Quando, em Quinhentos, as caravelas portuguesas se lançaram na aventura dos mares iam semear a Fé, ou iam à procura e à descoberta dela?...
«O sonho é ver as formas invisíveis
da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.»
- Fernando Pessoa, "Mensagem" (Horizonte)
PS.- Esta questão serve de também de intróito à explanação daquela que julgo ser a ideia de Quinto Império em Fernado Pessoa, tal qual fui desafiado pelo comentador residente deste blogue, o digníssimo José.
Os restantes leitores, a quem estas questões eventualmente não interessem, queiram ter a bondade de passar ao largo.
domingo, outubro 31, 2004
sábado, outubro 30, 2004
Dragão na Clandestinidade
Em se tratando da Nação, desse Portugal levado da breca, capaz do melhor e do pior e, a maior parte do tempo, do péssimo, sou um perfeito ferrabrás. Sobe-me logo o sangue à cabeça. Perco instantaneamente as estribeiras e a tramontana junto com elas. Fico capaz de trucidar e estrafegar a eito; sem dó nem piedade. Só me ocorrem contas a ajustar com meio mundo: mouros, castelhanos e ingleses, primeiro que todos!... Obsidia-me uma honra suja, emporcalhada, que urge lavar a qualquer custo – com sangue, a tiro, à bomba, à chapada, seja lá como fôr! É uma obsessão!
Quem me conhece sabe que tem que ter cuidado. Pois há palavras perigosas, que não podem ser ditas de ânimo leve à minha frente, ao alcance destes meus pavilhões auriculares de verdadeiro tísico. Têm pólvora lá dentro, as tais; trotil, nitroglicerina, são lume para o meu sequioso rastilho. “Portugal”, repito – é a mais explosiva de todas! Alguém que se descuide, que a profira a menos de mil metros, eu que a oiça, e temos o caldo entornado. Garanto-vos que não é substantivo que eu deixe impune. Já ninguém me sossega:
“Alisto-me aonde?! Embarco aonde?! Está aonde a caravela?! Vamos atacar quem?!...” – rompo, de imediato, aos gritos, aos roncos, levado de seiscentos diabos, todos eles a arder de fervor patriótico.
No minuto seguinte já estou de camuflado e caçadeira na mão, com os olhos injectados e uma raiva de séculos a instigar-me a proezas épicas. Dardejo olhares alucinados, em prelúdio de carnificina. Devastar seca e meca é o mínimo que me ocorre.
-“Hoje é dia de caça?” - pergunta-me a senhora Dragão, ao deparar com a exótica expedição e também porque eu, em prelúdio de blitzkrieg devastador, vou maltratando cadeiras.
-“Caça?!! –Rujo ofendido, escamadíssimo. –Tu achas-me com cara de quem perde tempo com coelhos, quando os filhos da puta infestam o mundo e potências malignas ocupam o rincão?! Diz-me lá, achas?!!”
Aproveito para salientar que não sou um desses traumatizados da Guerra colonial. A mim, tiveram que me arrancar de lá à força e sob escolta armada, que sítio como África, onde um gajo se divirta tanto, nunca vi. Quer isto dizer que não descarrego as frustrações e a cobardia entranhada nos desgraçados dos coelhos, animais meus compatriotas.
Mas voltemos à minha digníssima esposa que, em certas ocasiões de crise nacional, tem o condão de me enfurecer tanto ou mais que as potências ocupantes.
-“Não me digas que estás outra vez com ideias de ir acabar com os bimbos?!” – (Aqui, ela, alarma-se. Os bimbos são os vizinhos para lá do rio que, em tempos, espanquei. Espancar alguém pode viciar. Ciclicamente visita-nos uma nostalgia. Em se tratando de bimbos, a nostalgia chega a tornar-se opressiva. Um amigo meu que teve a sorte de espancar alentejanos, diz-me que com ele se passa o mesmo. Estamos fartos de nos convidar, ele a mim para ir malhar nos alentejanos dele, eu a ele para vir exercer nos meus bimbos, mas a ocasião, lamentavelmente, tem-se vindo sempre a esfumar. Há uma retracção natural nas vítimas, que, lastimavelmente, as torna cautelosas e furtivas. Mas desvio-me do assunto...)
