segunda-feira, maio 31, 2004
A IMACULADA ANGLO-CONCEPÇÃO
É um artigo de opinião interessante, não tanto pelo rigor ou imparcialidade da análise (fenómeno cada vez mais raro nos tempos que correm), mas precisamente pelo seu contrário: a parcialidade da dita. Uma parcialidade, de resto, muito típica a um certo "pensamento de direita" a que eu chamaria "anglo-saxónico". Ou "direita peregrina", se preferirem.
O autor, um tal George Watson, concentra-se no século XX e afadiga-se de roda das seguintes teses essenciais:
a) O genocídio é património da esquerda;
b) O genocídio é património do século XX.
Para alcançar este monumental desiderato, o George gasta grande parte da exposição na tentativa de provar que o Nazismo, afinal, é de esquerda, velada derivação marxista, genuína cavalaria utópica. Vale a pena acompanhá-lo nesta aventura. O início da arenga é, até, prometedor e não totalmente absurdo. Diz ele:
«The Left is perceived as kind and caring, despite its extensive history of promoting genocide.
When it comes to handing out blame, it is widely assumed that the Right is wicked and the Left incompetent. Or rather, you sometimes begin to feel, any given policy must have been Right if it was wicked, Left if it was incompetent.»
Quando ao que o George sustenta, nada como ler o artigo e cada qual tirar as suas conclusões. Quanto ao que, em contrapartida, a história conta, não restam quaisquer dúvidas que o genocídio não é património exclusivo de nenhuma política, época, regime ou, tão pouco, geografia. Antes fosse. Isso, no mínimo, significaria que passado esse regime e essa época estaríamos livres da coisa. Infelizmente, a regra não é essa. Na verdade, em termos antropológicos, o genocídio é património da Humanidade (um dos mais negros e recorrentes) e nomadiza por todas as regiões e épocas. Mas não é património exclusivo: Deus e a natureza precederam-na e acompanham-na, ainda hoje, nisso.
Contudo, também não são essas evidências macabras o que, por agora, nos interessa. Prefiro aceitar a tese peregrina do George Watson e, pressupondo-a válida, tentar abordá-la sob dois aspectos distintos:
Em primeiro lugar, pela sua motivação; em segundo, por aquilo que nos revela.
Quanto à motivação, é óbvia: a direita peregrina (anglo-saxónica) pretende fazer coincidir o termo "direita" com religião capitalista. Quer dizer, ser de direita equivale a aceitar o dogma capitalista no seu esplendor inefável e nos seus efeitos práticos permanentes e determinantes: a supremacia indiscutível do primado económico sobre o primado político e a ostracização de qualquer primado ético. Daí que toda e qualquer crítica ou mera fonte de dúvida sobre o capitalismo, congreguem as fúrias e rancores desta gente e sejam de pronto precipitadas nos abismos da demonização e do mal absoluto. É para esse tragadouro que, nesta perspectiva fundamentalista, resvala cada vez mais a esquerda, bem como toda e qualquer crítica ou heterodoxia, de roldão e rojo, junto com ela. Para esta "direita peregrina", Hitler já é marxista, e qualquer tipo que não se prostre, de ventas ao chão, cú pró céu e chulé desarvorado, em adoração à Nova-Meca, não passa dum perigoso comunista ou monstruosidade associada.
Quanto ao que revela, a excursionista tese do Watson, ainda é mais esclarecedor.
Aceitemos então que o genocídio é património exclusivo da esquerda, agremiando esta todas as demandas utópicas que contrariem o realismo capitalista. (Não esquecer, entretanto, que, segundo estes novos categóricos, toda e qualquer não-resignação deverá ser considerada utópica).
Pois bem, os "utópicos", na sua correria acelerada ao mundo redimido prescindem duma série de gente, que consideram, sob diversos títulos, absolutamente excedentária e descartável. No caso Nazi, por exemplo, tratar-se-iam, essencialmente, de hordas sub-humanas, escravas ou deficientes. Na sua concepção singular de mundo, esse tipo de sub-pessoas não cabia. Ao contrário da concepção capitalista, da direita peregrina, sobretudo pragmática, onde esse género é não só bem-vindo como indispensável.
Não esquecendo, já agora, uma outra nuance deveras bizarra e não menos significativa: no complexo sistema conceptual desta malta imaculada, só conta para o campeonato do genocídio a mortandade premeditada e organizada a tiro, a gaz, à bomba ou por qualquer desses sortilégios espectaculares, com entrada directa e garantida para o top dos telejornais. Sem dúvida: Tratar dessa rude maneira as pessoas (ditas sub-pessoas), é que é genocídio. Já envenená-las, fria e paulatinamente, física e espiritualmente, ou deixá-las morrer à fome, não conta.
O TERRORISMO AMIGÁVEL
É pungente:
«EX-VEDETA DE FUTEBOL MORTO POR FOGO AMIGO
Pat Tillman era um dos mais respeitados desportistas do futebol americano, com contratos milionários que rondavam os 3,6 milhões de dólares. Em Maio de 2002, decidiu defender o país da ameaça terrorista».
Em vão: os terroristas mataram-no.
«Alistou-se nas forças especiais e partiu para o Afeganistão, em busca da honra e glória. Ali morreu, em Abril último, vítima de 'fogo amigo'.»
Com amigos daqueles, quem é que precisa de inimigos? Esta, aliás, é a pergunta que a generalidade do planeta se coloca.
sábado, maio 29, 2004
PSICOTERAPIA PARA PSICANALHAS -I. Os convulsionários
Inaugura-se hoje uma nova rubrica neste blogue: o Consultório Clínico-Sentimental. A Abrir, um caso clínico. E crónico.
Acabo de receber uma mensagem aflita -lancinante, mesmo -, duma leitora em estado de choque (compreensível, diga-se em bom abono da verdade). Diz ela, a pobrezinha:
"Dragão, socorro! Acuda-me, se é uma pessoa de bem, tire-me desta agonia!... É o Pacheco Pereira, Dragão! Está por todo o lado: na rádio, na televisão, nos jornais e agora até na blogosfera! Não se cala, dia e noite, faça chuva, faça sol, lá está ele - sempre a badalar, a falazar, a grungunzar, como um canídeo inconsolável ou uma centopeia com fractura exposta, mas uma centopeia não de mil patas mas de mil línguas, todas elas histéricas!...E também eu já me sinto histérica, Dragão...Não aguento mais! Mas ninguém tem piedade do pobre animal?! Não haverá por aí uma alma caridosa que lhe acabe com o sofrimento?!"(...)
Acalme-se, estimada leitora. Compreendo a sua aflição. Gostaria de tranquilizá-la, de poder afiançar-lhe que tudo não passa de imaginação sua, mas, infelizmente, não posso. É, de facto, um caso complicado. O que não deixa de ser surpreendente: que um simples insecto possa causar tanto transtorno... e, todavia, bem menores são certos vírus e os amargos de boca que não nos causam e à humanidade em geral!... Convém, não obstante, aferir a terminologia: tratando-se de "línguas" em vez de "pés", temos não uma centopeia, mas uma "centolabris", ou, dito em grego, uma "hecatoglossa", isto se fossem "cem línguas", já que, como refere "mil", melhor será chamar-lhe uma "milolabris" ou uma "quiloglossa". Aperfeiçoada a taxinomia, avancemos, então...
Pois a forma de vida em questão (estranha forma de vida, sem dúvida) apresenta claros sintomas que, sendo singulares, não são, todavia, originais. Certas aves canoras e palradoras também são capazes de escarcéus descabelantes, capazes de fazer corar o mais incauto transeunte, mas nenhuma, é certo e sabido, consegue chegar aos calcanhares deste que refere. "Furioso" ou "galopante", são adjectivos que, desde há muito, se manifestam impotentes para abarcar o seu discurso, ou mais exactamente, a sua palraria. Claramente, Pacheco Pereira é um palrador convulsivo e a sua proeza não menos significativa foi conseguir promover a epilepsia a género maior da retórica. Sabia-se que os epilépticos davam bons generais ou tiranos trans-nacionais (veja-se Alexandre ou Napoleão), mas considerava-se quase impossível que pudessem dar bons comunicadores ou demagogos (porque, geralmente, babavam-se muito, urinavam-se e mordiam a própria língua). Pacheco Pereira, honra lhe seja feita, veio para revolucionar essas categorias: É um epiléptico light, quer dizer, continua a babar-se, urinar-se e espoldrinhar-se repetidamente, mas conseguiu tranferir tais manobras do âmbito físico ( tantas vezes incómodo e traumatizante para o próprio) para o âmbito dialéctico e discursivo (agora incómodo e traumatizante para os outros). Disso se ressente a nossa leitora, e tantos que, como ela, possuam uma alma sensível, ou não tenha sidom sujeitos a formas anestesiadas de lobotomia. Isso, sobremaneira, resulta do hábito que as pessoas sensatas e civilizadas desenvolveram de esperar nexo ou sentido dum discurso, ou mesmo duma mera associação de palavras. No caso em questão, tal é não só inútil como potencialmente exasperante e, a limite, traumático. É preciso não esquecer que, afinal de contas, se trata duma espécie pioneira de tradução (ainda para mais simultânea): de convulsões em vocábulos. O facto deprimente de se nos deparar algo que oscila entre (mas nunca transcende) o arrazoado, a verborreia ou o solilóquio pode ser compensado com o registo notável de tal ser levado a cabo sem morder a própria língua, nem, tão pouco, sufocar por via dela. Há, pois, qualquer coisa de funambular, malabarístico, inaudito, em Pacheco Pereira, essa "quiloglossa" desarvorada. Convulsivo maior, emerge nimbado de artifícios sofisticados e equipamentos de ponta. Como todos os epilépticos, por alturas do achaque, socumbe ao frenesim, abandona qualquer pejo, permite-se desplantes e aleives. Assim, o seu discurso não argumenta, opina ou articula: despeja, irrompe, desaba, abruptamente - a sua dialéctica, nos antípodas de Platão ( e da Razão), irmana-o, na metodologia, à enxurrada. É contundente, na medida em que dispara em todas as direcões, com a irracionalidade própria dos grandes defluxos, que não sabem onde vão, nem isso os preocupa. E não obstante, algo nele, o distingue dos seus predecessores... Exactamente: a inexistência de ataques, achaques, recaídas ou esperneamentos típicos; a epilepsia como estado normal e natural, desviada dos músculos e confinada às palavras. Mirabolante? Sem dúvida. De tal modo, que, às tantas, hesitamos: será digno de canonização ou de exorcismo?
Esta, reconheça-se, não é uma questão meramente académica. Pelo contrário, trata-se duma questão capital, que acompanha o convulsionismo, enquanto doutrina e cosmovisão, desde as suas origens. Os relatos espantosos começam no século XVIII, em França (para desgosto do nosso Pacheco que, certamente, preferiria os Estados Unidos, país convulsionário por excelência). Marie-Anne Vassereau, filha do barqueiro de Orleães, foi a das primeiras a causar sensação"(...) "Punha-se-se a agitar os braços, as coxas e as pernas, até perder os sentidos; voltando a si, saltava, fazia contorções, era preciso que várias pessoas a segurassem. Andava, berrava, profetizava. Os curiosos, os devotos, não a deixavam.(...)"
Nesta sua ancestral, reconhecem-se os traços característicos da espécie, os atavismos filogenéticos. Os paralelismos são evidentes: Marie-Anne é sensacionalista, frenética, profetiza; mas é igualmente um protótipo, um modelo ainda rudimentar. Quase três séculos mais à frente, Pacheco já não desfalece, não berra tanto nem dá saltos tão acrobáticos; as suas contorções, não menos fulgurantes, processam-se agora ao nível mental, no plasma amorfo a imitar espírito; vaticina pelos cotovelos; e os curiosos, mais que os devotos, apreciam-no, como apreciam os grandes descarrilamentos.
Depois de Marie-Anne, surge, segundo a tradição, o cavaleiro Folard. Sugestivamente, "A sua única ocupação é rezar e ler livros de piedade, frequentar as casas das convulsionárias e seguir a pista dos pródigos"(...)
Pacheco deve-lhe muito e paga-lhe cumprindo o ritual, excepto na leitura, por falta de tempo e traumas irreversíveis ao nível do raciocínio.
Folard é complexo: "Se reza, é cantando; se nos recomendamos às suas orações, põe-se imediatamente a cantar. Outras vezes chora, e depois de ter chorado põe-se de repente a falar por monossílabos; uma verdadeira algaraviada, em que ninguém entende patavina. Alguns dizem que fala em língua croata nesses momentos; mas creio que ninguém percebe nada(...)" O génio do cavaleiro Folard repercutirá, séculos adiante, a prosápia do nosso Pacheco. Não canta, nem chora...por enquanto. Sabe-se que, lá no fundo, anela por seguir a pista (não de Santiago) mas dos Tios e, na senda de MoCinha Jardim, quando isso for suficientemente aberrante, participar num Big Brother Especial dos convulsionários.
