Outrora, dizia-se "em Abril, águas mil". Agora, chuva nem vê-la; e a abundância torrencial traduz-se mais numa fórmula modernizada, a saber, "em Abril, mentiras mil". E há-as para todos os gostos. Parafraseando a citação de Twain, aí na barra lateral, há mentiras simples (e até o dia respectivo logo a abrir o mês); há mentiras sagradas, (sobretudo no dia de hoje, com comemoração brejeira); e há um monte de estatísticas (como aquelas da Pordata, onde o Chico come um frango, o Zé devora dezanove e, estatisticamente, ambos comem dez.)
Somos tão livres, não somos? Temos cada vez menos soberania, colectiva e individualmente; mas somos extraordinariamente livres, emancipados, desenvolvidos. Vá para fora cá dentro, dizia o slogan publicitário!... Sim, sobretudo, agora que estar cá dentro é como ir para fora: um tipo já se sente estrangeiro em toda a parte; órfão ou divorciado, em qualquer família; algoz encartado ou com a cabeça a prémio com qualquer par de testículos; sem Deus, nem Pátria, nem género, em qualquer televisão ou pasquim higiénico aqui perto.
A prática renega e contradiz a própria teoria. Não que a teoria valesse pataco, mas a prática nem porcaria consegue ser: é nada. É abaixo de zero. Como ainda há pouco mostrei naquele postal sobre Kant. Estamos - como também não me canso de dizer e como a realidade não se cansa de manifestar para quem quiser ver - no "Mundo às avessas". Estas amostras patéticas de gente, que nem o poder exercem nem saem de cima, tão pouco produzem a mentira, ou as mentiras. São mero fruto (ou rebento rasteiro) - assaz mórbido, tóxico e fétido - dela. São gente de mentira. Meras personagens fictícias num conto do vigário para entreter avestruzes.
Quanto à evocação do dia-fraude que ora decorre, de entre as várias que fui publicando ao longo dos anos, deixo aquela que me parece a mais fidedigna, crocante e panorâmica:
ESCOLA DE BORREGOS
«Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.»
- António José Saraiva
A pré-história deste contagioso movimento - o borreguismo - remonta ao Infante D.Pedro, uma ejaculação infeliz dum rei inglório. Despejo, esse, mais tarde transformado em catástrofe, mediante a nomeação do aborto ambulante para príncipe Regente do Brasil. Imbuído -melhor dizendo, toldado pela vesânia da espécie, em vez de reger em nome de Portugal, como lhe competia, improvisou fazer do Brasil o seu próprio Império. Primeiro traço característico do borregante: uma desmesura narcísica típica das adolescências estagnadas e hipertofiadas. Donde borbota um ego alçado a estrela orientadora do universo. Ao mesmo tempo, ressalta o expediente motriz da tara: a borreguice transparece sempre mascarada de adesão. Em vez de defender os interesses de Portugal, o Infante adere ao espasmos do Brasil.
Vamos reencontrar estes exactos sinais perfeitamente geminados e replicados nos capitães do MFA, século e meio adiante. Enviados a África para combater o terrorismo mascarado de movimentos de libertação, que fazem eles? Não apenas se furtam de combatê-lo, como, em conjura torpe, se transformam, eles próprios, num "movimento de libertação" terrorista, derrubando o seu próprio governo, traindo o seu próprio povo e entregando metrópole junto com colónias ao neo-colonialismo de arribação.
Mas tornemos à ordem cronológica.
O segundo episódio ocorre por alturas da implantação da república - embora "transplantação" seja o termo mais indicado para definir a peripécia. Não só os defensores da Monarquia, em número superior ao desejável, borregam melancolicamente, como uma das figuras de proa dos revolucionários, o Almirante Reis, auto-acagaçado por crença súbita em ventania adversa (e também pela sua bipolaridade), dispara sobre si próprio, borregando, assim, com fragor anedótico. Ainda hoje, uma das maiores e mais emblemáticas avenidas de Lisboa homenageia esse feito de armas (só equiparável, em matéria de lucro colectivo, ao tiro como que o doente mental do hospital de Rilhafoles, naquele mesmo dia, abateu o preclaro Dr. Miguel Bombarda, baluarte civil da golpada). Na verdade, ainda hoje, a história se interroga como é que, depois da grande maioria dos militares contratados com a conjura ter borregado, foi possível o triunfo peregrino do bananal republicoiso. Mas enquanto ela assim se entrega à reflexão, avancemos para o episódio inaugural propriamente dito.