Estava pois a senhora Dragão a alarmar-se. Tranquilizo-a, apesar de tudo; mas sem nunca perder o tom de voz estentóreo que a ocasião exige:
-“Não tenho tempo para bimbos, pôrra! isso é uma questão tribal interna! (Mas porque raio perco eu o meu valioso tempo a explicar a guerra a mulheres?!!) Olha, vou passar à resistência, vou prá clandestinidade! Se a polícia passar aqui a perguntar por mim, diz-lhes que não me viste!!”
-“E levas a boina preta ou a vermelha?” – Inquere, ela, resignada. O que tem o dom de me irascibilizar ainda mais. Mais belicoso que nunca, urro:
-“Mas tu achas que eu vou para algum desfile?!! Irra! Levo o meu gorro “comando”. E tu, vê lá se metes nessa cabeça dura duma vez por todas: Vou prá clandestinidade!!...Prá clandestinidade, ouviste bem?!!Vou bater-me pela honra do meu país! Se eu morrer, não chores!”
E saio porta fora, resfolegando e praguejando, com toda a fúria de que sou capaz. Não sem que, entretanto, em jeito de despedida, ela não me brinde com o seguinte adeus:-“Olha, já que vais sair, quando voltares da clandestinidade, passa no Pingo Doce e traz o pão.”
Grunffthhh!....
Quem me conhece sabe que tem que ter cuidado. Pois há palavras perigosas, que não podem ser ditas de ânimo leve à minha frente, ao alcance destes meus pavilhões auriculares de verdadeiro tísico. Têm pólvora lá dentro, as tais; trotil, nitroglicerina, são lume para o meu sequioso rastilho. “Portugal”, repito – é a mais explosiva de todas! Alguém que se descuide, que a profira a menos de mil metros, eu que a oiça, e temos o caldo entornado. Garanto-vos que não é substantivo que eu deixe impune. Já ninguém me sossega:
“Alisto-me aonde?! Embarco aonde?! Está aonde a caravela?! Vamos atacar quem?!...” – rompo, de imediato, aos gritos, aos roncos, levado de seiscentos diabos, todos eles a arder de fervor patriótico.
No minuto seguinte já estou de camuflado e caçadeira na mão, com os olhos injectados e uma raiva de séculos a instigar-me a proezas épicas. Dardejo olhares alucinados, em prelúdio de carnificina. Devastar seca e meca é o mínimo que me ocorre.
-“Hoje é dia de caça?” - pergunta-me a senhora Dragão, ao deparar com a exótica expedição e também porque eu, em prelúdio de blitzkrieg devastador, vou maltratando cadeiras.
-“Caça?!! –Rujo ofendido, escamadíssimo. –Tu achas-me com cara de quem perde tempo com coelhos, quando os filhos da puta infestam o mundo e potências malignas ocupam o rincão?! Diz-me lá, achas?!!”
Aproveito para salientar que não sou um desses traumatizados da Guerra colonial. A mim, tiveram que me arrancar de lá à força e sob escolta armada, que sítio como África, onde um gajo se divirta tanto, nunca vi. Quer isto dizer que não descarrego as frustrações e a cobardia entranhada nos desgraçados dos coelhos, animais meus compatriotas.
Mas voltemos à minha digníssima esposa que, em certas ocasiões de crise nacional, tem o condão de me enfurecer tanto ou mais que as potências ocupantes.