Por fim, chegamos aos dois grandes convulsionários da época clássica: o senhor Fontaine, secretário dos decretos de Luís XV; e a senhora Thevenet, irmã do cónego de Corbeil. Quanto ao primeiro, em Março de 1739, "entregue ao ascetismo mais total, jejum, cilício, orações, macerações, desejava mergulhar no nada.(...)
Aqui, no método, Pacheco, por uma vez, não quis deslustrar o seu portuguesismo: num rincão onde, como lamentava Garrett, sempre campearam frades, à postura ascética, preferiu a fradesca; ao jejum, ao cilício e à oração, optou pela comezaina, o trim-tim-tim e a vida fácil. Mas o resultado foi o mesmo: onde Fontaine desejava, Pacheco mergulhou de cabeça. Por seu lado, a senhora Thevenet era "muitas vezes atingida por um mal extravagante, dava saltos, contorcia-se, cometia actos indecentes, punha-se a pregar como um pregador (...) a desordem do seu vestuário prova que desconhece todos os sentimentos de pudor; as palavras que pronuncia com rapidez são ininteligíveis e não pertencem a qualquer língua conhecida (...)."
De novo, o mesmo despudor, a mesma desordem mental, a mesma inintegibilidade na arenga, que testemunhamos diariamente e que, pelos vistos, tanto afectam a nossa leitora.
Resumindo: em Pacheco Pereira reconhece-se um legado múltiplo de tão influentes ancestrais. Como muitas vezes dizem os historiadores: nele, refinam-se e congregam-se os traços das gerações antecedentes. Em Pacheco, com efeito, num soufflé sublime, ou salganhada olímpica, coabitam o contorcionismo e os dotes oraculares da filha do barqueiro; o voo picado nihilista do cavaleiro Folard; a algaravia e a abstrusão do senhor Fontaine e da senhora Thevenet. Descurar esta complexidade eloquente, este prodígio da evolução da espécie, este promontório da selecção natural, é cometer um crime contra a verdade e a ciência.
Por isso, estimada leitora, detrás do caos, tente vislumbrar o milagre de Deus e da natureza, o trabalho metódico dos séculos e das moléculas. Tudo tem uma razão de ser, ainda que, às vezes, absurda: mesmo os piores monstros e abortos, não desfazendo. Se não fossem os erros da Natureza, como é que a Natureza aprenderia?
Quanto à forma apocalíptica como termina a sua missiva - (...)«Dragão, não é possível ser só uma pessoa: deve ser como o Saddam Hussein, devem ser vários, sósias, clones, robôs!...Acuda-me, bom Doutor, por amor de Deus!!» - é como acabo de tentar explicar-lhe: é a Marie-Anne, o cavaleiro Folard, o senhor Fontaine, a senhora Thevenet e uma legião de tantos outros ilustres convulsionários, que, há falta dum bom Jesus que os pacifique, cismam de lavrar o seu protesto e manter bem viva a sua estirpe.
Fique bem, minha boa amiga. E escreva sempre (recomendação extensível a todos os leitores).
Um seu/vosso criado
Dragão Freud
sexta-feira, maio 28, 2004
PARA UMA ANTOLOGIA DO TERROR -IV. O Suplício Legal
O suplício distingue-se da tortura.
Se esta se propunha, genericamente, apurar factos, extrair confissões ou forçar a determinadas confidências (de interesse militar, por exemplo), já aquele ostentava propósitos mais edificantes. Propunha-se constituir um exemplo, estabelecer uma memória, macerar o espírito. Tanto quanto punir, a sociedade, através dele, tratava de incutir o terror e a piedade nos espectadores, exibir a grandeza da sua supremacia através da desmesura da sua crueldade.
De facto, a distância que vai da tortura ao suplício é a mesma que vai da masmorra ao cadafalso, do espaço reservado ao espaço público, do segredo ao espectáculo.
Há, de resto, uma diferença de tempo: a tortura precede, o suplicío acompanha a execução; há uma diferença de estatuto: a tortura exerce-se sobre suspeitos, o suplício sobre condenados; há uma diferença de objecto: na tortura é o corpo e o espírito da vítima, no suplício são os espíritos dos espectadores da execução e a própria história (o corpo da vítima é só o instrumento central); e há, finalmente, uma diferença retórica, discursiva: na tortura estuda-se, analisa-se, debate-se; no suplício conclui-se, apresenta-se o axioma indiscutível e definitivo. O horror passa, assim, da fase velada ao climax apoteótico, apocalíptico, retumbante. O terror, por sua vez, sempre se constituiu, ao longo dos tempos, como veículo maior e essencial da dissuasão.
Quanto às modalidades, sobretudo desde a Baixa Idade Média até à Revolução Francesa, remetiam para os crimes que era suposto punirem: Queimar vivo (delitos religiosos); enterrar vivo (aplicou-se a judeus, e a ladrões); precipitação em báratros ouriçados de lanças ou piques (Richelieu praticou-o secretamente sobre alguns inimigos; os conventos e abadias votavam-lhe monges culposos); esquartejamento (crimes de lesa-majestade); a roda (crimes diversos); esfolar vivo (adultério de lesa-majestade e alta traição); polé (crimes praticados por militares ou marinheiros); cozedura (crimes de contrafacção de moeda); atenazamento (suplício complementar dos outros).
Nas palavras de H.Samson, Antigo Executor no Supremo tribunal de Justiça de Paris, insigne membro duma família de sete gerações de carrascos (o cargo, à semelhança do rei, era hereditário), testemunhemos um desses suplícios...(leitura não recomendável a almas sensíveis):
«Mas o esquartejamento mais em uso, e que subsistiu até 1757 (Damiens foi o último regicida esquartejado) consistia em amarrar o paciente pelos pés e pelas mãos a quatro vigorosos cavalos, que puxavam em sentidos contrários, até que os membros se separassem do tronco. Quase sempre este suplício horrível era reservado aos acusadops de crimes de lesa-majestade. Duas horas de sofrimentos que não se podem descrever eram suportados pelo paciente, antes que exalasse o último suspiro. Apesar deste requinte de crueldade, o esquartejamento era precedido de várias outras penas que o tornavam ainda mais bárbaro. Com efeito, o criminoso, depois de ter feito confissão pública e de ter sofrido a interpelação ordinária e extraordinária, era conduzido nu ao suplício, dentro de uma carreta. Era deitado de costas no meio do cadafalso, que tinha a altura de dois pés, e aí amarrado com correntes, uma das quais lhe cingia o peito e a outra as coxas; amarrava-se-lhe depois à mão direita a arma de que se tinha servido, queimando-a com um pouco de enxofre. Logo a seguir, com tenazes, eram-lhe arrancados pedaços de carne das coxas, do peito, dos braços e das barrigas das pernas; entornava-se-lhe sobre as feridas uma composição de cera, enxofre e resina. feito isto, amarrava-se-lhe uma corda a cada membro, às pernas, desde o joelho até ao pé, e aos braços, desde o ombro até ao pulso; a extremidade da corda era presa à boleia de cada cavalo, que, depois de alguns galões, puxava com todas as forças. Na maioria dos casos, apesar do esforço de quatro cavalos, os membros não se separavam; então o carrasco dava golpes nas articulações, para apressar o fim do suplício. Cada cavalo arrastava um membro; reuniam-se depois aqueles farrapos sangrentos e queimavam-se numa fogueira. Foi desta maneira triste e cruel que, depois de João Chastel -que em 1595 ferira Henrique IV com uma navalha na cara - vemos morrer Ravaillac e Damiens, os dois regicidas, cuja agonia longa e cruel a história conservou.»
(Ainda sobre o esquartejamento de Damiens, existe uma descrição no "Vigiar e Punir", de Foucault, que podem ler aqui.)
Naquele tempo, convém recordar, este tipo de matiné do horror era o espectáculo predilecto da multidão: Como o teatro já o tinha sido para os Gregos antigos, ou o circo para os Romanos. O novo coliseu de medievais e modernos decorre em torno da via sacra que liga a masmorra ao patíbulo e, especialmente, no auge do calvário, diante das manobras e tormentos que culminam no cadafalso. Os carrascos suam; o condenado grita, berra, uiva de dor; o cura consola; o escrivão regista; a multidão -mulheres, homens, crianças de todas as idades que ali vêm instruir-se-, persigna-se, estarrece-se, chora também copiosamente; e, no fim, todos se retiram, em paz e harmonia, saciados e assombrados por tão ilustrativo e lauto espectáculo.
Poderíamos dizer que eram épocas brutais, costumes ainda semi-bárbaros, mentalidades mórbidas e doentias.
E, no entanto, pasme-se, ainda hoje é deste tipo de circunvoluções mentais pegajosas que, em grande medida, se alimentam o cinema, os jornais e as televisões (sobretudo à hora dos telejornais).
A morbidez não diminuiu, as encenações não são menos tétricas, os espectáculos não estão menos ignóbeis e degradantes. Apenas se tornaram uma indústria. Cada vez mais florescente.
Pior: o suplício deveio rotina. Quando não é à moda de Sade, é à moda de Kafka. Venha o Diabo e escolha.
quinta-feira, maio 27, 2004
ANTES QUEBRAR QUE TORCER
Dignou-se, um mui gentil comentador deste blogue, deixar aí abaixo uma alusão ao "integralismo lusitano".
Isto, mais que não fosse, levou a que eu me confrontasse com uma questão que muito raramente coloco a mim próprio:
Eu, Dragão, serei republicano ou monárquico?...
Politicamente, sou português. Lamento muito desiludir os direitistas serôdios e de meia tigela que por aí pastam e que já me tinham degradado a "comunista" (ou coisa que o valesse), mas é assim, tenham paciência, gosto muito deste país, é o meu, com todos os seus defeitos e desgraças, sem petróleo nem diamantes, sem armas de destruição maciça fora a televisão, capaz da cobardia e do heroísmo, pobrezinho mas (gostaria eu, acima de tudo) honrado. Do presente deste país não gosto. Não sou masoquista. Mas também não o renego. Assumo a minha quota-parte na tragédia. Além do mais, o presente deste país não o resume, ao país, nem atesta, nem esgota. Portugal não é só esta meia dúzia de parasitas, nem este rebanho de sonâmbulos que lhe turvam a consciência e tolhem o futuro. Portugal é, apesar disso. Portugal não são só os vivos meio-mortos: são também os mortos que estão mais vivos que estes mortos-vivos, e o chão, o mar, o céu, os montes, as árvores, os sonhos, e todos os que hão-de vir, se não os deixarmos morrer antes. Portugal não começou a 27 de Março de 2002, nem a 25 de Abril de 74, nem a 5 de Outubro de 1910. Não nasceu nem renasceu nessas datas. Renasce ou morre todos os dias. Não no calendário, mas na nossa alma, no nosso sangue e vontade de viver ou morrer. Um homem mata-se quando se vende. Porque um homem não é um escravo, nem uma puta. Quando um homem morre, morre um pedaço do país com ele.
Portugal foi fundado em 1140, num tempo em que os homens, ao contrário de hoje, triunfavam pelo valor da sua coragem, mais que pela manha da sua perfídia. E se resistiu, vai para nove séculos, independente ao lado da gente mais alarve e bárbara da Europa que são os castelhanos, algum mérito e valor deve ter.
Nesses oito séculos e meio foi, a maior parte do tempo, mais de sete séculos, uma monarquia. Há menos de 100 anos é uma república. Ocorrem-me alguns reis e príncipes extraordinários. Não me ocorre nenhum presidente da república que se diga benza-te Deus, e políticos republicanos, muito poucos. Isto quer dizer que a República é pior que a Monarquia? Também houve reis que foram uma catástrofe - um D.Fernando I, um João III, sobre todos!; uma nobreza que a maior parte do tempo, e em tempo de crise, se vendeu aos espanhóis (tal qual hoje ensaiam as pseudo-elites); um clero que, depois da Inquisição, muito contribuiu para mergulhar o país em sectarismo e beatismo filisteu (como hoje se esmera a Opus Day).
Em que ficamos? Republicano ou Monárquico? Olhem, não é questão que me tire o sono. Mas sempre vou dizendo aos monárquicos: Se me garantirem que têm aí um D.João II, um Príncipe Perfeito desses, então contem com o meu braço.
