nihil. A criança é continuação, persistência, como a morte é passagem, presságio. Na criança é o homem que amanhece, como é o ancião que se regenera.
Por outro lado, na separação umbilical que sucede ao nascimento, a tesoura só corta o cordão, não interrompe o vínculo, o elo íntimo ao Ser. Não é uma fabricação o que se colmata: Nem a mãe é uma fábrica, nem a criança é um artefacto, ou manufactura. Também não é um ciclo novo e inaudito que principia, que irrompe insulanamente, mas o fio da vida que persiste, que perdura e se regenera. É o amanhecer do homem. No fim da noite, da espera, irrompe a madrugada: acontece a luz, que se restaurou atravessando as trevas. Eterno retorno e metáfora cósmica, o pé humano ergue-se, aí, da caverna. Do antro matriz, onde a vida se firma e a pegada permanece.
O Homem não é só um apogeu, um auge: é também um dealbar e um entardecer. Não é apenas um erguer-se e afastar-se, elevando-se, no horizonte, como do "antron": é igualmente um primórdio vacilante e um regresso exausto ao chão, à noite, a casa. É-o enquanto episódio e enquanto epopeia. O episódio não se encerra num verso, como a epopeia não se reduz a um episódio. Depois, tudo junto devém metáfora, mythos, pulsação no coração do tempo. Quer dizer, não termina, não acaba, não desiste. Pelo contrário, transfigura-se, transmuda-se, mas persiste. Obstina-se. Contrapõe a tenacidade à ligeireza e frivolidade do mundo.»

- "O Fio e e o Fito", in "Tratado da Besta".

Se não gostam, não comam. Mas hoje deu-me para citar o meu Mestre.

sábado, novembro 27, 2004

A Pedocracia

Enquanto o PCP, último baluarte da esquerda operária e da religião marxista-leninista, prossegue a sua alegre fossilização (louve-se-lhe a coerência), no pólo oposto (mas, ao fim e ao cabo, não muito) os partidos mais ou menos liberais (e mais ou menos iguais), aos comandos do Eldorado, não se cansam de empinar copos na Fonte da Eterna Juventude. Se aqueles fossilizam, estes rejuvenescem desenfreadamente. Ao Parque Jurássico de uns, opõem os outros o parque infantil. Poder-se-ia dizer "venha o diabo e escolha", mas o mais correcto era mesmo dizer-se "venha o Diabo e leve-os a todos para o parque de diversões que tem lá nas profundezas!"
No meio disto tudo, não admira que o putativo eleitor desespere. Se se fantasia em trajes esquerdistas, depara com broncossauros e tiranossauros rascas; se se imagina enfarpelado às direitas, dá de caras com chavalinhos queques de farta trunfa e carinha imberbe. A bancada parlamentar do PP, quanto a isso, é paradigmática e superlativa: sugere que a digna sala de espectáculos vive em contínua e gralhante matiné. Aos pequenos Nunos Rogeiros em gestação, só lhes falta mesmo pipocas no respectivo balde, porque, quanto ao resto, já em nada deslustram do seu ídolo sénior, nem dos seus modelos "teens" de "Beverly não sei quantos".
A política, por este caminho, corre mesmo o sério risco de descambar num ramo da puericultura. E a democracia, à força de jotinhas emperucados e sabujantes, de redundar numa pedocracia babélica. O país, esse, fica condenado, um dia destes, a ter que limpar o cu a meninos.

sexta-feira, novembro 26, 2004

O labirinto

Em Portugal, há excesso de função pública e um défice crescente, a desmesurar-se, de serviço público. O "funcionário", regra geral, não tem em mente servir o público, mas servir-se dele. E se isto se passa a jusante, a montante cumpre-se o exactíssimo reflexo no espelho: basta substituir a palavra "público" pela palavra "Estado".
Não julgo que seja um fenómeno exclusivo do nosso país. Toda uma Europa burocratizada vive este mal-estar intestino, este conflito nas vísceras entre "Função" e "Serviço", ou melhor dizendo, entre o verbo "funcionar" e o verbo "servir". Quer dizer, aumentam quotidianamente as realizações e reinvenções peregrinas que vão funcionando, mas diante das quais, o cidadão minimamente desperto se coloca uma interrogação inevitável: Para que é que isto serve?
É mesmo uma pergunta que assombra cada vez mais o nosso mundo. Destrambelhado mundo que, quanto mais se complica, se "moderniza" e reforma, mais absurdo parece. Como o labirinto, dentro do qual perdemos há muito toda a orientação e zanzamos dementes, irremediavelmente perdidos, sem memória da entrada nem, tão pouco, a mínima noção ou fé na saída. Escutando apenas, cada vez mais próximo, o resfolegar lúgubre da Besta que lá reina. Os gregos chamavam-lhe Minotauro. Nós havemos de chamar-lhe o quê?...