-“Não me digas que estás outra vez com ideias de ir acabar com os bimbos?!” – (Aqui, ela, alarma-se. Os bimbos são os vizinhos para lá do rio que, em tempos, espanquei. Espancar alguém pode viciar. Ciclicamente visita-nos uma nostalgia. Em se tratando de bimbos, a nostalgia chega a tornar-se opressiva. Um amigo meu que teve a sorte de espancar alentejanos, diz-me que com ele se passa o mesmo. Estamos fartos de nos convidar, ele a mim para ir malhar nos alentejanos dele, eu a ele para vir exercer nos meus bimbos, mas a ocasião, lamentavelmente, tem-se vindo sempre a esfumar. Há uma retracção natural nas vítimas, que, lastimavelmente, as torna cautelosas e furtivas. Mas desvio-me do assunto...)
Estava pois a senhora Dragão a alarmar-se. Tranquilizo-a, apesar de tudo; mas sem nunca perder o tom de voz estentóreo que a ocasião exige:
-“Não tenho tempo para bimbos, pôrra! isso é uma questão tribal interna! (Mas porque raio perco eu o meu valioso tempo a explicar a guerra a mulheres?!!) Olha, vou passar à resistência, vou prá clandestinidade! Se a polícia passar aqui a perguntar por mim, diz-lhes que não me viste!!”
-“E levas a boina preta ou a vermelha?” – Inquere, ela, resignada. O que tem o dom de me irascibilizar ainda mais. Mais belicoso que nunca, urro:
-“Mas tu achas que eu vou para algum desfile?!! Irra! Levo o meu gorro “comando”. E tu, vê lá se metes nessa cabeça dura duma vez por todas: Vou prá clandestinidade!!...Prá clandestinidade, ouviste bem?!!Vou bater-me pela honra do meu país! Se eu morrer, não chores!”
E saio porta fora, resfolegando e praguejando, com toda a fúria de que sou capaz. Não sem que, entretanto, em jeito de despedida, ela não me brinde com o seguinte adeus:-“Olha, já que vais sair, quando voltares da clandestinidade, passa no Pingo Doce e traz o pão.”
Grunffthhh!....
sexta-feira, outubro 29, 2004
Eunucos
O problema de quando néscios atinjem o topo das academias, ou quadrilheiros alcançam o ápice das hierarquias é que, a partir daí, para salvaguarda desesperada da sua própria sobrevivência burocrática, não descansam enquanto não tramam e instauram uma desonestidade e mentecaptícia sistemáticas e generalizadas, de modo a impedir que qualquer surto inopinado de inteligência ou seriedade possa desmascará-los, revelando-os em toda a sua gritante mediocridade e confrangedora nudez. Uma vez no topo, o anão, impõe que todos à sua volta rastejem; o cego, que todos fechem os olhos; o aleijado, que todos se auto-mutilem. Para ser crime de lesa-majestade não é preciso conspirar, não é necessário sequer dizer nada ou esboçar algum gesto: basta ficar de pé, basta ter os olhos abertos, basta ficar inteiro.
O drama dos regimes baseados no serralho – como por regra são os mediterrânicos– , é quando os eunucos tomam o poder.
Deploravelmente, esse, tudo o indica, parece ser o caso actual Português, ao nível superior: Não fodem, nem saem de cima.
O drama dos regimes baseados no serralho – como por regra são os mediterrânicos– , é quando os eunucos tomam o poder.
Deploravelmente, esse, tudo o indica, parece ser o caso actual Português, ao nível superior: Não fodem, nem saem de cima.
Uma Questão
Neste país há respostas a mais e perguntas a menos. Para contribuir para o reequilíbrio, aqui deixo uma:
Porque é que tendo sido Portugal o país que abriu as primeiras rotas comerciais globais, que, como diz o poeta, "abriu novos mundos ao Mundo", passados quinhentos anos, está tão pobre como quando começou?...
Aliás, correcção: Está muito mais pobre, porque à penúria económica acrescenta agora, também, a miséria de espírito.
Porque é que tendo sido Portugal o país que abriu as primeiras rotas comerciais globais, que, como diz o poeta, "abriu novos mundos ao Mundo", passados quinhentos anos, está tão pobre como quando começou?...