Na minha qualidade de Dragão - de mostrengo, portanto-, compreendo bem a angústia desse marinheiro que...
«Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
e disse no fim de tremer três vezes:
"Aqui ao leme sou mais que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade , que me ata ao leme,
De EL-Rei D.João Segundo!"
Mais que em sistemas, ou regimes, é neste Povo que eu acredito.
Antes quebrar que torcer.
EFEMÉRIDE MALDITA
Em 27 de Maio de 1894, pelas 16 horas, faz hoje cento e dez anos, nascia um senhor que viria a escrever uma das mais geniais obras literárias do século XX:
"Voyage au bout de la Nuit".
Podia não ter escrito mais nada. Ter-lhe-ia bastado para ascender onde apenas raros génios da literatura perduram -Rabelais, Sterne, Swift, Sade, Cervantes, Shakeaspeare, Dostoievsky, Quincey, Huysmans, Goethe, Pessoa... (Homero? Sofocles? Esquilo? - Esses não estão nos Campos Elísios: estão no Olimpo).
Mas é de Luis-Ferdinand Céline que falo. Um iconoclasta, num tempo de fariseus santificados. Escarrou nos altares e no egozinho liberal dum pseudo-humanismo burguês. Os burgueses não lhe perdoam. Dizem que foi anti-semita. Dostoevsky também foi e ninguém fala disso. Quero que os burgueses se fodam! E mais as suas mesquinharias liliputianas! E sobretudo os beatos sonsos de todas as paróquias! Lá, no alto do seu batel, em Céline, é a bandeira negra dos piratas que tremula. E isso basta-me. É a "Viagem" que fica, é a "Viagem" que conta, e essa leva-nos desde os abismos aos píncaros da nossa alma. Termina assim:
«Ao longe, o rebocador apitou; o seu apelo ultrapassou a ponte, um arco, ainda outro, a comporta, outra ponte muito longe, cada vez mais longe...Chamava a si todos os lanchões do rio, todos, a cidade inteira, o céu, o campo, e nós, tudo quanto ele arrastava, o Sena também, tudo, e não diremos mais.»
Nem precisavas, ó Céline, raios te partam! Quando se é visitado assim pela musa da literatura, o melhor mesmo é emigrar para outro planeta. Que Deus te guarde!...
O AUTOR MISTÉRIO...
Pois, caros leitores, ninguém acertou. Louva-se o vosso esforço, mas o senhor que escreveu aquela catadupa de verdades (que eu intitulei "Ócio e Trabalho) foi (suspense...): NIETZSCHE.
in, "A Gaia Ciência", 329 (Ócios e Ociosidade)
É uma leitura que se recomenda. Este Mundo-Hospício em que vegetamos? Ele explica-o.
in, "A Gaia Ciência", 329 (Ócios e Ociosidade)
É uma leitura que se recomenda. Este Mundo-Hospício em que vegetamos? Ele explica-o.
quarta-feira, maio 26, 2004
OPTIMISMO GALOPANTE
Ando a gastar o meu latim para nada. Já várias vezes, neste blogue, demonstrei, por A+B e B+C, que os portugueses são o povo mais optimista do mundo, e este Delgado nunca mais aprende. Sabia que era burro, mas não tanto.
Lembrou-se agora, vejam lá bem, de lançar o labéu de "pessimista" (esse sintoma claro da esquizofrenia ou -agudizada esta- do terrorismo) sobre todos aqueles que não acreditem piamente na excelência deste governo e da sua sábia governação, capazes, os dois prodígios juntos, das maiores proezas e milagres de que há memória. Sim, registem bem: nem é preciso a descrença, basta a dúvida, a vacilação, a suspeita.
Para não variar e dar prova cabal da sua asnosofia perseverante, o Delgado, intestino - quer dizer, íntimo confrade da gafe e da aleivosia, porfia na confusão semântica que o distingue e lhe tem valido não escassos cargos e promoções. Confunde "pessimismo" com o antónimo de "imbecilidade" ou "debilidade mental"... Compete-me despertá-lo: Digníssimo escriba, convença-se (e se duvida, consulte os compêndios): O contrário de "pessimista" é "optimista"; como, na mesma linha, o contrário de "descrença" é "fé".
Eu, por exemplo, sou um optimista incorrigível. Não dou um tostão furado pelo governo, nem por si, caro Delgado. Mas não deixo que isso afecte o meu optimismo. Pelo contrário, sinto-o tonificado, fortificado em cada dia que passa. Sei que todas as noites, garantem-mo os astrónomos e eu lobrigo da janela, caem centenas de meteoritos sobre a Terra. Por isso acredito, tenho fé - uma inoxidável esperança-, que algum deles, de bom peso e tamanho, numa dessas incursões metódicas, lhe acerte bem em cheio na cabeça.
Se isto não é optimismo...
ÓCIO E TRABALHO
«Há uma selvajaria (...)na maneira como os Americanos aspiram ao ouro; o seu frenesi do trabalho -o verdadeiro vício do novo mundo - começa já a barbarizar, por contágio, a velha Europa, aqui dizimando o pensamento de maneira muito estranha. Tem-se agora vergonha do repouso; quase se experimentaria um remorso em meditar. Pensa-se de relógio na mão, mesmo quando se está a almoçar, com um olho no correio da bolsa; vive-se constantemente como o cavalheiro que tem medo de "falhar" alguma coisa. "Mais vale agir do que não fazer nada", eis ainda um desses princípios de carregar pela boca que correm o risco de vibrar o golpe de misericórdia a qualquer cultura superior, a qualquer supremacia do gosto. Este frenesi do trabalho dobra a finados de todos os modos; pior,enterra o próprio sentimento desta forma, o senso melódico do movimento; as pessoas tornam-se surdas e cegas a todas as suas harmonias. A prova está na pesada precisão que se exige agora em todas as situações em que o hoem quer estar diante do seu semelhante, nas suas relações com amigos, mulheres, pais, filhos, patrões, alunos, guias e princípes; tem-se falta de tempo, tem-se falta de força para consagrar à cerimónia, aos meneios da cortesia, ao espírito da conversa, e ao ócio duma maneira geral. Porque a vida, tornada caça ao lucro, obriga o espírito a esgotar-se sem repouso no jogo de dissimular, de iludir, ou de prevenir o adversário; a verdadeira virtude consiste agora em fazer uma coisa mais depressa que um outro. Assim, só em raras horas é que as pessoas se podem permitir ser sinceras: e a essas horas, está-se tão cansado que se aspira não somente a "deixar correr" mas a estender-se pesadamente, a deitar-se.(...) Se ainda se encontra prazer na sociedade e nas artes, é um prazer do género daqueles que podem encontrar os escravos mortos de trabalho. Ah! Como fica contente por pouca coisa essa gente do momento, com ou sem cultura, como é modesta nas suas "alegrias"! (...) Neste ritmo as coisas poderão ir, rapidamente, tão longe que não se ousará mais ceder, sem desprezo por si próprio e sem experimentar remorso ao gosto pela vida contemplativa, ao desejo de passear em companhia de pensamentos e de amigos.
Pois muito bem, antigamente era o contrário: era o trabalho que dava remorsos. Um homem bem nascido escondia o seu, se a miséria o constrangia a fazer um. O escravo trabalhava esmagado pelo sentimento de fazer alguma coisa desprezível: "fazer" já o era por si só. "Só há nobreza e honra no ócio e na guerra", assim falava o preconceito dos antigos.»
Deixo aqui um repto aos leitores: Quem escreveu isto? - Um contemporâneo nosso? Um perigoso esquerdista? Um conspirador contra a religião do Mercado? Quem?...
Acrescento que por "antigos" se quer aqui significar os "antigos gregos". Nesse contexto, o fazer a guerra traduzia, essencialmente, defender a terra grega e a liberdade dos seus cidadãos. Que eram tanto mais livres quanto de tanto mais ócio dispusessem. A medida genuína da liberdade humana era então (como ainda hoje é) o tempo, o dispor do seu tempo. Ser subjugado por bárbaros estrangeiros acarretaria a canga da servidão, transformaria o cidadão grego em escravo: o que o degradava a essa condição era a perda do seu ócio, a confiscação do seu tempo, a sujeição ao trabalho forçado, como ferramenta ao serviço de outrém.
A nós, graças ao progresso e à evolução, este problema já não se coloca. Já nascemos escravos. Com a ilusão que somos livres. Por isso, a coisa leva-se (que remédio!...). É preciso é não olhar muito para trás. Senão, lá se vai a ilusão!...
terça-feira, maio 25, 2004
A FUGA AO SELF
Quanto mais ténues são os laços à sua terra, mais a criatura se pavoneia e distrai em romarias turísticas pela terra dos outros. Dessas divagações geográficas, sobretudo aéreas, gastronómicas e hoteleiras, traz não só souvenires, fotos e filmes, para exibir, em triunfo ou concurso, aos amigos, mas também opiniões, crónicas e roteiros que se julga na obrigação paternalista de recomendar ao familiar mais incauto. Através desta compulsão excursionista, os deambulantes intercontinentais submetem-se à terapia desopilante que os psicólogos denominam de "escape ao self" - sortilégio essencial à preservação da lobotomia esclarecida e da inteligência larvar onde é de toda a conveniência, para saúde do regime, que laborem e procriem.
Enfim, se antigamente, naquelas eras feudais, haviam os servos da gleba, agora, nestes tempos hodiernos, aí estão os servos do globo. Este, atrofiado e reduzido a aldeia, por obra e graça do Mercado e da Tecnologia, fervilha, doravante, enxameado de saloios globais, em deambulação omnívora, pelos quatro cantos da paróquia. Hordas de basbaques alucinados, de camcorder em punho, vasculham os lugarejos de alto a baixo, sem dar tréguas à paisagem. Exércitos de novos cruzados da cusquice, avançam de bedelho em riste, à conquista dos cacos históricos das civilizações defuntas. Chusmas de mirones deslumbrados, famintos de exotismo e folclore, irrompem, de roldão e comitiva, por lugares sagrados e tugúrios escabrosos. Assaltam tascos e galerias, infestam praias e arquipélagos. Montados na geringonça que estiver mais a jeito e alguém se lembrar de lhes cobrar dinheiro por isso, ei-los à desfilada, a infernizar a vida aos indígenas, às plantas indefesas e à bicharada autóctone. De tal modo, que se dantes o Terceiro Mundo tinha nas moscas uma das suas pragas infestantes, agora, duplicou a dose: tem as moscas e os turistas -a variante humana da varejeira.
Entretanto, com toda esta miniaturização do cosmos em terrinha, espécie de berça a boiar no espaço, o cosmopolita de outrora degenerou no bimbonauta do presente.
O fenómeno da bimbonáutica, todavia, não se resume à geografia. A fuga espavorida de si próprio (o tal self) e da sua própria terra enquanto alicerce de si, também ocorre em dimensões tão menos terrenas como é o caso da blogosfera. Aqui, de resto, por força da inexistência de barreiras fronteiriças, ou quaisquer condicionantes logísticas, o babélico peregrina na maior das liberdades e perfeições, tão rápido quanto o seu delírio permita. Na terminologia cognitiva, desconstroi a personalidade a um ritmo avassalador. Um dos passatempos mais singulares que se pode proporcionar à observação científica é visioná-lo, ao blogotrotter, nesses preparos e cometimentos.
Neste momento, por exemplo, uma série de criaturas dessas -a que podemos chamar ideo-turistas-, percorrem, numa espécie de escutismo voyeur com ritos sado-masoquistas, os locais mais exóticos da Terra. Atraem-nos sobretudo palcos de horrores, países entregues a ditaduras ferozes, daquelas ilegais, brutas, não legitimadas pelo voto popular. Ou pervertidas, desvairadas, demoníacas, hostis às benignas. Sítios donde o turista normal nem se aproxima. Ou até lá vai, porque é barato e come-se bem, mas em segredo, sem que ninguém saiba.
Estes noveis escuteiros blogosféricos, porém, nada temem. Afrontam a besta. Entram por ali fora, como cão em vinha vindimada, e investigam, espiolham, desmascaram, arrastam as misérias e os crimes hediondos prá praça pública. Conversam com as vítimas; registam óbitos e massacres; ouvem as queixas e os lamentos. Fotografam os cadáveres e as valas comuns. Nada lhes escapa. Contabilizam os ossos. Dão-se ao trabalho de reconstituir puzzles macabros. Mergulham de cabeça no horror e abraçam os sobreviventes, de olhos húmidos e coração fraterno. Farejam-lhes o bedum e a indigência; afagam-lhes as cicatrizes e as crostas. E, tão depressa como foram, voltam depois, dessas digressões pelos infernos, dessas romarias necropolitanas, de vistas rubras e beiças descaídas, a cara a pingar, solidários e indignados, clamando por justiça e atenção. Exibindo sobretudo, amarrotadas, ensanguentadas, entre dedos lívidos, as provas irrefutáveis, os certificados reconhecidos, da existência dos tiranos de destruição maciça. Dos genocidas de empreitada, contrários abomináveis dos genocidas a conta-gotas, nossos protectores e beneméritos.