Porque quando o mundo deixa de ser construído para o homem, passa o homem a ser criado para o labirinto.

terça-feira, novembro 23, 2004

O Apocalipse segundo S. Mário - I. Os motivos

A terceira república, além de não ter resgatado o país do marasmo onde o deixou a segunda, corre sérios riscos de ir pelo mesmo ralo da primeira.
Sobre essa evidência já eu tinha elucubrado há dias. Vem agora S. Mário, de trombeta em riste, despender amargos queixumes sobre a mesma questão. Especifica ele que, não pipilasse o país sob a asa protectora –e sedativa – da Europa e, a esta hora, com tanta corrupção e crispação social à solta -uma vergonha!- e já militares exaltados, de estribeiras perdidas e espingarda na mão, se teriam soltado também dos quartéis, em pronunciamentos, levantamentos, motins – barrelas, enfim. Estaremos a ouvir bem? Estamos. Será caso para alarme? Quando o próprio pai da democracia portuguesa, o engendrador capital das suas moléculas, vem bradar para a rua, em barrete e ceroulas, que a filha anda na má vida, enrodilhada com alcoviteiros e proxenetas, amancebada com merceeiros, a esfolar trolhas na borda da estrada e sabe-se lá que mais, muito naturalmente as almas mais sensíveis tenderão a preocupar-se, senão mesmo a escancarar a boca de espanto. As almas sensíveis, ou seja, aqueles que tenham acordado agora após um coma profundo de vinte anos. Fora esses, julgo que mais ninguém se alarma nem descobre motivos para isso. E depois de vos expor as razões, julgo que também todos vós concordareis comigo e dormireis repimpados esta noite.
Começando pelos motivos para alarme...
1. O putativo golpe militar.
Bem, para haver golpe militar é necessário, no mínimo, uma coisa: os tipos que fazem o tal golpe, ou sejam: os militares. Ora, toda a gente sabe que a instituição castrense foi purgada dessa gentinha belicosa, como se de um explosivo instável se tratasse. Por atávica mania, esses energúmenos cultivavam o péssimo hábito de considerarem a pátria acima dos partidos políticos. A partir do momento abençoado pela História em que a pátria passou a andar por baixo dessas bizarras associações, a permanência desses fulanos nas fileiras tornou-se indesejável, afronta potencial de lesa-democracia. Procedeu-se em conformidade. À presente data, quando muito, restam não militares mas militantes, funcionários públicos fardados e estrelados –lacaios de luxo, enfim –, mais a criadagem avulsa de todas as épocas (quer dizer, a soldadesca anódina e de plantão às mordomias dos graduados). Não espanta pois que os preocupe mais a fundação dum sindicato que a redenção da pátria. Têm prestações para pagar.
Mas, mesmo admitindo o fabuloso, só para efeito retórico, mesmo que houvesse um golpe militar, que tremenda interrogação angustiaria a esta hora, e por antecipação, o povo? Provavelmente, apenas a prosaica conjectura de qual a flor garrida que os bravos magalas trariam na ponta das armas desta vez.- Cravos? Rosas? Malmequeres? Manjericos? Narcisos?...
2. A corrupção, essa metástase.
As pessoas, regra geral, alarmam-se com algo de surpreendente, de inesperado ou ameaçador. Pelo contrário, relaxam diante daquilo que é corriqueiro, habitual, vulgar. Pior: desinteressam-se, enfadam-se. Ora, como todos sabemos, e estamos cansados de saber, a corrupção, em Portugal, será tudo menos surpreendente ou inesperada. De facto, mais que endémica, ubíqua, deveio já modus vivendi (ou dito à moda fadista, constituiu-se em "estranha forma de vida"). Poderá ser estranha, mas é a nossa. No estado actual dos negócios, vir alguém bradar contra a corrupção é o mesmo que vir pregar moral a um heroinómano ou exortá-lo, em evangélica pregação, a abandonar tão nefasto vício. O que torna a coisa ainda mais caricata, próximo da anedota, é ser um ex-traficante e fornecedor inaugural do toxicodependente, subitamente transmudado em anjo de procissão, quem rompe em perorações bacocas ao domicílio.
3. A crispação social, esse vulcão...
Existe, é um facto; tem-se vindo a acumular. Mas a razão é simples: O Benfica não ganha o campeonato vai para 11 anos. Basta que esse jejum termine e a crispação acaba. É tão simples quanto isso. Concretize-se esse anseio aglutinador da grande maioria de encrespados, reforce-se a dose de novelas, de reality shows, de hipnose mediática, e Portugal entrará no melhor dos mundos. Os actuais governantes sabem disso. E estão a tratar do assunto.
Quanto aos motivos estamos por conseguinte conversados. Só um existe, mas, o mais tardar em Junho de 2005, estará resolvido. Os desígnios nacionais, os interesses de estado, cá, no país das maravilhas, são assim.