Aliás, correcção: Está muito mais pobre, porque à penúria económica acrescenta agora, também, a miséria de espírito.
quarta-feira, outubro 27, 2004
Génios, Quimeras e Abismos
O postal que se segue não é recomendável a almas sensíveis. É iconoclastia da grossa. Aos leitores mais ousados que, mesmo depois do aviso, persistam em fazer a viagem, recomenda-se que apertam os cintos de segurança, desliguem os telemóveis e retirem os antolhos durante o mergulho. O abismo é para ser visto com a plenitude da visão. Para se descontrairem, à medida que aquecem os reactores, comecem por tentar adivinhar, conforme vão lendo, o autor da pólvora que em seguida se transcreve...
O Dragão deseja-vos uma boa viagem.
« Os que querem um Portugal honesto, feliz, rico e honrado, querem a negação da acção civilizacional portuguesa, querem que desçamos ao burguesismo nacional duma pseudo-nação como a Suiça ou a Bélgica, querem que abandonemos o nosso grande papel na construção do novo mundo, que abdiquemos de realizar em espírito aquilo que realizámos outrora em corpo – o alargamento do mundo e a descoberta de novas terras, de novos mares, de novos céus. Mais alta é a missão portuguesa do que tudo quanto pode sugerir a barriga dos portugueses, nessa pervertida teoria política que toda a chusma de traidores e de idiotas que são os nossos políticos e os nossos jornalistas querem impôr a Portugal. Mais alta é a obra, e ela, a ser feita, terá de ser feita, terá de ser feita quebrando aos pés toda a longa podridão humanitária, democrática, organizando uma aristocracia forte, dominando completamente a nossa plebe ineficaz salvo escravizada. (...)
Criar em Portugal o sentimento duma missão civilizadora! Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?
Grande e difícil é a obra! Grande e difícil o varrer dos ideiais democráticos, humanitários e utilitários. Mas a grande obra anti-cristã (anti-cristã em tudo, anti-democrática, anti-católica, anti-monárquica) deve ser feita. Tristes de nós se faltarmos à missão divina que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa e tais nos fez quais somos, nos impôs quando nos deu este nosso acesso e trancendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas. »
- Fernando Pessoa, “Páginas de Sociologia Política”
Imaginem que o maior poeta português era vivo e escrevia num blogue. Talvez se chamasse “Heteronimia”, “Heterografia”, ou coisa que o valesse. Imaginem que ele postava o texto em epígrafe. Calculem a gritaria, o alarido que se não levantava: Nazi! Nazi!! Estou em crer que a “esquerda lacoste” levantaria barricadas; a “esquerda pink”, lavraria protestos e apelaria ao índex. A direita quéque faria coro com e “esquerda pink”, clamando “nada de confusões, somos democratas”. O PR faria uma das suas redondas alocuções ao país. Em suma: chovia granizo, chuva zangada de todo o lado. Disparando em todas as direcções, o poeta da “Mensagem” tornava-se alvo de todas as partes.
E, todavia, o homem era um génio. Um daqueles raros que visitaram aqui o rincão. Como explicar esta tempestade furiosa? Habitava um monstro dentro dele? Um psicopata? Na sua múltipla personalidade estava incluído um Adolfo qualquer coisa? Acometiam-no delírios em que se fantasiava de tirano louco subjugando uma Europa fumegante, em escombros, a seus pés?
Verificado tão tenebroso depoimento, atestados os seus ignóbeis propósitos anti-democráticos – saliento: mais anti-democrático é difícil! – deviam ser as suas ossadas despejadas dos Jerónimos e substituídos pela dona Amália? Deviam ser os seus livros proibidos e varridos para fora das livrarias e bibliotecas? Devia ser o seu nome lançado ao opróbrio e a sua efígie queimada em praça pública? As ruas e alamedas com o seu nome deviam ser rebaptizadas? O quê?...