Eles - que não querem ver, nem olhar e viram a cara pró lado à destruição do seu próprio país; que fazem da vida o desmantelamento da sua própria consciência; e se estão positivameente marimbando para a desgraça de milhares de compatriotas seus -, saem pelo mundo a fora nestas correrias imaginárias, de lenço ao pescoço e bastão ao alto, para se irem banhar nas desgraças e misérias dos outros?!...Que xenofilia enternecedora! Que filofobia lamentável!
E é suposto escutarmos com deferência e cara séria esses troféus da peregrinação com que regressam, numa espécie de apoteose missionária. E olharmos com tristeza e pesar essas suposições e supositórios com que nos brindam... E mais valia, sem dúvida, que enfiassem no cu!...
O SACO-GATISMO
Em contrapartida, mal se afastam do vórtice do poder, os partidos caem em si. Como que acordam dum pesadelo, dum sonambulismo demoníaco. Apeados da onda vitoriosa, ei-los que recobram a moral e a religião, a humildade e os princípios. Ei-los que correm ao exame de consciência e à desintoxicação.
Ao mesmo tempo, todos ralham com todos, todos desconfiam de todos. Contam-se espingardas a cada esquina, afiam-se facas nos passeios pela noite fora. Sobretodos execrado, torna-se o, até aí, idolo sublime, deus ungido. Rebentado o casco contra os recifes, naufragada a expedição, todos vêm cuspir e viperinar contra o timoneiro. Despenhado da glória, compete-lhe, doravante, carregar com a culpa. Toda a culpa.
Os outros, livres por uns tempos da condição de insectos rastejantes, entregam-se à sua ocupação predilecta na oposição: fazer oposição. Não, propriamente, ao governo em exercício (quanto a isso, há que respeitar o unanimismo soberano, atávico), mas uns aos outros. A privação do tacho, acarreta a irascibilidade, a quezília, o resmoneio. Irrompe a sintomatologia típica da descompensação.
Uma vez no poder, o partido (a experiência histórica atesta-o) conduz o país à balbúrdia. Uma vez deposto, cai também nela. Retorna à origem, à matriz. Ao caos primordial e propedêutico.
A ressaca do unanimismo governativo é o saco de gatos, ou Saco-Gatismo partidário. Para que serve? Como a tragédia para os antigos gregos, segundo Aristóteles, tem por finalidade a catarse, a purificação das almas, o exorcismo dos demónios. Para que, chegada a hora, mal a preia-mar regresse, o espírito do mamífero, limpo e disponível de novo, esteja mais uma vez pronto para ver-a-Deus e para abraçar, em fervor babado, todo o unanimismo deste Mundo. A metamorfose, neste caso -e ao contrário do romance de Kafka-, é voluntária. E almejada com a maior das ansiedades e espectativas.
segunda-feira, maio 24, 2004
O UNANIMISMO
Não me venham com fascismos, comunismos, socialismos, social-democracias, liberalismos, nem quejandos estados febris da nação.
Este país nunca foi, em momento algum, ou por desnorte momentâneo que fosse, fascista, nem comunista, nem socialista, nem social-democrata, nem liberal. Desenganem-se. Acabem lá com as peixeiradas inóquas. Poupem-nos às basófias bacocas do costume, aos alardes de circunstância. Este país anda a ser, faz daqui a nada um século, única e exclusivamente unanimista. Se querem um nome para a simples doutrina política que por aqui medra e floresce, aí a têm.
Duvidam? Espreitem lá bem detrás da fachada: o PS é o quê? Socialista, social-democrático, social-liberal? Ora, é o que o secretário geral que ganhar eleições for - quer dizer, é soarista ou guterrista, por exemplo. E o PSD? A mesmíssima coisa: é sá-carneirista, cavaquista, barrosista, consoante a preia-mar.
De facto, mal lhes cheira a poder, os partidos transfiguram-se. Transformam-se em verdadeiras Coreias do Norte ou Albânias heróicas e sitiadas...Da noite para o dia, emergem, quais asteróides deslumbrantes e irresistíveis, os Grandes Líderes, os Guias Imortais, os Super-Homens do momento. Galvanizadas, histéricas, as massas prostram-se em adoração. Os confrades devêm acólitos, os companheiros, sequazes. A dúvida, a consciência, o amor próprio, a indivídualidade, desaparecem. São banidos. O formigueiro encontra a sua rainha; a colmeia a sua abelha-mestra. Os caprichos desta tornam-se leis da física; o seu olhar suplanta a luz do sol; os seus amigos e parentes próximos, por osmose e reflexo, sobem a luminárias omniscientes.
Invariavelmente, é este tipo de unanimismo que ascende ao poder e ao leme da nação. Dum casulo tecido com mil fios de sabujice, lisonja e hipocrisia invertebrada, irrompe, num belo dia, uma impante crisálida ditatorial: Um nano-Kim Jong Il, um quasi-Fidel, ou, para sermos patriotas nesta matéria, um micro-Salazar. A partir daí, é todo um ciclo que se reinicia...
Por uma temporada, de quatro a oito anos, o país sente-se revisitado. Mas apenas por uma sombra, um espectro, um simulacro do pujante autocrata de outrora. O país também não se queixa: ele próprio já não passa, frouxamente, duma sombra, dum espectro, dum simulacro de país. Em suma: o fantasma mirrado e diminuto de Salazar vagueia, feito alma penada, pelo simulacro de país. Como num estado zombie. Como em transe de governação vudu.
Assim, tudo somado, a nova e apregoada "democracia representativa", não transcende muito o multiplicar de pequenas autocraciazinhas sufragadas. Como se o vício arreigado, a mania empedernida, se rissem, em possessão ambulatória, de todo e qualquer arremedo de cura ou reeducação. Inexpugnável, o unanimismo, é, ainda e sempre, o mesmo. Apenas as suas figuras de proa são cada vez mais minúsculas, insignificantes, efémeras. Na verdade, a diferença que vai do xarope despótico vitalício ao iogurte político de validade cada vez mais limitada. Do Salazarismo ao micro-salazarismo.
Não admira, pois, a crise. São tempos de precaridade, estes: até os títeres são contratados a prazo. Recebem à tarefa. Ao frete.
domingo, maio 23, 2004
A COZINHA IDEAL - Preparar o Cherne
O cherne é um dos peixes que podemos classificar de peixe gordo ou gorduroso. Presta-se, no entanto, a variadíssimas preparações, sendo muito saboroso e nutritivo.
A pedido de vários leitores que nos têm escrito, manifestando algumas perplexidades e revezes na abordagem culinária deste perciforme troglodita dos fundos submarinos (Epinephelus niveatus, para os amigos), aqui fica a metodologia aconselhada pelo Chefe Manuel Ferreira, no seu manual culinário: "A Cozinha Ideal". Diz então ele, com toda a sapiência que se lhe reconhece:
«Escama-se, amanha-se e corta-se-lhe a cabeça. (A cabeça, sublinho e reforço, é completamente imprestável e, sobretudo, intragável. Qualquer tentativa de aproveitamento é ruína do pitéu pela certa.) Quando se não destine a ser servido inteiro, corta-se em postas ou em filetes. As postas são cortadas transversalmente, direitas, com um centímetro de espessura, aproximadamente, isto no caso em que o peixe não seja muito grande. Se, pelo contrário, o cherne for de grandes dimensões, corta-se em dois grandes filetes depois de se lhe ter cortado a parte do rabo, até ao ponto em que, cortadas, as postas inteiras não fiquem muito grandes, cortando-se, então, dos dois grandes filetes, as restantes postas. Quando se deseje cortar filetes, divide-se o cherne ou os citados grandes filetes em pedaços duns 10 centímetros de comprimento, dos quais, depois, no sentido do comprimento, se retiram os filetes pequenos que desejamos...»
Portanto, espero que tenham ficado debeladas, duma vez por todas, quaisquer dúvidas recalcitrantes.
Recomendo que treinem em casa. E quando já estiverem bem adestrados na preparação, passaremos à confecção. Talvez uma receita que muito me têm recomendado ultimamente:
"Cherne à Robespierre".
MITO E NAUFRÁGIO
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo
sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
-Fernando Pessoa, "Mensagem"
sábado, maio 22, 2004
ENTRE CILA E CARÍBDIS
«Quanto ao homem de negócios, é um ser fora da natureza, e está bem claro que a riqueza não é o bem supremo que procuramos."
-Aristóteles, "Ética a Nicómaco", Liv I
«As ferramentas são, umas, animadas, e outras, inanimadas.(...)Também o escravo é uma propriedade animada.(...) Aquele que sendo homem não pertence por natureza a si mesmo, mas que é homem (ferramenta/instrumento) de outro, esse é, por natureza, escravo.»
- Aristóteles, "Política", Liv.I
Eu cada vez acho mais graça aos nossos democratas liberais. Dispõem dum raciocínio a todos os títulos singular. Esgrimem argumentos lógico-dedutivos fulgurantes.
Não se cansam de propalar aos quatro ventos como detestam tiranias, absolutismos (especialmente estatais), arbitrariedades e ditaduras. Fascismos, nazismos, comunismos, religiões, filosofias, agoniam-nos, infestam-nos de comichões alérgicas. Solidariedades sociais transportam-nos a indignações semi-epilépticas, a jorros eméticos. Burocracias, ainda que mínimas, deixam-nos transtornados, cacofóricos, a quase espumar pela boca, atirando madeixas de cabelo ao chão e murros ao peito.
Mas isto, tudo isto, meus amigos, em termos políticos. Em termos estritamente políticos. Aliás, o problema, segundo eles, qualquer problema, é sempre político. Já a solução (e com ela a salvação), é invariavelmente económica.
Mas atentemos na sua cartilha economística...
Uma empresa, por exemplo, o que é uma empresa? Para mim e para outros leigos heréticos como eu, será (dito simploriamente, é claro) um conjunto orgânico de pessoas (administração, direcção, produção, transporte, comercialização, etc,) com diversos níveis de tarefa, responsabilidade e recompensa, + um conjunto de meios (máquinas, viaturas, matérias primas e outras, ferramentas, etc), + um conjunto de instalações, e com a finalidade de ser auto-subsistente e dar lucro. Haverá empresas grandes, médias e pequenas, mas todas elas, com as adaptações inerentes à sua dimensão, cumprirão, mais ou menos, este padrão.
Mas isto somos nós, os leigos, os simplórios, a delirar. Porque, uma vez poisados na realidade, o quadro é outro: os nossos democratas liberais, crânios sofisticados, inspirados nas idílicas engrenagens anglo-saxónicas (e apenas nessas, que nada mais presta ao cimo da Terra, e todo o restante mundo ou vive na indigência -física ou mental -, ou pra lá caminha), expurgam e purificam substancialmente a coisa. A empresa restringe-se à sua administração (os empresários e gestores), transferindo-se todo o seu restante pessoal -especialmente a malta da produção-, para a categoria dos meios, sob o item "ferramentas". Quanto à finalidade, resume-se agora ao dar lucro ao empresário (e gestor), seja, essa mesma empresa, auto-subsistente ou não. Toda a essência da coisa passa, assim, para o empresário/gestor; todo o resto desce para a categoria do acessório. Dito doutra maneira: a empresa é uma espécie de máquina (composta de ferramentas -humanas e não-humanas-, meios e instalações) que compete ao empresário (administrador/gestor) pilotar e extrair gozos. Em boa verdade, só este, o piloto, é que doravante pode ser considerado efectivamente humano, ou seja, com cidadania plena; com direitos e necessidades grandessíssimas. O resto sujeita-se aos ditames do mercado. E carrega, em calvário se preciso for, com os deveres gerais.
Esta nova religião encontrou em Portugal solo fértil e estrume em abundância para o seu cultivo. O empresário português, dadas as excelentes condições naturais, é pródigo em superações ao próprio modelo. Se lhe perguntássemos (e aos seus apologetas, os democratas liberais) o que é a empresa? Ele responderia, prontamente, todo ufano e vaidoso, detrás da gravata e da panóplia de telemóveis: "A empresa sou Eu!"
Ora, nem mais. Eis o solipsismo mercantil no seu melhor! O absolutismo econocrata elevado ao patamar sublime! O reinado do Empresário-Sol, no zénite do seu apogeu!
