terça-feira, dezembro 07, 2004

Carta ao Pai Natal

Estimado Pai Natal,

Aproximando-se mais uma quadra da tua jurisdição, tomei a liberdade de te remeter uns sarrabiscos. Como deves calcular, venho formular-te alguns pedidos, não muitos, não com intuitos açambarcadores e egoístas (como bem sabes, o liberalismo não me fascina), mas em nome de todos os portugueses meus irmãos, de esquerda e de direita, masculinos e femininos, velhos e crianças, portistas e benfiquistas, enfim, todos, excepto os neoconas, os neoliberais e os fariseus, passe o pleonasmo, porque esses como já são umas ricas prendas não precisam delas. Aliás, corrijo: se puderes, traz-lhes um escarépio. Não dos mentais, que desses já eles têm, mas daqueles clássicos, de trazer na gaita e que só desaparecem ao fim de muito tempo e várias injecções. Não te esqueças.
Mas vamos ao que realmente interessa.
Pai Natal, já nos conhecemos há um bom par de anos. Por causa aquela bicicleta essencial que te esqueceste naquele Natal fatídico (um raio te parta!), sabes que ainda estás em dívida para comigo. Estás e estarás, porque por mais anos que eu viva não me esquecerei. Portanto, sendo que desta vez até estou imbuído de autêntico espírito altruísta digno da efeméride que aí vem, desta vez –e ao contrário daquela noite fria de há muitos anos (grande sacana) – confio que não me deixes ficar mal.
Começo por te pedir uma coisa que estes gajos, os portugueses, estão muito carentes neste momento: um governo. Mas não daqueles de imitação, em miniaturas tele-comandadas, a corda ou a pilhas, chiça! Para isso já temos estes do costume, das lojas dos trezentos, dos bazares monhés e da feira de Carcavelos. São de péssima qualidade, estes, mesmo enquanto brinquedo – não duram nada e ainda agora acabaram de escavacar o último (regista aí nos teus apontamentos que estes gajos oscilam quotidianamente entre a alarvidade e a broncolatria). Não, Pai Natal, é dos outros que convinha que trouxesses, daqueles reais, feitos de pessoas a sério, com coluna vertebral e tudo. Eu sei que aí na Lapónia correm rumores de que estes gajos são ingovernáveis e, viciados no desgoverno, junkies da balbúrdia, a última coisa que desejariam seria genuína ordem, justiça e competência ao leme da colectividade. Não é que não haja um certo fundo de verdade nesses boatos (para te ser franco, até é mais que um fundo), mas, mesmo assim, tendo em atenção a quadra natalícia, há que usar duma certa generosidade, não achas? É melhor que aches, porque senão ainda vou ter que me chatear contigo. Bem sabes que o meu sonho secreto era ser um ditador sanguinário.
Por isso não me venhas com a história que governos desses, verdadeiras obras de arte, já não se fabricam. Que agora vem tudo da China, ou de Taiwan, que é aquela china mais o pequenina que a outra, ou da Malásia, ou do raio que os parta a esses cabrões dos capitalistas! Procura, ó Pai Natal. Se te resignas, não admira que os gajos te substituam pelos shopping coisos e pelos cartões Visa. Desenrasca-te, que diabo! Põe um anúncio na internet! Informa-te junto dos blogues. Algum artesanato ainda há-de restar –alguma daqueles oficinas vetustas onde burilam ainda velhos mestres virtuosos. Senão, manda embaixadores a outros planetas, vasculha noutras galáxias, faz qualquer coisa, criatura de Deus!... Envia sondas pelo Cosmos, aconselha-te com o Altíssimo, vais ver que nalguma constelação logo ali ao virar da esquina devem estar a saldá-los ao preço da uva mijona. É uma lei da física –a única, aliás, com ar de valer mais que um tostão furado: se aqui há uma penúria do caraças é porque nalgum outro lugar do universo certos nababos nadam na abundância. Seja justiça, seja comida, sejam governos. Vai por mim: procura bem que vais ver que ainda encontras.
Não obstante, usa de alguma prudência. Se entrares em desespero, não deixes que em parte nenhuma ele transpareça. O teu e o meu, que de ver-te assim a arrepanhar os cabelos também me preocupo. Desconfio que os mercadores são iguais em toda a parte: desespero e necessidade são para eles música celestial e pretexto ágil para especulação e ganância desinsofridas. E depois, mesmo que não tenham o que procuras, nunca têm, tratam logo de te impingir outra bugiganga qualquer, que embalam de superiores performances e infinitas vantagens. À falta de governo vertebrado, não te admires, pois, se te acenarem, em jeito de último grito ou pechincha de ocasião, com um "homem providencial". Não é que não tivesse a sua piada, largares-lhes tu um desses pela chaminé abaixo, todo pimpão, de código draconiano numa mão e cavalo marinho na outra, sobretudo para chatear os liberais e vê-los a coçarem-se desvairados, servindo de repasto à urticária. Mas desconfia, será pechisbeque pela certa: um verdadeiro homem providencial –um Péricles, um Alexandre, um Napoleão -, é ainda mais raro que os governos a sério. Não é por acaso que os associam, regra geral, esses diamantes políticos, aos cometas e aos augúrios celestes, sendo o seu nascimento normalmente presidido por eventos extraordinários e conjunturas mirabolantes. De resto, o último providencial que lhes trouxeste, não sendo um Stradivarius desses (longe disso), mesmo assim durou que se fartou, parecia que nunca mais acabava; e não fora a velhice e o parricídio mancomunados para o empurrarem duma cadeira abaixo, estou em crer que a História não teria tido vida fácil. Ainda dizem que o fabrico nacional não é bom!... Mas o pior foi que ardia em fervores paternalistas e estragou esta pandilha toda com mimos. Empanturrou-os de hóstias e bacalhauzadas; mandou-os em safaris e piqueniques pelas Áfricas ou estudos no estrangeiro, como opção para os mais alérgicos ou melindrosos ao paludismo; estimulou-os ao turismo laboral por seca e meca (quando se foi a ver, andavam aos milhares a flausinar por Paris e Hamburgo, a passearem-se pelas férias e natais na terrinha em brutas máquinas, e a erigir mansardas ao estilo alpe suiço); etc, etc. Claro está, quanto mais ele os apaparicava, mais malcriados, birrentos, sornas, velhacos e flácidos eles ficavam. Quanto mais porfiava por superprotegê-los, mantendo-os em redomas de moral e beatice sonsa, mais lhes atiçava a lubricidade reprimida e os treinava para a futura prostituição, para a escandalosa militância. Uma tragédia familiar, enfim. Manter os filhos na incubadora até à andro ou menopausa não constituiu, de facto, boa política. Resultou em flores de estufa. Hipocondríacos e neurasténicos, queixinhas profissionais, sempre a lamuriarem-se de qualquer coisa e de toda a gente, sobretudo de quem escape ao molde ou tenha o desplante de adoptar a postura erecta.
Por conseguinte, ó Pai Natal, se não conseguires trazer um governo a sério, tem cuidado com esses saldos de homens providenciais. Quase sempre é publicidade enganosa, refugo das fábricas do Absoluto. Os de contrafacção, mesmo de qualidade razoável, além de não se reproduzirem decentemente, promovem, à saída, salgalhadas babélicas e dédalos irresolúveis ainda piores que aqueles que encontraram à entrada.
Vê lá o que é que fazes, ó alma crédula!...