Enquanto as autoridades ponderam e cozinham a sentença, eu ouso ir divagando o seguinte:
É evidente que o nosso Fernando andara a ler Nietzsche. Ora, os efeitos inebriantes do filósofo alemão são por demais conhecidos, eu que o diga. É, pois, um Fernando Pessoa alterado, fora de si, heteroposto, que se imagina correndo a saloiada cá do bairro a pontapé e à metralha por amor duma louvável quimera que, num instante fugaz, o desinquietou. Não é que eu próprio, às vezes, não comungue de sonhos desses; simplesmente, uma coisa é a ficção, a fantasia filosófica, outra, bem diversa, é a realidadezinha e o “malhão, malhão”. Dir-me-ão: pífia justificativa, ó Dragão! E se algum exaltado avulso, desses símios de imitação que não podem ver ideia nenhuma que não queiram logo macaqueá-la, desata a exercitar-se nesses propósitos pelas avenidas?...Sim, o que vai ser das pessoas que forem por ali a passar?!...”
Concedo que a justificação não é das melhores. De facto, metralhar as ruas em tese, nada tem que ver com metralhá-las em sede própria. Não muito tempo depois do nosso Fernando ter escrito isto, houve até uns folgazões de gosto mais que duvidoso que sonegaram as metralhadoras da tese e foram experimentá-las na rua. Os resultados foram trágicos. Ora, isso é tão aberrante como pegar nas metralhadoras da rua e ir metralhar na tese; ou então chamar os polícias de ronda, para virem com os cassetetes da rua bater ao filósofo por causa da tese. (Tudo isto, nunca esquecendo que colocar uma tese explosiva nas mãos dum macaco é tão perigoso como colocar uma granada, admito-o).
Mas continuo na minha: o que era mesmo importante, higiénico, edificante era que, como dizia Baudelaire, se deixasse a cada qual a sua quimera. Que deixássemos de meter o naríz nas quimeras dos outros, e as quimeras dos outros na nossa cabeça. Não são inalações que se recomendem, sem as devidas precauções. Apreciemo-las, por cortesia, ou por fruição artísticas. Ninguém pode dizer que “Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?”, não é bonito, mesmo sublime, enquanto literatura. Eu, pelo menos, não digo.
E mais sublime ainda se pensarmos nos efeitos devastadores que seguramente causará nas carinhas sonsas dos filisteus cá do burgo. Mas livrem-se de atrelar ficção tão garbosa à carroça trafulha da política: perde-se a genialidade e não se logra benefício nenhum. Pelo contrário, garimpa-se imundície pegada.
Por conseguinte, e em conclusão: Respeitemos os desabafos e telhas dos génios, pois é um direito exclusivo que lhes assiste. Guardemo-nos de interferir com eles, quando passeiam entre as nuvens o bando trovejante das suas quimeras. Velemos-lhes as jornadas, mas devidamente abrigados dos seus raios, sempre prontos a fulminar o basbaque incauto.
O Dragão deseja-vos uma boa viagem.
« Os que querem um Portugal honesto, feliz, rico e honrado, querem a negação da acção civilizacional portuguesa, querem que desçamos ao burguesismo nacional duma pseudo-nação como a Suiça ou a Bélgica, querem que abandonemos o nosso grande papel na construção do novo mundo, que abdiquemos de realizar em espírito aquilo que realizámos outrora em corpo – o alargamento do mundo e a descoberta de novas terras, de novos mares, de novos céus. Mais alta é a missão portuguesa do que tudo quanto pode sugerir a barriga dos portugueses, nessa pervertida teoria política que toda a chusma de traidores e de idiotas que são os nossos políticos e os nossos jornalistas querem impôr a Portugal. Mais alta é a obra, e ela, a ser feita, terá de ser feita, terá de ser feita quebrando aos pés toda a longa podridão humanitária, democrática, organizando uma aristocracia forte, dominando completamente a nossa plebe ineficaz salvo escravizada. (...)
Criar em Portugal o sentimento duma missão civilizadora! Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?