Compreende-se, assim, a nova revolução copernicana que os nossos democratas liberais catequizam: Estando o Empresário investido das funções de Sol não se compreende que gire à volta do País-Terra, mas sim o País-Terra que gire e se submeta à sua massa atractiva e soberana de Sol, à sua luz e calor beneméritos, aos seus caprichos de estrela e astro comandante do sistema. É Ele que dá vida, isto é, o emprego. É ele, lá no alto, que, pelo seu toque demiúrgico, anima as ferramentas humanas, doutro modo prostradas e pasto de ferrugem e desemprego, à mercê de depressões e lotarias.
Mas compreende-se, sobretudo, como aquilo que eles execram na dimensão política -a autocracia, a ditadura, a burocracia estatal-, idolatram, em contrapartida, na dimensão económica. O que nas garras do Estado é infâmia (e é, de facto), devém virtude nas patas do privado. A ditadura do proletariado é horrível (pois é); mas a ditadura do empresariado é santa. Que uma oligarquia parasita, endogâmica e endémica, se sirva dos cargos do estado para roubar e sabotar o esforço e o trabalho das pessoas deste país é péssimo; mas uma oligarquia de empresários que a substitua nessas mesmas funções é óptimo, representa um progresso inaudito, uma conquista revolucionária.
Repare-se numa aplicação prática desta mentalidade peregrina:
«Patrão» dos impostos vai ganhar 60 mil euros por mês
"Irá auferir exactamente o mesmo salário que recebia no BCP", diz Ministério das Finanças».
Mas aqui, atente-se, é já o próprio estado, ou alguém em nome dele, a converter-se à nova ideologia. A Direcção Geral de Impostos é promovida a empresa, ou seja, a máquina. Contrata-se um bom piloto, um homem da Fórmula 1, para guiar a máquina. Gratifica-se e estimula-se o piloto em conformidade, caso contrário ele não aceitava a nobre missão. É uma excelente teoria. Até já vi pessoas normalmente inteligentes e sensatas a elogiá-la.
Só tem um ou dois problemas, pequenos é certo, mas que não cabem debaixo do tapete. Não adianta pois varrê-los para lá.
1. Sendo uma "máquina", todos concordamos que está avariada. Contrata-se um piloto de fórmula 1 para guiar um monte de sucata?
Vamos competir em que campeonato?
2. Não sendo uma "máquina" (como não é), ao estimular-se e gratificar-se principescamente o Director, duma forma ilegal e obscena (dada a realidade actual), está-se a desestimular e a simbolicamente espoliar todas as outras centenas de pessoas que constituem essa Direcção Geral (e os próprios contribuintes do país, a limite). Em vez dum esforço geral de melhoria, está-se, pois, a promover um esforço individual de melhoria (por parte do novo director) e um contra-esforço geral de resistência e desinteresse coorporativo (por parte de quase todos os outros). Experimentem colocar-se no lugar deles...As intenções que presidem ao expediente, como sempre, poderão ser as melhores; mas o Inferno é que vai, mais uma vez, lucrar com elas. A esta altura já transborda.
3. Por fim, usando o léxico muito querido aos nossos democratas liberais a respeito das empresas públicas em dificuldades: resolve-se o problema não atirando dinheiro para cima da Direcção Geral de Impostos SA (que dá prejuízo e devia dar lucro), mas atirando dinheiro para o bolso do novo Director, em comissão messiânica. É isso, não é?
Ainda D.Sebastião não se dignou regressar ao país, e já querem desviá-lo para as empresas, ainda por cima estatais?...
E nós, portugueses, qual é o nosso papel no meio disto tudo (além de basbaques, claro está)?!...
Andamos aos tombos, da esqerda prá direita, da direita prá esquerda. Vamos de roldão, de Cila para Caríbdis, e de Caríbdis para Cila. Estamos reduzidos a esta confrangedora odisseia, com Ulisses naufragado entre as sereias e Ítaca entregue à voragem dos pretendentes. Vamos queixar-nos de quem? O esquema é deles. Mas a culpa é nossa.
E o que mais convinha que percebessemos, todos, é que Portugal se constrói com os portugueses e não contra os portugueses, sejam eles quais forem.
Mas desculpem, já me esquecia: afinal, é da destruição que se trata. Pois, que distracção a minha.
Já cá não está quem falou.
PS: Entretanto, com todo este know-how peregrino em erupção, com tanta tempestade cerebral à solta, erguemo-nos cada vez mais destacados, qual farol altaneiro - imune às vagas da lógica e do bom senso - no Cabo do Paradoxo: temos, ao mesmo tempo, os mais divinos empresários e administradores do universo, e as empresas e o Estado mais rascas e miseráveis da Europa.
sexta-feira, maio 21, 2004
PORTUGAL PUTATIVO
«Depressa se percebeu que o orador não partilhava das ideias do movimento 'Portugal Positivo' que partiu de uma outra iniciativa, a Missão Portugal (apoiante de Barroso).»
Agora, quando eu julgava que, finalmente, Portugal ia ser reanimado, insuflado duma nova seiva revigorante e redentora, eis senão quando leio que essa comissão salvífica da auto-estima nacional deu -como se costuma dizer-, com os burros na água.
Está visto que estes gajos não têm muito jeito para levantar a moral às tropas. Deviam ter-se mantido lá pelas artes que dominam, (precisamente nos antípodas destas) - a derrubar o moral às ditas, a falar de países de tanga e assalariados mancomunados contra o bendito Mercado, Criador do Céu e da Terra. Isso, nos intervalos das crónicas de viagens, do roteiro de jantares e do mapa de empregos prá filharada e consortes. Mas não. Um fervor missionário avassalou-os. Quiseram virar-se do avesso; quiseram, como S.Francisco, atirar a mobília e os bibelôs pela janela, rasgar os paramentos e as rendas, e embarcar abruptamente pela santidade, desembestando pela paróquia em exórdios ao arrependimento. E como se este prodígio já não bastasse, tomaram-se de brios, treparam nas euforias e imaginaram-se capazes de milagres maiores que os de Jesus. A conversão do Demónio, porque não?!...
Meu dito, meu feito: ei-los que convidam o Vasco Pulido Valente para romper as hostilidades e abrir as dissertações sobre o "Portugal Positivo" que urge resgatar ao desânimo e à denegrura. Há que convir: convidar o Vasco para tecer louvores à auto-estima da pátria, é o mesmo que trazer um piromaníaco para bordar panegírios às virtudes da floresta.
Repito: deviam ter-se ficado pelo milagre inicial, aquele que os bafejou e que, por artes só ao alcance do Todo Poderoso, os metamorfoseou - de Dráculas - em Dadores de Sangue e Vitaminas. O segundo já era areia demasiada para a camionete deles.
Quem se fartou de gozar, tenho a certeza, foi o Vasco. Juntou o útil ao agradável: descascou naquilo que mais gosta; e deixou os fariseus de cara à banda.
À falta de originalidade, louve-se-lhe a coerência.
quinta-feira, maio 20, 2004
PARA OS NIHILISTAS (AUTO-DENOMINADOS LIBERTÁRIOS)
«É verdade que ninguém, como já disse atrás, deseja um século de personalidades amadurecidas e perfeitas, de personalidades harmoniosamente desenvolvidas, mas apenas uma época de trabalho colectivo tão rentável quanto possível. Isso significa simplesmente que os homens se devem treinar para satisfazer as necessides deste tempo, para porem o mais rapidamente possível mãos à obra. São obrigados a trabalhar na fábrica da utilidade pública antes mesmo de estarem maduros, ou para que nunca cheguem a amadurecer, porque isso seria um luxo que afastaria do "mercado de trabalho" uma grande massa de forças. Cegam-se aves para cantarem melhor; não creio que actualmente os homens cantem melhor que os seus antepassados, mas sei que os cegam mais cedo; mas o meio, o meio infame de que se servem para os cegar, é o uso de uma luz demasiado crua, excessivamente repentina e instável. O jovem é perseguido a chicote através dos milénios; jovens que ignoram por completo o que é uma guerra, um acto diplomático, uma política comercial, são considerados aptos para estudar história política; o jovem percorre a toda a pressa o campo da história universal, como nós percorremos a correr os museus e assistimos aos concertos.
(...)ninguém se admirará que a nação morra por tanta miserável mesquinhez, por tanta ossificação e egoísmo, e que comece a desagregar-se como nação. Em vez de uma nação hão-de surgir talvez, sobre o palco do futuro, associações de egoísmos individuais, fraternidades com o fim de explorarem pelo banditismo todos aqueles que não fazem parte delas, e outras criações do utilitarismo vulgar.
(...) o homem só é virtuoso quando se revolta contra a força cega dos factos, contra a tirania do real e quando se sujeita a leis que não são as que regem situações históricas dadas. Nada sempre contra a corrente da história, quer lutando contra as suas paixões, que são para ele a realidade mais próxima e estúpida, quer submetendo-se à honestidade, no momento em que a mentira tece à volta dele as suas teias cintilantes.»
- Friedrich Nietzsche, "Considerações intempestivas"
O mais cru profeta deste nosso miserável tempo. E de todos os tempos.
Que Hollywood a abençoe!...
À falta de moral, que lição tirar disto?
Se fosse uma pintura, teríamos que tentar decifrar a simbologia. Faz de conta que é uma pintura, então...
A América debruça-se sobre o Iraque. Mas o seu rosto permanece fixo nas câmaras, fotogénico, álacre, maroto. Higiénica, asséptica, procede às exéquias. Está prestes a virar a página, a terminar o serviço.
No seu casulo de plástico, onde a aranha parece querer preservá-lo para futuro repasto, o Iraque jaz, dir-se-ia adormecido, estupefacto. Num esgar de quem desligou a meio dum segredo. O olhar, esse, está em parte incerta, misteriosamente perdido, as janelas entaipadas como num prédio marcado para demolição. Mais que torturado, dir-se-ia processado... Em fase terminal de embalagem e prestes a sair da linha de produção, pronto para consumo.
Numa concessão momentânea à tripedia, a América desocupa uma das patas e exercita o polegar imperial: "Está tudo bem! Está tudo ok! A vida é bela!..."
Mas o que mais cintila, nesta constelação de optimismo, são os dentes. Quase nos encadeiam, num brilho pepsodent, num reverberar de lâmina de aço exímia... Tem bons dentes, a aranha, aliás, a América, aliás, a Sabrina. Mais que em Deus vê-se que acredita em Hollywood. E Hollywood reconhece e não abandona os seus crentes: saberá como perdoar-lhe e abençoá-la.
A sua fotogenia salva-la-á.
quarta-feira, maio 19, 2004
NA RUA DOS BACALHOEIROS DO MEU ÓDIO...
E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo,
meu desacreditado burguês apinocado
na rua dos bacalhoeiros do meu ódio
co'a Felicidade em casa a servir aos dias!
Tu tens em teu favor a glória fácil
igual à de outros tantos teus pedaços
que andam desajuntados neste mundo,
desde a invenção do mau cheiro
a estorvar o asseio geral.
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio
que Deus perdeu de vista o Adão de Barro
e com pena fez outro de bosta de boi
por lhe faltar o barro e a inspiração!
E enquanto este Adão dormia
os ratos roeram-lhe os miolos,
e das caganitas nasceu a Eva burgueza!
O teu máximo é ser besta e ter bigodes.
A questão é estar instalado.
Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio,
a seres alguém,
o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera!
E de que serve o livro e a ciência
se a experiência da vida
é que faz compreender a ciência e o livro?
Antes não ter ciências!
Antes não ter livros!
Antes não ter vida!
- José de Almada Negreiros, «A Cena do Ódio"
Só mais uma pergunta:
Donde é que importámos esta gentalha que nos (des)governa? - De Liliput?!...
A BARBÁRIE
Este é o Liceu mais bonito de Portugal e do Mundo!
Este é o Liceu D.João de Castro!
Eu devo muito do que sou a estas paredes, salas, corredores e carteiras,
E sobretudo às pessoas -colegas e professores-, com quem tive o privilégio de as partilhar durante 7 anos!
Entrei lá menino e saí de lá quase homem!
Foi lá que me apaixonei pela primeira vez
por aquela morena de cabelos compridos
que me deixava petrificado a vê-la passar.
Foi lá que os meus sonhos nasceram...
E agora querem fechá-lo! Querem matá-lo, como têm vindo a matar aos poucos, à surrelfa, as pedras e as gentes deste país!
E sobretudo os sonhos! E sobretudo as memórias! E sobretudo a história e o passado!