domingo, novembro 21, 2004

Carta Aberta ao Criador

Meu Deus,

Tranquiliza-Te. Desta vez, não venho sarrazinar-Te com sugestões urgentes, como a de exterminares uma série de povos por quem nutro profunda antipatia, nem fazeres crescer orelhas de burro nuns quantos comentaristas cá da praça. Já percebi que, de momento, não estás pr’aí virado, portanto, não insisto. Tenho pena, muita mesmo, mas não insisto. Mas sempre Te digo, em relação aos segundos, que já que lhes distribuiste espíritos de asno, não custava nada facilitares também as orelhas. Sendo cretinos, ao menos tornavam-se pitorescos e o pagode ria, mais do que já ri. Enfim, lá deves ter as Tuas razões, certamente inefáveis e transcendentes. Curvo-me diante delas.
Também não venho incomodar-Te com requerimentos intermináveis de perdão para os meus pecados que, como bem sabes, não só não diminuem, como, com a idade, vão de vento em popa e versam sobremaneira aquele bizarro mandamento com que couraçáste (segundo os Hebreus) a mulher do alheio. Senhor, é mais forte do que eu: antes ser amante da mulher do alheio que amigo do alheio. Hás-de fazer-me a justiça que é um mal que faço para evitar um mal maior e que espero me seja contabilizado como atenuante por alturas do Juízo Final. Além do mais, como o burguês prefere ser cornudo a ser pobre, em nada contendo com a santa paz da Criação e das criaturas. Tenta compreender: enquanto me entretenho com a mulher dele, não lhe cobiço nem defenestro a propriedade. Bem sabes, Tu que sabes tudo, como é essencial para a boa harmonia das coisas que o macho vigoroso se liberte regularmente da bicharada que lhe fervilha nos testículos. Foste Tu que o criáste assim, Excelência. Encurralá-los, aos tais, nessa prisão claustrofóbica acarreta impreterivelmente maus humores e violentas tendências, como rugir impropérios e escaqueirar coisas. Em suma: o sujeito perde de todo o bom feitio e torna-se religioso. Ora eu, perdoar-me-ás a singularidade, prefiro ser um humilde pecador, a andar pelo mundo em certas figuras. Mas isto, ó Altíssimo, que fique aqui, hermético, entre nós. Não vá algum Espírito Santo de orelha dar com a língua nos dentes à Senhora Dragão e, a seguir ao Carmo, cai a Trindade. Livra-Te, pois, a Ti, ó Pai Celeste, dessa queda desnecessária e a mim, criatura terrena, desse apocalipse cavernoso.
Tão pouco –alegra-Te – venho hoje molestar-te com recomendações prementes para que leves para junto de Ti –e parqueies nesse condómino ardente que tens na cave, sob a benemérita supervisão dos cornúpetos zeladores –, a corja de políticos que infesta a Terra e, sobretudo, aqui o rincão pátrio. Já me descabelei o suficiente a tentar expôr-Te o meu ponto de vista sobre a prioridade desse assunto e acredito que ruminas e deliberas, em solene retiro, sobre a bondade dos meus argumentos.
Não, ó Transcendência, o que aqui me traz, nesta hora de assombro, é apenas uma pequeníssima e mirradíssima questão -uma questiúncula, melhor dizendo- enfim, uma borbulha acintosa do pensamento que, em teimosa comichão, pr’àqui me cita e toureia. Consiste essa verruga no seguinte: após rebordados colóquios e exaustivos seminários Contigo, a muito custo, fruto de muita oração e - porque não dizê-lo- flagelação dos instintos (sobretudo homicidas), lá consegui perceber alguns pormenores mais nebulosos da Tua Criação. Sendo Tu absolutamente Bom, ela só podia ser absolutamente Boa, o que transposto para certa casta de dejectos, excrementos, maleitas, bactérias, vírus, répteis venenosos, insectos peçonhentos, vermes rastejantes, lombrigas, ténias, vampiros, etc, etc, me transportava a confusa estupefacção e inerente estranheza. Era a estúpida da Razão a meter o bedelho onde não era chamada. Identificada essa disfunção da minha estrutura mental, lá consegui, com a Tua preciosa ajuda, superar o meu néscio cepticismo e ascender a uma clarividência mais benévola e compreensiva do verdadeiro fundamento e finalidade dos entes. Com grande surpresa minha, apaziguei o meu espírito com todas essas existências nauseabundas e repugnantes. Começei a ver com outros olhos os vermes, os micróbios, as formigas, as ratazanas, certos batráquios, as hienas, os monstros alienígenas, o Vasco Graça Moura, o Pacheco Pereira, a Clara Ferreira Alves, o Moita Flores, e até o Luís Delgado, imagina! E até os americanos, pasma! Grande poder Miraculoso, o Teu! E que esforço sobrehumano, o meu! Mas –eis a nanoquestão, Senhor -, mesmo com todo o teu Poder Miraculoso, mesmo com toda a minha titânica fibra, resta ainda uma cabra duma minudência que infecta e conspurca o Teu universo mais que perfeito: é o Vasco Rato, ó meu Deus! O Vasco Rato e aquele puto anormal, um Não-sei-Quantos que parece ter brotado por partogénese anal do primeiro!... Para que é que aquilo serve?...

Aguardo a Tua sobredouta resposta em perturbada angústia.

Dragão