Grande e difícil é a obra! Grande e difícil o varrer dos ideiais democráticos, humanitários e utilitários. Mas a grande obra anti-cristã (anti-cristã em tudo, anti-democrática, anti-católica, anti-monárquica) deve ser feita. Tristes de nós se faltarmos à missão divina que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa e tais nos fez quais somos, nos impôs quando nos deu este nosso acesso e trancendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas. »
- Fernando Pessoa, “Páginas de Sociologia Política”
Imaginem que o maior poeta português era vivo e escrevia num blogue. Talvez se chamasse “Heteronimia”, “Heterografia”, ou coisa que o valesse. Imaginem que ele postava o texto em epígrafe. Calculem a gritaria, o alarido que se não levantava: Nazi! Nazi!! Estou em crer que a “esquerda lacoste” levantaria barricadas; a “esquerda pink”, lavraria protestos e apelaria ao índex. A direita quéque faria coro com e “esquerda pink”, clamando “nada de confusões, somos democratas”. O PR faria uma das suas redondas alocuções ao país. Em suma: chovia granizo, chuva zangada de todo o lado. Disparando em todas as direcções, o poeta da “Mensagem” tornava-se alvo de todas as partes.
E, todavia, o homem era um génio. Um daqueles raros que visitaram aqui o rincão. Como explicar esta tempestade furiosa? Habitava um monstro dentro dele? Um psicopata? Na sua múltipla personalidade estava incluído um Adolfo qualquer coisa? Acometiam-no delírios em que se fantasiava de tirano louco subjugando uma Europa fumegante, em escombros, a seus pés?
Verificado tão tenebroso depoimento, atestados os seus ignóbeis propósitos anti-democráticos – saliento: mais anti-democrático é difícil! – deviam ser as suas ossadas despejadas dos Jerónimos e substituídos pela dona Amália? Deviam ser os seus livros proibidos e varridos para fora das livrarias e bibliotecas? Devia ser o seu nome lançado ao opróbrio e a sua efígie queimada em praça pública? As ruas e alamedas com o seu nome deviam ser rebaptizadas? O quê?...
Enquanto as autoridades ponderam e cozinham a sentença, eu ouso ir divagando o seguinte:
É evidente que o nosso Fernando andara a ler Nietzsche. Ora, os efeitos inebriantes do filósofo alemão são por demais conhecidos, eu que o diga. É, pois, um Fernando Pessoa alterado, fora de si, heteroposto, que se imagina correndo a saloiada cá do bairro a pontapé e à metralha por amor duma louvável quimera que, num instante fugaz, o desinquietou. Não é que eu próprio, às vezes, não comungue de sonhos desses; simplesmente, uma coisa é a ficção, a fantasia filosófica, outra, bem diversa, é a realidadezinha e o “malhão, malhão”. Dir-me-ão: pífia justificativa, ó Dragão! E se algum exaltado avulso, desses símios de imitação que não podem ver ideia nenhuma que não queiram logo macaqueá-la, desata a exercitar-se nesses propósitos pelas avenidas?...Sim, o que vai ser das pessoas que forem por ali a passar?!...”
Concedo que a justificação não é das melhores. De facto, metralhar as ruas em tese, nada tem que ver com metralhá-las em sede própria. Não muito tempo depois do nosso Fernando ter escrito isto, houve até uns folgazões de gosto mais que duvidoso que sonegaram as metralhadoras da tese e foram experimentá-las na rua. Os resultados foram trágicos. Ora, isso é tão aberrante como pegar nas metralhadoras da rua e ir metralhar na tese; ou então chamar os polícias de ronda, para virem com os cassetetes da rua bater ao filósofo por causa da tese. (Tudo isto, nunca esquecendo que colocar uma tese explosiva nas mãos dum macaco é tão perigoso como colocar uma granada, admito-o).