FILHOS DUMA GRANDE PUTA!! ESCUMALHA MASCARADA DE GENTE! ESCÓRIA DA VIDA E DO MUNDO!!!...
O NASCIMENTO DUM LOBBY
"Imagem de segurança é mais-valia para Portugal".
Quem o diz é Dias Loureiro, essa eminência parda, homem dos sete tachos do regime. E especifica:
«a segurança vai ser cada vez mais um critério de investimento». Ou seja, «as empresas e as pessoas não se vão importar de pagar mais IRC para ter mais segurança».
Isto, meus amigos, quer dizer que há um lobby em movimento.
As duas ideias fundamentais que presidem ao concerto e vão servir de leitmotif à sinfonia (acho que já adivinharam):
- O desempenho público é ineficiente ou insuficiente;
- Urge abrir o espaço e chamar em socorro, em emergência médica e especialista, o sector privado.
Adivinhem donde virá esse amparo...
Entretanto, fica já uma ideia peregrina para o financiamento dessa mesma iniciativa privada com os indispensáveis dinheiros públicos (como, de resto, manda a ciência): uma taxa suplementar de segurança sobre o IRC.
A ideia não é dele, acreditem. O homem, em relação às ideias, só tem capacidade transportadora (e nem sequer frigorífica). São certas luminárias que o inspiram. Coitado deste país.
terça-feira, maio 18, 2004
SALA DE CONTRA-CHUTO -VII. A Autofagia
É um artigo de Michael C. Ruppert, de 29 de Junho de 1999. Podia dizer-vos que fala da CIA, de drogas, de Wall Street. Mas digo-vos apenas que fala da Economia Americana. Vale a pena ler. Com muita atenção. Afinal, é da suposta locomotiva do Ocidente que se trata.
Adianto apenas algumas passagens:
* «Todo a economia e todo o sistema político americano, estão actualmente viciados e dependentes do dinheiro da droga»
* «Os quatro estados da União que mais importam drogas são: New York, Florida, Texas e Califórnia. Os quatro estados onde mais dinheiro sujo da droga é "lavado" são: New York, Florida, Texas e Califórnia. E 80% de todos os fundos para as campanhas presidenciais vêm desses quatro estados.»
* « Gangs de traficantes Dominicanos, que dominam o tráfico nos estados do nordeste -especialmente New York e Pensilvânia-, têm feito donativos regulares para a campanha de Clington/Gore desde o início dos anos 90. As vendas de droga na California são correntemente divididas entre facções criminosas pró Democratas e bastiões da pornografia fiéis aos Republicanos desde a era Reagan.»
* « Os 250 biliões de dólares (resultantes do tráfico nos Estados Unidos) depois de lavados em Wall Street, transformam-se em 1.5 triliões de dólares de transacções originados no tráfico de droga.»
* «Quem precisar de dinheiro em grande quantidade, entre o dinheiro limpo do banco a 10% e o dinheiro "lavado" a 5%, qual é que escolhe?»
* «O tráfico de droga está cada vez mais poderoso porque subjaz aos investimentos das maiores coorporações do mundo e subsidia políticos. Viciou os gringos de Wall Street, cujas crianças às vezes morrem por causa dos seus produtos. Mas Wall Street não se pode dar ao luxo de deixar cair os barões da droga. O resto vinha atrás.»
* «Os Estados Unidos gastam 5 dólares no sistema prisional por cada dólar investido no ensino superior. As prisões e todo o circuito associado de segurança são privados e estão nas mãos de empresas cotadas na bolsa. Uma delas, a Wackenhut, é virtualmente proprietária da CIA. Para que o negócio se mantenha florescente (de modo a sustentar todas essas companhias que lucram da manutenção da ordem pública, crime e similares), é necessário prender e encarcerar um número sempre crescente de pessoas.»
* «O actual modelo económico é, patentemente, tão sustentável como uma serpente a engolir a própria cauda poder ser considerado boa nutrição.»
* «Organized crime has become the government and it seeks to make all citizens become subliminally guilty participants, fearing for their own livelihoods, believing that the system will collapse if someone really tackles the issues facing us - as surely as the iceberg faced the Titanic.»
Coomo já os gregos antigos tinham descoberto: o corolário fatal da fome insaciável é a autofagia.
Afinal, que raio de combustível é que estão a meter nas caldeiras da locomotiva?...
PS. - Recordo que estas considerações são de 1999. Felizmente que hoje já nada disto se passa...
Mas numa coisa, pelo menos, Ruppert profetizou: The son of a documented drug trafficker, who very few people in this country even know anything about, is "scheduled" to become our next President, simply because he has the most money and he and his backers control most of "The Pop." - O nosso estimado G.W. Bush, pois. Foi trigo limpo, farinha amparo!...
segunda-feira, maio 17, 2004
A NAVE DOS CANIBAIS
Em 1819, princípios de Agosto, a escuna baleeira Essex zarpou de Nantucket, para mais uma auspiciosa campanha, de engenhoso massacre e industrial recolha, pelos mares do Pacífico. Aí chegados, e quando se entretinham na depredação dos corpulentos mamíferos, aconteceu o impensável: uma das baleias, misteriosamente enfurecida com a actividade humana, desembestou direita ao navio e abalroou-o, duas vezes consecutivas. Ferida de morte, a nave adornou e afundou-se. Foi este episódio verídico que inspirou Melville para o seu romance "Moby Dick".
Mas ali, na imensidão oceânica -ao contrário da ficção literária-, é depois do naufrágio que se vai desenrolar a verdadeira tragédia. Amontoada nos três escaleres remanescentes, a tripulação, com temor de eventuais tribos canibais a oeste, rumará para leste, em direcção à costa sul americana. Com os salvados possíveis de comida e bebida, entregam-se à aventura.
Em Dezembro, chegam à Ilha de Henderson. Lamentavelmente, a ilha é exígua e não oferece condições de sobrevivência para todos. Partem de novo, à excepção de três que pedem para ficar. São os mais afortunados. Serão resgatados meses depois. Os restantes embarcam num cruzeiro pelo inferno. Esgotados os mantimentos, começam a devorar os camaradas mortos. Por fim, a bordo do escaler do capitão só já existem quatro sobreviventes. Tiram-se sortes. A palha mais curta calha ao moço de cabine, Owen Coffin...
Lembrei-me desta história horripilante a propósito do nosso planeta. Também ele se assemelha cada vez mais a uma nave à deriva no espaço, com inquietantes problemas logísticos.
E agora que o "Aquecimento Global", segundo o Pentágono, parece constituir um perigo maior que a Al Qaeda, as perspectivas de excesso de população, catalizado pela escassez de alimentos (em consequência de catástrofes climatéricas e destruição subsequente de culturas), começam a ser cada vez mais evidentes.
Note-se que já em 1990, Margaret Thatcher, numa conferência no Aspen Institute, Colorado, acerca do tema "Global Agenda", avançou com a posição malthusiana de considerar a população (em excesso) como o principal problema ambiental do planeta. Entusiasta da superioridade anglo-saxónica, elite esclarecida do nosso mundo, Maggie acrescentou: «Our ability to come together to stop or limit damage to the world's environment will be the greatest test of how far we can act as a world community...Science is still feeling its way and some uncertainties remain. But we know that very hight population growth is putting enormous pressure on the earth's resources...The costs of doing nothing, of a policy of wait and see, will be much higher than those of taking preventive action now to stop the damage getting worse.»
Mas, enfim: nada que uma boa campanha de infecção e vacinação simultânea, à escala global, não resolva!...A vantagem das bactérias é que ninguém as vê. A verdadeira guerra moderna é low -aliás, very-low - prophile. E very low mesmo sem ser prophile também.
Duma coisa não convém ter dúvidas: chegada a hora da luta pura e dura pela sobrevivência, não há lugar para morais nem contemplações. A ferocidade da natureza que habita dentro do homem virá sempre ao de cima. Ao pobre Owen, no escaler funesto, ainda o deixaram escolher a palha mais curta. Aos excedentários do mundo, duvido muito que lhes concedam semelhante consolação.
Mas depois há também a ferocidade da natureza aí fora. Têm razão os do Pentágono em avisar que é uma ameaça maior que a Al Qaeda. Sem dúvida. Ao contrário desta, a Natureza está completamente fora de controlo. E zangada. Muito zangada.
Umbigos à parte, convenhamos: tem razões para isso.
domingo, maio 16, 2004
UTOPIAS E NAVES DE LOUCOS
«Os navegadores lançam as raízes da árvore genealógica da representação do bom selvagem e do paraíso terreal reencontrado. O Novo Mundo alimenta o ideal da fusão comunitária como remédio para a crise moral e social que mina o Velho Mundo.»
-Armand Mattelart, "História da Utopia Planetária -Da Sociedade Profética à Sociedade Global".
Desde então, há que reconhecê-lo, nunca mais o conceito "novo" deixou de galopar e redimir outros conceitos. O último capítulo dessa aventura, nestes nossos dias, fala-nos duma "Nova Ordem"...
Mas já em 1898, após a invasão de Cuba pelo Corpo Expedicionário dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, futuro presidente, clamava: «a americanização do mundo é o nosso destino!» Não se tratava apenas dum desabafo entusiasta, dum delírio energuménico para animar as tropas. A doutrina do "Destino Manifesto" [dos Estados Unidos] já vinha desde James K. Polk e servira às mil maravilhas para confiscar belicosamente, ao México, o Texas, o Novo México, o Arizona, a Califórnia, o Nevada, o Utah, parte do Colorado e do Wyoming. Convertida em artigo de fé, esta doutrina passou a ser pregada, desde 1886, pelo reverendo Josiah Strong, o qual, com o fervor próprio dos iluminados, exortava à instauração urgente e redentora dum império cristão e anglo-saxónico. Em 1890, tão profusa sementeira colheu o seu principal fruto: "Alfred Thayer Mahan, professor do Naval War College, futuro almirante e artífice do poderio naval americano". Vai tornar-se o seu principal apóstolo. Uma nova geopolítica, baseada no domínio dos mares, iniciou-se então: "em direcção às Caraíbas, pelo golpe de mão sobre Cuba mas também sobre Porto Rico, considerados bastiões estratégicos do "mediterrãneo Americano"; em direcção à Ásia, pela conquista das Filipinas."
«Nestas novas aventuras imperiais, o discurso messiânico roça o delírio. Elas são, aos olhos dos seus novos cruzados, a "manifestação da Vontade divina", o cumprimento do "desígnio da Providência", da "predestinação". "O que a nação ganhou com a expansão, escreve Mahan, invocando explicitamente a "religião de Cristo", foi uma ideia de regeneração, uma elevação do coração, a semente duma futura acção de beneficiência, uma possibilidade de sair de si mesmo e ir pelo mundo comunicar o dom que a nossa nação tão generosamente recebeu"».
Ainda hoje podemos constatar os efeitos e os episódios mais recentes desta doutrina benemérita, por exemplo, no Iraque. Quer dizer, o vínculo entre a Nova Ordem e o Novo Mundo obedece a uma lógica transcendente, intrinsecamente "religiosa": O Novo Mundo é o Eden restaurado do Homem Novo, a oportunidade concedida por Deus à regeneração do Velho Mundo, decadente e corrompido. Mas isso é só a primeira fase. Existe depois um refluxo, um retrocesso, como nas marés... Ou seja: Uma vez realizado e construído esse Novo Mundo, pelo Homem Novo, peregrino evadido do Velho Mundo (por obra e graça de Deus), compete-lhe transmitir essa regeneração ao resto do planeta. A Nova Ordem, temos o privilégio de testemunhá-lo, é só a última peripécia dessa odisseia.
De facto, no fundo da alma americana, habita esta obsessão evangélica, este desígnio nacional por delegação divina, este imperativo categórico de levar a Boa Nova às Trevas e aos seus reféns. A americanização afigura-se, nesse sentido, uma espécie de Renascimento à escala planetária (e não já apenas ocidental), de que a globalização é só o penúltimo capítulo dum esforço entranhado e recorrente. Tentar explicar ou compreender esta aventura mirabolante em moldes estritamente racionais ou mesmo políticos revela-se duma precaridade confrangedora. O americanismo e a americanofilia não podem ser compreendidos sem a dimenção de crença paranóica, de fé religiosa que é, simultaneamente, o seu alicerce primordial e a sua força mística de combate.
Curiosamente, esta mesma mitologia, se bem que em moldes diversos, presidiu a outra peregrinação regeneradora, de promessas planetárias: A revolução bolchevique. Com o seu Homem Novo em trânsito para uma Nova-terra, paradisíaca e resgatada aos vícios e males do passado, materializa igualmente uma lógica protestante, de regenaração e rutura histórica, de terraplenagem cultural e refundação cívica.