De facto, o borreguismo fulminante (e fulgurante) principia, de pleno direito, com a queda da Índia Portuguesa, em 1961. Fiados na desproporção brutal de forças a seu favor, os Indianos roncam e ameaçam às portas de Goa. Salazar, como era seu péssimo hábito contra-cultural, não borrega. Mais: ordena que ninguém borregue, é preciso ganhar tempo (pobre ingénuo!). Ao mesmo tempo, tenta negociar com os chineses: reconhecimento internacional da República Popular da China e concessão de base no território português da Índia a troco de pressão da grossa sobre os indianos. Jogo arriscado mas audaz: caso os chineses aceitem, os americanos, para obstar, terão que intervir e garantir, por seu lado, veto ao atropelo iminente. Salazar envia um telegrama dramático a Vassalo da Silva onde expõe, com crueza e clareza, a necessidade imperiosa que há em ganhar tempo. Não se trata de combater até à morte, trata-se de combater o mais possível, de modo a demorar o desenlace, permitindo, em esforço contra-relógio, o resgate diplomático. Mas ordenar que não borregue a um tipo chamado Vassalo é como pedir a um tetraplégico que corra, ou a um impotente mental que conceba. Na hora da invasão, o borreganço, com a honrosa excepção de Damão e meia dúzia de bravos, foi quase geral.
Mas um borrego, como qualquer outro (ani)mal, nunca vem só, Nova eclosão apoteótica acontece em 25 de Abril de 1974. Eventualmente contaminado pelo exemplo fascinante de Vassalo, Marcello borrega com todas as suas forças, arrastando consigo um regime desprevenido e vários povos avulsos. Se em matéria de micção, um português arrasta dois ou três, em se tratando de borregar, pior um pouco: um arrasta quatro ou cinco...milhões.
Parcos meses depois, é o próprio Spínola que borrega com idêntica gulodice. Zonzo e azucrinado por meses na presidência dum hospício a céu aberto e no descomando esquizofrénico de tropa fandanga em digressão carnavalesca, não resiste à vertigem e bate com a porta. Para logo mais adiante, de monóculo entre pernas, saltar a fronteira, indo borregar pró estrangeiro.
Entretanto, no próprio batalhão de Comandos, na Amadora, a maleita manifesta-se. Confrontado por uma maioria momentânea de oficiais em ímpetos saneadores, também Jaime Neves (custa-me até dizer isto...) borrega. É verdade, borrega, tacticamente. Vários graduados pouco entusiastas com a revolução são saneados. Jaime Neves, irritado, condescende; e aguarda por melhores dias. Que virão, é um facto; embora tarde de mais no que concerne ao essencial. E novamente Jaime Neves semi-borregará. Quando não levar a missão até ao fim.
Dir-se-ia que as forças revolucinhárias, após tão amplas, fortuitas e numerosas conquistas, tinham a parada ganha, mais a faca e o queijo. Seria menosprezar estultamente a vertigem borreguista que assola, desde a medula até à raiz dos cabelos, o burgesso portugalinhóide. Fantasie-se ele em que banda ou bando for. Sobretodos impera o bandulho; e o sentimento das vísceras é, de facto, quem mais ordena.
25 de Novembro de 1975. Finalmente, tarde e a más horas, a única tropa operacional do rectângulo decide-se acordar da longa letargia. Acabou a descolonização-à-vela, pelo que há luz verde para acabar com o granel. Uma aragem murmura de feição. Todavia, a maioria das forças alista-se do lado do processo revolucinhário. Basta que o
crocaudilllo vermelho, Otelo de Carvalho, faça cintilar o seu carisma castrense (no sentido caribenho da palavra, bem entendido). Mas Otelo... aqui dou a palavra a um dos seus apaniguados mais emblemáticos, Diniz de Almeida, o Che daquela revolucinha (para que não digam que achincalho ou efabulo):
«Preocupado e com a percepção de que era agora nos bastidores que se jogava a sorte da Revolução, telefonei ao COPCON.
