quinta-feira, maio 13, 2004

PARA UMA ANTOLOGIA DO TERROR -II. O Inferno


Durante séculos, o inferno serviu de arreio e cabresto à cristandade europeia. Estes apetrechos, como é sabido, facilitam a condução; promovem a docilidade e a disciplina dos albardados.
Quando digo Inferno, refiro-me a uma ideia propagandeada, estrugida, despejada em dilúvio apocalíptico sobre a multidão crente: a promessa garantida, ameaçadora, terrífica, dum suplício eterno no Além. De tal modo que, a partir de certa altura, a preocupação fundamental das humanas hostes já nem é ganhar o paraíso, tarefa árdua; mas escapar ao inferno, prioridade urgente e avassaladora, nanificante de quaisquer outras inquietações. Os emissários e procuradores da causa divina, exasperados com o rebanho obstinado, invariavelmente concluem: pois se não vão a bem, vão a mal; se o amor de Deus não os seduz, que se estarreçam com a Sua vingança. Deste modo, a religião estabelece o paradigma: o terror como método de manipulação por excelência; o medo como veículo privilegiado do adestramento massivo.
Georges Minois, na sua "História dos Infernos", descreve a certa altura (pp.285, trd. port Teorema): «O grande iniciador do método missionário, São Vicente Paulo, é deste ponto de vista um dos grandes "terroristas" do século XVII. Os seus Sermões para as Missões nos Campos, para uso dos Lazaristas, esclarecem um aspecto inabitual desse prestigiado apóstolo do amor divino. O 12º Sermão, Do Julgamento particular, adverte o crente que deve preparar-se para o "terror" e para o "horror" do "julgamento terrível", em que Deus nos pedirá contas não apenas do mal que se praticou, mas também do bem que não fizemos.(...)No 17º sermão, Das penas corporais do Inferno, São Vicente de Paulo leva-nos para "essa terrível prisão em que se sofrem todas as torturas mais imagináveis", em relação às quais os males terrenos, que se conhecem muito bem, não são mais do que um simples divertimento.
O inferno, diz ele, fica no centro da Terra, coberto de enxofre e de asfalto. Todas as imundícies do globo são aí despejadas para formar um lago onde se erguem terríveis rumores. Apesar da espessa escuridão, vê-se aí "a tremenda fealdade dos corpos dos condenados", "espectros e horríveis fantasmas", "rodas, navalhas, ganchos, grelhas, brasas e caldeirões a arder, dragões, serpentes"; "os animais mais cruéis lançam-se sobre eles por entre imprecações e lúgubres gritos". "De facto, que pode sair de um corpo sulfuroso e gretado senão uma horrível infecção?"(...)
"Sim, pecadores, sereis todos queimados e penetrados por esse fogo em todas as partes do vosso corpo e em todas as faculdades da vossa alma, cérebro, pulmões, braços e pernas; lançareis o fogo e as chamas do inferno pelos olhos, boca, orelhas e todos os outros orifícios do vosso corpo, e haveis de perecer não tanto um corpo queimado, mas antes uma fornalha toda em fogo
".»
Este, claro está, é o domínio da religião. Depois virá a ciência, o positivismo e, com eles, a "morte de Deus" e o século XX. O Inferno no Além cai em desuso. Quer dizer que desaparece? Nada disso: apenas se transfere - do Outro Mundo para este.
A linguagem do terror, ainda e sempre, é a mesma. Só que agora mascarada na propaganda política e amplificada pelos novos poderes e alcances tecnológicos. A mensagem reconstitui o paradigma: Temei, ou experimentareis o inferno em vida, e ardereis entre o fogo das bombas e da metralha! Os alemães do IIIº Reich, por exemplo, chamaram-lhe Blitzkrieg. Os americanos da New World Order chamam-lhe Shock and Awe
O terror, por conseguinte, nas novas economias arregimentadoras, continua a ser fundamental, mecanismo indispensável à engrenagem. Actualmente, ainda mal terminou o terror "soviético", logo após o "terror nazi", eis que irrompe o "terror fundamentalista", das arábias. A cada instante, os megafones da propaganda imperial debitam: Tenham medo, tenham muito medo. Cumpram as nossas cartilhas e preceitos; aterrai-vos com a demoníaca Al Qaeda. Caso contrário, a vossa vida pode transformar-se num inferno. À mínima distracção e eis-vos pelo precipício.
Entretanto, aquela, a tal Al Qaeda, é descrita quase como uma entidade metafísica, puramente diabólica, intérprete duma espécie de terrorismo transcendente, inextinguível. É uma fonte de medo cuja exaustão não se avista. Esta verdade horripilante, ou mito orquestrado, é implantada à bomba sobre a manada, com massacres cirúrgicos e razias sempre oportunas.
Se acrescentarmos a este quadro rilhafolesco, aquele outro pormenor assaz relevante - o de que neste nosso mundo, completa e cegamente materialista, pseudo-Ocidental, acima do Presidente dos Estados Unidos já nem Deus-, e a constatação de como a cobardia, a sabujice, a alienação e a mediocridade se tornaram virtudes sociais nas nossas cidades, escusado será dizer que as perspectivas futuras não são, para já, as mais animadoras.

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