Em ambos os modelos emerge essa novidade revolucionária -também ela essencialmente "protestante" -, da "redenção pelo trabalho". Quer dizer, o paraíso outrora perdido (quiçá, por causa da ociosidade) pode ser agora reconquistado através do labor humano - o Novo-Eden será necessariamente uma Humanofactura; assim o destinou Deus. Daí, naturalmente, germinam o culto da produção e a consagração da Indústria, como fórmulas de credo. Daí, igualmente, resulta a economia como Nova-teologia, a riqueza e o mercado como emanações Divinas (no caso americano), ou a mecanização e o plano científico como epifanias da Virtude (no caso soviético).
Durante milénios, a espécie humana, nos intervalos da luta pela sobrevivência, entregou-se a sonhos e devaneios. Muitas vezes as coisas ficaram por aí, a pairar nesse limbo etéreo que tantas vezes tem a forma de meras palavras e a que chamamos, com algum desdém, utopia. Mas, subitamente, no século XX, em coacção ou reacção a esse fermento evangélico americanizante, amplificados e difundados numa profusão inaudita, como que as quimeras irromperam, à solta e em apoteose, pela realidade. No espaço de cem anos, o mundo cedeu o seu território a três utopias. Amargamente, em relação a duas delas, constatámos essa verdade de séculos, que só a amnésia treinada e inculcada sempre dissimula: o sonho hegemónico, uniformizante, quando desce à realidade revela o pesadelo que o anima e povoa. Se o mundo vai ou não despertar do terceiro, não sei. Afinal, os homens precisam de sonhos. Como diria Nietzsche vale mais um mau sonho, que sonho nenhum (se bem que ele dissesse, em vez de sonho, "sentido" e este sonho não pareça ter sentido nenhum...)
Relembro apenas essa alegoria que Brand, em 1594, publicou, sob o título "A Nave dos Loucos". O enredo é simples e não de todo estranho: Num mundo às avessas, loucos, sem mapa nem bússula, embarcam, à deriva, em busca dos paraísos bem-aventurados. Como plano prévio exclusivo ao empreendimento está o comum acordo que irão de perigo em perigo, até soçobrarem finalmente em plena tempestade. Quem tenha dificuldade em imaginar, é só ir à janela. Ou ligar a televisão. De preferência à hora do telejornal.
sexta-feira, maio 14, 2004
PARA UMA ANTOLOGIA DO TERROR -III. A Caça às Bruxas
Desde sempre, mesmo quando se situava no Além-Mundo, o Inferno pareceu ter emissários, operacionais e angariadores neste. Pior: dir-se-ia que conspiravam e urdiam para instaurá-lo por estas bandas, mesmo antes do Juízo Final. Essa lúgubre perspectiva, manifesta um problema duplo: de contaminação e, sobretudo, de terrorismo.
O crepúsculo medieval também tem a sua Al Qaeda. Compõem-na exércitos tenebrosos, não de árabes possessos, mas de súcubos e incúbos, demónios à solta, que se apoderam das gentes e seduzem bruxas e feiticeiros. «Em 1568, Jean Wier denuncia a existência de 7.405.926 diabos ordinários, repartidos por 111 regiões com 6666 demónios cada uma, dirigidos por 72 princípes das trevas.»
Como refere Georges Minois, «sob muitos aspectos, do século XIV ao século XVI, a Terra não teve muito que invejar ao inferno, que parece ter aberto aí uma sucursal.»
Entretanto, «as manifestações de Satã (o Bin Laden da época) são multiformes, por entre casos de possessão, esterilidade, metamorfose, males inexplicáveis, sortilégios e actos de feitiçaria de toda a ordem. Tem mesmo os seus auxiliares humanos: feiticeiros e feiticeiras, cujos esquadrões roubam de noite para as suas orgias sabáticas.»
Mas «a partir de 1320, as autoridades põem-se em campo. A bula de João XXII, comparando a feitiçaria e a heresia, marca em 1326 o incício de um período de repressão antidiabólica sem precedentes na História, que durará mais de três séculos, culminando no período de 1500-1640.»
Só de 1570 a 1630 terão sido queimadas entre 30 e 50.000 pessoas, acusadas de feitiçaria.
Em 1486, dois frades dominicanos -Jakob Sprenger e Heinrich Kramer -, escrevem o Malleus maleficarum, manual de operações para a guerra à feitiçaria (os terroristas de então). Este livro, serviu de guia oficial à Santa Inquisição, durante mais de um século, contendo as instruções explícitas de como descobrir, torturar, extrair confissões, julgar e executar quaisquer suspeitos de bruxaria. A sua publicação foi um sucesso só superado pela Bíblia. Outros "best-sellers" da época elaboram sobre a mesma temética: "O Teatro dos Diabos", de 1569; a "Demonomania dos Feiticeiros", de Jean Bodin, em 1580; e o "Tratado dos Energúmenos", de Pierre de Bérulle, em 1599.
Tendo como pauta musical toda esta literatura, especialmente o Malleus maleficarum, a rapsódia da caça às bruxas troará, então, em tons de cavalgada wagneriana. Estabelecerá, também ela, um paradigma que não mais deixará de ciclicamente se repercutir séculos adiante.
Que interesse terá isto para nós, gentes ultra-sofisticadas dos alvores do século XXI?
É que a erupção de tal psicose colectiva, convém fixá-lo, só foi possível graças à reunião dum conjunto de factores numa espécie de cocktail explosivo: a) crise de valores; b) populações esmagadoramente crédulas e incultas, ainda pra mais apavoradas; c) oligarquias directoras empedernidas, destituídas de escrúpulos, a patinarem numa instabilidade crescente, e sobretudo exasperadas com a iminência dum tempo de abertura e de perda de poderes e prorrogativas; d) o surgimento de novas tecnologias e meios de difusão (a imprensa), capazes de catalizarem a agitação (o medo e a histeria) a níveis nunca antes vistos.
Curiosamente, e em larga medida, o mesmo cocktail que parece estar a formar-se na encruzilhada destes nossos dias, cada vez mais confusos e inquietantes.
quinta-feira, maio 13, 2004
PARA UMA ANTOLOGIA DO TERROR -II. O Inferno
Durante séculos, o inferno serviu de arreio e cabresto à cristandade europeia. Estes apetrechos, como é sabido, facilitam a condução; promovem a docilidade e a disciplina dos albardados.
Quando digo Inferno, refiro-me a uma ideia propagandeada, estrugida, despejada em dilúvio apocalíptico sobre a multidão crente: a promessa garantida, ameaçadora, terrífica, dum suplício eterno no Além. De tal modo que, a partir de certa altura, a preocupação fundamental das humanas hostes já nem é ganhar o paraíso, tarefa árdua; mas escapar ao inferno, prioridade urgente e avassaladora, nanificante de quaisquer outras inquietações. Os emissários e procuradores da causa divina, exasperados com o rebanho obstinado, invariavelmente concluem: pois se não vão a bem, vão a mal; se o amor de Deus não os seduz, que se estarreçam com a Sua vingança. Deste modo, a religião estabelece o paradigma: o terror como método de manipulação por excelência; o medo como veículo privilegiado do adestramento massivo.
Georges Minois, na sua "História dos Infernos", descreve a certa altura (pp.285, trd. port Teorema): «O grande iniciador do método missionário, São Vicente Paulo, é deste ponto de vista um dos grandes "terroristas" do século XVII. Os seus Sermões para as Missões nos Campos, para uso dos Lazaristas, esclarecem um aspecto inabitual desse prestigiado apóstolo do amor divino. O 12º Sermão, Do Julgamento particular, adverte o crente que deve preparar-se para o "terror" e para o "horror" do "julgamento terrível", em que Deus nos pedirá contas não apenas do mal que se praticou, mas também do bem que não fizemos.(...)No 17º sermão, Das penas corporais do Inferno, São Vicente de Paulo leva-nos para "essa terrível prisão em que se sofrem todas as torturas mais imagináveis", em relação às quais os males terrenos, que se conhecem muito bem, não são mais do que um simples divertimento.
O inferno, diz ele, fica no centro da Terra, coberto de enxofre e de asfalto. Todas as imundícies do globo são aí despejadas para formar um lago onde se erguem terríveis rumores. Apesar da espessa escuridão, vê-se aí "a tremenda fealdade dos corpos dos condenados", "espectros e horríveis fantasmas", "rodas, navalhas, ganchos, grelhas, brasas e caldeirões a arder, dragões, serpentes"; "os animais mais cruéis lançam-se sobre eles por entre imprecações e lúgubres gritos". "De facto, que pode sair de um corpo sulfuroso e gretado senão uma horrível infecção?"(...)
"Sim, pecadores, sereis todos queimados e penetrados por esse fogo em todas as partes do vosso corpo e em todas as faculdades da vossa alma, cérebro, pulmões, braços e pernas; lançareis o fogo e as chamas do inferno pelos olhos, boca, orelhas e todos os outros orifícios do vosso corpo, e haveis de perecer não tanto um corpo queimado, mas antes uma fornalha toda em fogo".»
Este, claro está, é o domínio da religião. Depois virá a ciência, o positivismo e, com eles, a "morte de Deus" e o século XX. O Inferno no Além cai em desuso. Quer dizer que desaparece? Nada disso: apenas se transfere - do Outro Mundo para este.
A linguagem do terror, ainda e sempre, é a mesma. Só que agora mascarada na propaganda política e amplificada pelos novos poderes e alcances tecnológicos. A mensagem reconstitui o paradigma: Temei, ou experimentareis o inferno em vida, e ardereis entre o fogo das bombas e da metralha! Os alemães do IIIº Reich, por exemplo, chamaram-lhe Blitzkrieg. Os americanos da New World Order chamam-lhe Shock and Awe
O terror, por conseguinte, nas novas economias arregimentadoras, continua a ser fundamental, mecanismo indispensável à engrenagem. Actualmente, ainda mal terminou o terror "soviético", logo após o "terror nazi", eis que irrompe o "terror fundamentalista", das arábias. A cada instante, os megafones da propaganda imperial debitam: Tenham medo, tenham muito medo. Cumpram as nossas cartilhas e preceitos; aterrai-vos com a demoníaca Al Qaeda. Caso contrário, a vossa vida pode transformar-se num inferno. À mínima distracção e eis-vos pelo precipício.
Entretanto, aquela, a tal Al Qaeda, é descrita quase como uma entidade metafísica, puramente diabólica, intérprete duma espécie de terrorismo transcendente, inextinguível. É uma fonte de medo cuja exaustão não se avista. Esta verdade horripilante, ou mito orquestrado, é implantada à bomba sobre a manada, com massacres cirúrgicos e razias sempre oportunas.
Se acrescentarmos a este quadro rilhafolesco, aquele outro pormenor assaz relevante - o de que neste nosso mundo, completa e cegamente materialista, pseudo-Ocidental, acima do Presidente dos Estados Unidos já nem Deus-, e a constatação de como a cobardia, a sabujice, a alienação e a mediocridade se tornaram virtudes sociais nas nossas cidades, escusado será dizer que as perspectivas futuras não são, para já, as mais animadoras.
A EXPLICAÇÃO DO INEXPLICÁVEL
De Hegel, começo por dizer, não gosto. Entre outras coisas, é um filósofo bem sucedido. E filósofos bem sucedidos são como escritores premiados: aquilo normalmente é usado pra outras coisas e sabe-se lá em que peregrinas confecções.
Mas isso em nada afecta ou põe em causa a dignidade do senhor. Tanto assim que, ultimamente, até dou comigo a reconhecer-lhe pertinência nalgumas teorias. O homem, por exemplo, tinha uma fé inabalável na Razão: acreditava, piamente, que ela devia debruçar-se sobre tudo, mesmo as coisas mais absurdas e aparentemente irracionais que se lhe deparassem. Nada lhe podia escapar, à infatigável (uma espécie de CIA avant la letre, poderíamos colorir, se fossemos mauzinhos)...
Isso era possível graças, sobremaneira, ao prodigioso método dialéctico. Era e, pelos vistos, é. Adiante explicarei. Explicito apenas, sucintamente, para o leitor mais leigo nestas matérias, que consiste, o dito método, naquele sortilégio providencial da tese/antítese->sintese. Ou seja, a História evolui através dum processo conflituoso entre teses e antíteses, resultando em sínteses; que por sua vez originam outras teses e respectivas antiteses, e assim sucessivamente. Tudo obedece a um sentido racional, do Grande Espírito, pelo que a História reflecte a Razão. Isto vai assim de rajada, espero que não se engasguem, mas um postal não é um Tratado filosófico. Pois, como dizia, a História reflecte a Razão e a Razão digere a História, ou seja, reconhece-se nela. Como vêem, não é complicado. Podem até já vislumbrar uma das ilacções mais óbvias e necessárias: a História tem sempre Razão (pois trata-se duma manifestação do Grande Espírito), e aqueles que fazem a História são os mais razoáveis de todos nós, pois interpretam com relevo e desembaraço os propósitos do Grande Espírito.
