terça-feira, maio 25, 2004

A FUGA AO SELF


Quanto mais ténues são os laços à sua terra, mais a criatura se pavoneia e distrai em romarias turísticas pela terra dos outros. Dessas divagações geográficas, sobretudo aéreas, gastronómicas e hoteleiras, traz não só souvenires, fotos e filmes, para exibir, em triunfo ou concurso, aos amigos, mas também opiniões, crónicas e roteiros que se julga na obrigação paternalista de recomendar ao familiar mais incauto. Através desta compulsão excursionista, os deambulantes intercontinentais submetem-se à terapia desopilante que os psicólogos denominam de "escape ao self" - sortilégio essencial à preservação da lobotomia esclarecida e da inteligência larvar onde é de toda a conveniência, para saúde do regime, que laborem e procriem.
Enfim, se antigamente, naquelas eras feudais, haviam os servos da gleba, agora, nestes tempos hodiernos, aí estão os servos do globo. Este, atrofiado e reduzido a aldeia, por obra e graça do Mercado e da Tecnologia, fervilha, doravante, enxameado de saloios globais, em deambulação omnívora, pelos quatro cantos da paróquia. Hordas de basbaques alucinados, de camcorder em punho, vasculham os lugarejos de alto a baixo, sem dar tréguas à paisagem. Exércitos de novos cruzados da cusquice, avançam de bedelho em riste, à conquista dos cacos históricos das civilizações defuntas. Chusmas de mirones deslumbrados, famintos de exotismo e folclore, irrompem, de roldão e comitiva, por lugares sagrados e tugúrios escabrosos. Assaltam tascos e galerias, infestam praias e arquipélagos. Montados na geringonça que estiver mais a jeito e alguém se lembrar de lhes cobrar dinheiro por isso, ei-los à desfilada, a infernizar a vida aos indígenas, às plantas indefesas e à bicharada autóctone. De tal modo, que se dantes o Terceiro Mundo tinha nas moscas uma das suas pragas infestantes, agora, duplicou a dose: tem as moscas e os turistas -a variante humana da varejeira.
Entretanto, com toda esta miniaturização do cosmos em terrinha, espécie de berça a boiar no espaço, o cosmopolita de outrora degenerou no bimbonauta do presente.
O fenómeno da bimbonáutica, todavia, não se resume à geografia. A fuga espavorida de si próprio (o tal self) e da sua própria terra enquanto alicerce de si, também ocorre em dimensões tão menos terrenas como é o caso da blogosfera. Aqui, de resto, por força da inexistência de barreiras fronteiriças, ou quaisquer condicionantes logísticas, o babélico peregrina na maior das liberdades e perfeições, tão rápido quanto o seu delírio permita. Na terminologia cognitiva, desconstroi a personalidade a um ritmo avassalador. Um dos passatempos mais singulares que se pode proporcionar à observação científica é visioná-lo, ao blogotrotter, nesses preparos e cometimentos.
Neste momento, por exemplo, uma série de criaturas dessas -a que podemos chamar ideo-turistas-, percorrem, numa espécie de escutismo voyeur com ritos sado-masoquistas, os locais mais exóticos da Terra. Atraem-nos sobretudo palcos de horrores, países entregues a ditaduras ferozes, daquelas ilegais, brutas, não legitimadas pelo voto popular. Ou pervertidas, desvairadas, demoníacas, hostis às benignas. Sítios donde o turista normal nem se aproxima. Ou até lá vai, porque é barato e come-se bem, mas em segredo, sem que ninguém saiba.
Estes noveis escuteiros blogosféricos, porém, nada temem. Afrontam a besta. Entram por ali fora, como cão em vinha vindimada, e investigam, espiolham, desmascaram, arrastam as misérias e os crimes hediondos prá praça pública. Conversam com as vítimas; registam óbitos e massacres; ouvem as queixas e os lamentos. Fotografam os cadáveres e as valas comuns. Nada lhes escapa. Contabilizam os ossos. Dão-se ao trabalho de reconstituir puzzles macabros. Mergulham de cabeça no horror e abraçam os sobreviventes, de olhos húmidos e coração fraterno. Farejam-lhes o bedum e a indigência; afagam-lhes as cicatrizes e as crostas. E, tão depressa como foram, voltam depois, dessas digressões pelos infernos, dessas romarias necropolitanas, de vistas rubras e beiças descaídas, a cara a pingar, solidários e indignados, clamando por justiça e atenção. Exibindo sobretudo, amarrotadas, ensanguentadas, entre dedos lívidos, as provas irrefutáveis, os certificados reconhecidos, da existência dos tiranos de destruição maciça. Dos genocidas de empreitada, contrários abomináveis dos genocidas a conta-gotas, nossos protectores e beneméritos.
Eles - que não querem ver, nem olhar e viram a cara pró lado à destruição do seu próprio país; que fazem da vida o desmantelamento da sua própria consciência; e se estão positivameente marimbando para a desgraça de milhares de compatriotas seus -, saem pelo mundo a fora nestas correrias imaginárias, de lenço ao pescoço e bastão ao alto, para se irem banhar nas desgraças e misérias dos outros?!...Que xenofilia enternecedora! Que filofobia lamentável!
E é suposto escutarmos com deferência e cara séria esses troféus da peregrinação com que regressam, numa espécie de apoteose missionária. E olharmos com tristeza e pesar essas suposições e supositórios com que nos brindam... E mais valia, sem dúvida, que enfiassem no cu!...

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