Por hoje não te maço mais e termino. Sei que, bem no fundo, te estou a pedir um milagre. Mas eu acredito em milagres e não há desilusão que me desencoraje. Não continuo eu, passados estes anos todos, a acreditar solenemente em ti?!...

Cá te espero em impaciente vigília,

Dragão

PS: Caso te seja de todo impossível realizá-lo, não obstante as exaustivas buscas e pesquisas, não esmoreças. Em vez disso, aproveita a campanha interplanetária e, de passagem ali pelas bandas de Marte, conforme reza a lenda, traz-me, a mim, teu credor prioritário, o "raio da morte". Assim, de momento, o único homem providencial verdadeiramente excepcional que me ocorre e conheço, neste país –sobretudo depois de armado com o "raio da morte" – sou eu. Dá-me pois tu o raio, que, à falta de governo vertebrado, o homem providencial lhes darei eu. E digo-te ainda mais: Traz-me essa benemérita ferramenta este Natal e ficamos quites quanto à bicicleta. Palavra de Dragão!

3 comentários:

  1. olha só do que te havia de lembrar... um "cometa"... PÔôô ":O.

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  2. AH AH AH: "(...) e ficamos quites quanto à bicicleta"! Ninguém doma este Dragoum-he!
    É a melhor carta ao Pai Natal que eu já li!

    Nós ainda ficamos é "Kitsch", com esta parafernália iconoclástica! E, "ainda por cima" - povo dixit - sem bicicleta! Ora então, leve lá o Dragoum-he a bicicleta que lhe fica benzérrimo!

    Congrat's, one more time!

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  3. Amigo Dragão, com a modernização dos CTT (ou lá como lhe chamam), julgava ainda ser cedo para tais cartas. Também queixoso, por sucessivos falhanços do dito cujo, talvez por mal saber escrever, é certo, este ano vou fazer-lhe exactamente o mesmo pedido.
    Achei por bem pedir-lhe que me deixasse subscrever a sua carta!?... Não me leve a mal, pois explico-lhe as razões; a primeira já referi, e a segunda por temer, que desta vez, o pai natal satisfizesse o pedido aos dois?...
    Grato pela carta, pois deixo o assunto à sua consideração.
    Assina, reconhecido
    Obus ‘moonlight’

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