Este belo sistema transposto para a nossa época, aplicado à nossa realidade, resulta em quê?
Ora, é óbvio: O senhor Bush e os Neocons americanos são os representantes do Grande Espírito na Terra; fazem a História e, consequentemente, estão cobertos de Razão. E têm razão porque estão aos comandos da locomotiva da História. É assim. Não há como escapar a esta verdade eloquente. São eles, louvados sejam, a "Síntese triunfante".
Não é por acaso que Hegel é o filósofo predilecto de toda e qualquer totalitarismo ou seita com apetites de império. Marx germinou a partir dele, e Hitler admirava-o muito.
Mas, entretanto, outra questão nos assalta: donde raio resultou esta nova e fulgurante síntese que nos conduz a todos, à beira do descarrilamento, pela linha expresso da História?
Então, não se lembram?...havia a tese capitalista e a antítese comunista (ou vice-versa). Do confronto, e através do processo dialéctico, resultou esta Síntese actual - Bushista, Neoconista, ou o que lhe queiram chamar.
Para os louvaminhadores e encomiastas profissionais da dita, recomendo que não se precipitem (se bem que compreenda a atracção fatal que sobre eles deve exercer, nas mentes respectivas, o abismo profundo da ignorância). Mas convém que não cedam à vertigem: é que a síntese não significa triunfo absoluto da tese (ou da antítese), mas sim uma espécie de fusão selectiva e fortificada de ambas. Na biologia, chamam-lhe híbridos. E são muito mais resistentes e vigorosos que as estirpes originais. Irra!...
Estão, agora, a ver a pertinência do Hegel?
Uma coisa, pelo menos, é certa: fornece-nos uma chave para descriptar fenómenos aparentemente irracionais. Como este mundo actual em que estamos metidos.
A PRISÃO HUMANA
«O Pentágono mostrou na quarta-feira, num acto reservado exclusivamente aos senadores, cerca de 1.800 fotos e vídeos inéditos com prisioneiros iraquianos a serem torturados por soldados norte-americanos. Os legisladores consideraram as imagens muito mais fortes do que as publicadas até agora.»
Parece-me apropriado que falemos de Sade, o Divino Marquês. Também ele passou quase toda a sua vida adulta em prisões. E é em cárceres, subterrâneos, masmorras, castelos inacessíveis -ou a caminho deles-, que decorrem as suas narrativas, que evoluem os seus infames campeões e respectivas vítimas. Portanto, de prisões, um erudito, uma sumidade.
Mas Sade é, antes de mais, um metódico. Estima muito a matemática e leva Descartes numa peregrinação pelos abismos. É preciso que tudo cumpra determinadas regras e preceitos, que avance escrupulosamente desde a luz, passando pela penumbra, até às trevas mais sinistras, claustrofóbicas e fatais. É preciso que os olhos se habituem. E o estômago. Sobretudo o estômago.
Na sua obra mais abissal -"Os 120 dias de Sodoma"-, a narrativa, o percurso, é dividido em quatro partes:
1ª. "As cento e cinquenta paixões simples, ou de primeira classe..."
2ª. "As cento e cinquenta paixões de segunda classe ou duplas..."
3ª. "As cento e cinquenta paixões de terceira classe ou criminosas..."
4ª. "As cento e cinquenta paixões assassinas ou de quarta classe..."
Pois bem, a primeira pergunta que eu faço é a seguinte:
-Em que parte irão neste momento os tipos do Pentágono?... (Supõe-se que a segunda ou terceira, acho). Não esquecendo, de antemão, que também se mataram prisioneiros nas cadeias do Iraque (corresponderá, isso, certamente, à 4ªparte). O que nos leva à segunda pergunta:
- Também haverá filmes e fotografias dos corolários mortais? Terão sido, estes, resultado dum paroxismo nas torturas?
Entretanto, Sade recria o apocalipse. Mas um apocalipse puramente humano, isto é, pura e sordidamente carnal. Deus nem os anjos, negros ou luminosos, são ali chamados. Apenas a besta humana, encurralada na sua própria exasperação, soltando esgares de hiena e ritos possessos por entre as abóbadas tenebrosas e vazias da sua alma. Abissalmente, a besta espelha-se, desdobra-se, revela-se na prisão porque ela, besta, é, em si mesma, uma prisão: de instintos, de vontades, de desejos recalcados, amordaçados, emparedados vivos. Na terminologia freudiana, seria o Id ao assalto do Super-Ego. Num retrato mais simples, encontramo-la cada dia mais presente, já quase estanhada, à nossa volta, convertida em mecanismo social, expressa nessa egolatria asselvajada, nessa recusa de partilha, nesse solipsismo ganancioso desenfreado, em que o meu prazer só é possível a partir da dor de outros, em que a minha grandeza só emerge do rebaixamento de terceiros, em que a minha vitória equivale ao culto da derrota seja de quem for!
Afinal, em Abu Ghraib, os jovens carcereiros só estavam a exercer a sua liberdade. Que esta redunde numa espécie tortuosa de libertinagem não espanta: trata-se de exercitar uma superioridade incontestada, dispor a seu bel-prazer de uns inferiores indefesos quaisquer. No fundo, repetir, ao nível microcósmico, aquilo que a Nação americana tanto se ufana de operar ao nível macro: Torturar como muito bem lhe apetece, quem lhe interesse e quando muito bem entende. Só que, aí, já vai na Quarta parte. E o mundo, mais que cansado, já está embrutecido de assistir ao filme.
Quanto a Sade, fica-nos a dúvida: Monstro ou Profeta?
quarta-feira, maio 12, 2004
JUNTO AOS RIOS DA BABILÓNIA...
«Junto aos rios da Babilónia nos sentámos a chorar,
recordando-nos de Sião
Nos salgueiros das suas margens
pendurámos as nossas harpas.
Os que nos levaram para ali cativos
pediam-nos um cântico;
e os nossos opressores, uma canção de alegria:
"cantai-nos um cântico de Sião".
Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor,
estando numa terra estranha?
(...)
Lembra-te, Senhor, do que fizeram aos filhos de Edom,
no dia de Jerusalém, quando gritavam:
"Arrasai-a! Arrasai-a até aos alicerces!"
Cidade da Babilónia devastadora,
feliz de quem te retribuir
com o mesmo mal que nos fizeste!
Feliz de quem agarrar nas tuas crianças
e as esmagar contra as rochas!»
in Bíblia Sagrada, Salmo 137
Pois bem, parece que a "retribuição" chegou. A ferro e fogo.
Quem precisa da aprovação do Mundo, quando tem a das Sagradas Escrituras?...Se Deus aprova, que importa o resto?
E nós, porque teimamos em descortinar coerência política entre a névoa obscura da fundamentação religiosa?
DIPLOMACIA INFERNAL
Segundo o "Diccionnaire Infernal", de Clancy, Belzebuh, Imperador dos Infernos, tem embaixadores permanentes nos seguintes países:
- França: Belphegor; Inglaterra: Mammon; Itália: Belial; Rússia: Rimmon; Espanha: Thamuz; Turquia: Hutgin; e Suiça: Martinet.
Não vos vou maçar com detalhes curriculares destes ilustres diplomatas, excepto um que num próximo postal esmiuçarei. Convém, entretanto, recordar que esta obra erudita de grande utilidade é de 1800, pelo que é natural que esteja um pouco desactualizada.
Interrogais-vos decerto: E Portugal? Não é digno de tão distintas embaixadas?
Na opinião sapiente de Clancy, «os outros países do mundo -que não os supracitados-, não dependem assim tão intimamente de Belzebuh, para que ele se digne honrá-los com uma embaixada permanente.» Talvez um consulado, digo eu. Só que eu, nestes protocolos, sou um ígnaro. Em todo o caso, não tendo havido evolução, quem quiser tratar de vistos para efeitos turísticos, ou outros, sempre tem a embaixada no país vizinho. Não tarda nada até está aí o TGV, para facilitar as coisas. Fora a viagem, as formalidades devem ser mínimas. Não consta que o regime Infernal perca muito tempo com burocracias. Ainda por cima quando se vê cada vez mais seguido, como modelo, à superfície.
POLITICAMENTE BARBIES
Grassa por aí um certo maniqueísmo serôdio que em nada abona quem o professa. Do húmus mal fermentado de mentes peregrinas, germinou o seguinte dogma doutrinário: Ou se é politicamente correcto ou se é politicamente incorrecto. Não há cá meias tintas, nem outras verdades: ou sim ou sopas. Adicionem-se, a esta papa milupa intelectual, uma colheradas de trancendêndia equilátera -porque tal lepra endémica, imagine-se, acontece quer à esquerda, quer à direita-, e teremos uma mistela capaz de conquistar o mercado aos melhores raticidas e deixar a Bayer à beira dum ataque de nervos.
O indígena desprevenido, menos atento a essas revoluções, como é o meu caso, fica um bocado atrapalhado. Serei correcto? Serei incorrecto? Estarei perdido na Terra-de-Ninguém, a apanhar tiros de todas a parte?
Bem, até aqui os incorrectos definiam-se por contraposição aos correctos. Atentava-se no que o correcto fazia e dizia e tratava-se de dizer e fazer o contrário. No mínimo, isto era extremamente relaxante e repousante para a mente. Dispensava-se de pensar. Os aurículos e o aparelho fonético tratavam de tudo.
Mas agora descobriram a pedra filosofal, o vértice inefável: a paixão ou o ódio aos Estados Unidos e ao seu tumor benigno - a causa israelita. E, aqui chegados, as opções são claras: ou os idolatramos, e somos incorrectos; ou não os idolatramos e somos correctos. Idolatrar ou não idolatrar, eis a questão. Há ainda um efeito colateral nisto tudo: idolatrar os ditos vem acompanhado por uma febre maníaca, que se expressa numa forma particularmente virulenta de ódio vociferado a tudo o que não concorde cega e submissamente com essa fé, única e redentora, nos tais.
Eu, por mim, gosto mesmo é de Portugal. Gostava que ele fosse independente, digno, vertical. Derivado disso, não amo outras nações. Acredito na monogamia política. Eu sei, estou desactualizado. Mas que querem, gosto mesmo da minha. As outras, para amar, não me interessam. Ainda prefiro a fidelidade à Alta-Fidelidade. Caturrices, enfim.
Portanto, e pró que interessa, não idolatro os Estados Unidos. Isso, temo-o bem, faz de mim um correcto. Sem apelo nem agravo, segundo as novas categorias.
Mas vamos imaginar que eu me queria tornar incorrecto (segundo os novos profetas). Animado por alguma tara secreta ou impulso suicida, eis-me, pois, disposto a aderir à nobre causa.
Não bastaria apenas idolatrá-los (aos Estados Unidos)? - Erguer-lhes um santuário, rezar missas, credos, salmos e acender umas velinhas?! Escrever-lhes odes, hinos e encómios?!...É mesmo necessário odiar tudo o resto, espumar da boca e vociferar raivosamente a todo o desgraçado incréu que passe? É indispensável mesmo celebrar, em delírio extático, terraplenagens culturais, carnificinas sórdidas e selvajarias industriais? É forçoso que se zurre e resfolegue, assim, em público, à desgarrada, sem qualquer pejo nem rubor?
Confesso que esta segunda parte é que me custa. Como é que se faz? Como é que se aprende? Deve exigir treinos e adestramentos intensivos...Deve requerer um embrutecimento e descerebração rigorosos, desde pequenino...Deve ter escolas próprias, universidades especializadas, famílias ao nível!... Locais apropriados para nos imunizarem contra qualquer resquício de ética, princípio ou escrúpulo; centros de instrução contra a própria instrução, contra a lógica, a dúvida e os filósofos que não falem inglês!...
Acreditem-me: eu gostava muito de gostar dos Estados Unidos. A sério. Seria óptimo. Mas enquanto esse louvado dia não chega, creiam numa verdade mais comezinha e elementar:
Há, efectivamente, o politicamente correcto. E há, certamente, o politicamente incorrecto. E depois, entre muitas outras espécies, desfilais vós, ó amigos americanólatras civifóbicos: nem correctos nem incorrectos, mas apenas politicamente louros, politicamente parvos, em suma: politicamente barbies!...