«O Otelo ainda não veio!", respondeu alguém.
E perante a minha estranheza, aquele desculpar-se-á:
"O que é que tu queres? Ele é assim... nós pedimos-lhe para não abandonar o COPCON mas ele insistiu que queria ir dormir, e nós não pudémos impedi-lo de ir..."
(...)
Apresentei-me no COPCON ainda de manhã e pouco depois de haver telefonado.
O ambiente de manifesta desmobilização que ali se respirava, agravou ainda mais a minha consciência de perigo evidente.
Perguntei uma vez mais por Otelo.
"Ainda não veio, está a dormir", respondeu, igualmente preocupado, alguém.
"Já telefonámos lá para casa a chamá-lo e ele mandou dizer para não o incomodarem que quer descansar", volveram..»
- Diniz de Almeida, "
Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, Vol.II"
Pois, na hora H, quando o império da revolução estava em jogo, que faz então Otelo? O mesmo que Marcello, nem mais: borrega. Mansamente. As tropas, entre hirsutas e desataviadas, aguardam ordens; Diniz de Almeida exaspera. No Ralis, a soldadesca
leninada quer sair a combater os "Comandos". "Agarrem-me senão desgraço-me!", pressente-se (e vocifera-se em surdina!) a cada esquina. Mas o comandante da unidade, Leal de Almeida também borrega. Como tinha borregado anos antes na antecâmara da "Operação Mar Verde". E faz como Otelo, vai dormir. Otelo que, entretanto, borrega ao
ralenti. Fica o bravo Diniz, Ché abandonado,
Hamlet de Sacavém: "borrego ou não borrego, eis a questinha!"...Sozinho, a aguardar ordens de Godot. Que não chegam. O que chega é a ordem de prisão emanada de Costa Gomes. E o bravo Diniz lá vai, no seu próprio carro, apresentar-se ao cárcere. Borrega em ordem. Há toda uma Goa longínqua a verberar nele. Saldo final: Tudo bem somado, a revolução de rilhafoles sucumbe à mosca tsé-tsé.
Aqui chegados, mais que uma suspeição forte, invade-nos a percepção clara de que o borreguismo não é apenas um movimento: é aquilo que acciona o movimento... E é também um paradoxo, já que se trata dum movimento estático, e extático. Poderíamos falar, assim, duma força motriz do carácter portugalinhóide, não fora dar-se o caso singular do carácter portugalinhóide consistir numa paralisia aguda plasmada numa catalepsia súbita de todos e quaisquer princípios, instintos ou preceitos activos em prol dum assomo (mínimo que seja) de dignidade, destemor, ou, vá lá, honra. Mas há ainda outro sentimento que, sobretodos, congela o borreguista. RESPONSABILIDADE. Na crise, guerra, bernarda, polémica ou o que seja, o portugalinhóide adquire a posição de estátua camaleónica para que a responsabilidade - a temida e horrenda responsabilidade a passar! - não o detecte, não o descubra, não o aponte. Agora imaginem juntas ou confluentes as suas duas fobias supremas: a "responsabilidade" e o "derramamento de sangue"!...
Falta apenas o corolário actual da saga frouxa...A destilação última do alambique...
É mentalmente que o portugalinhóide hodierno mais sente volúpia em borregar. Com retroactivos e retroversões.
Muitos anos depois de borregar no terreno, estima de borregar no pensamento. Borrega em solidariedade. O borreganço antepassado não o enoja, não o repugna, nem, muito menos, o incomoda. Pelo contrário, inspira-o. Justifica-o. Convoca-o a alistar-se no desânimo. Compenetra-o da resignação ufana. O que outrora foi cobardia, pusilanimidade, ignávia, infâmia, agora é realismo, cálculo matemático, mandamento, finura e perspicácia.
Pior que impossível, qualquer outra alternativa: Impensável, sequer!
Mas não admira.
Para uma barata tonta, o Homem, inteiro, mais que espécie incognoscível numa galáxia longínqua, constitui uma utopia.
PS: Mas há uma boa notícia no meio deste descalabro todo: os borregos transitaram. Desenvolveram-se, de facto; transformaram-se, libertaram-se de preconceitos. Já não se identificam como borregos. Como, de resto, atesta a imagem em epígrafe.