Mas continuo na minha: o que era mesmo importante, higiénico, edificante era que, como dizia Baudelaire, se deixasse a cada qual a sua quimera. Que deixássemos de meter o naríz nas quimeras dos outros, e as quimeras dos outros na nossa cabeça. Não são inalações que se recomendem, sem as devidas precauções. Apreciemo-las, por cortesia, ou por fruição artísticas. Ninguém pode dizer que “Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?”, não é bonito, mesmo sublime, enquanto literatura. Eu, pelo menos, não digo.
E mais sublime ainda se pensarmos nos efeitos devastadores que seguramente causará nas carinhas sonsas dos filisteus cá do burgo. Mas livrem-se de atrelar ficção tão garbosa à carroça trafulha da política: perde-se a genialidade e não se logra benefício nenhum. Pelo contrário, garimpa-se imundície pegada.
Por conseguinte, e em conclusão: Respeitemos os desabafos e telhas dos génios, pois é um direito exclusivo que lhes assiste. Guardemo-nos de interferir com eles, quando passeiam entre as nuvens o bando trovejante das suas quimeras. Velemos-lhes as jornadas, mas devidamente abrigados dos seus raios, sempre prontos a fulminar o basbaque incauto.
Quanto aos coletes de forças, coleiras, trelas e açaimes que a prudência recomenda, são arreios, na verdade, indispensáveis, não aos génios, seres inexpugnáveis por natureza, mas aos políticos, essa matilha acéfala, tumultuosa, que em tempo ou modo algum convém ser deixada à solta!... Para que, sobretudo, não conspurque nem perturbe com as suas badalhoquices e macacadas – nem, pior ainda, armadilhe de porcarias – a digressão nefelibata dos outros.
E quando, em dias de festa, virdes o povo entusiasmado, atrás dos políticos, em animadas e turbulentas caçadas, desviai-vos para bem longe. O povo tem uma tara: perseguir desilusões.
E quando, em dias de festa, virdes o povo entusiasmado, atrás dos políticos, em animadas e turbulentas caçadas, desviai-vos para bem longe. O povo tem uma tara: perseguir desilusões.
(Espero que tenham feito uma boa viagem. Que o serviço tenha sido do vosso agrado e voltem a voar brevemente nas nossas linhas aéreas!...)
terça-feira, outubro 26, 2004
Links e Anonimato
É uma coisa que trago aqui atravessada há já uns tempos e que aproveito para descarregar...
Acerca de links quero dizer o seguinte:
Eu, Dragão, “linko”:
a) Aqueles que me dão prazer ler, sobretudo pelo seu humor, ironia e bons tratos da Língua Portuguesa, essa princesa guardada na torre onde cumpro vigília;
b) Por cortesia, todos aqueles que me “linkam”.
c) Não “linko” o “abrupto”, é verdade. Nem por cortesia o faria. Nem esse nem outros brutos da mesma igualha. Censura? Cuidados de higiene, simplesmente.
d) Prezo muito que a generalidade dos “bem pensantes” e “adiantados mentais” da paróquia blogopédica não me linkem. Reconforta-me. No dia em que a choldra invadir as instalações, o melhor mesmo é fechar a porta. A última das intenções disto é o proselitismo.
e) Como é óbvio, não sou nenhum modelo de virtudes. Para ninguém.
f) Tenho o maior dos apreços e considerações por quem discorda comigo, olhos nos olhos e, se for preciso, até ao ponto de andar à porrada. Aviso, no entanto, que sou hábil com a bengala.
g) Se alguém, até agora, eventualmente pensou em propôr-me para sócio do que quer que seja, e já foi preenchendo até a ficha de inscrição, aceite um conselho útil: rasgue-a.
Quanto às ideias e opiniões de todos eles, os que linko, não me meto nisso. É lá com eles. Repito: Se são democratas, socialistas, liberais, fascistas, salazaristas, salazarentos, comunistas, stalinistas, nazis, o diabo que os carregue, ou o que muito bem lhes dê na real gana, não sou polícia. Muito menos do pensamento. Um blogue, como vazadouro positivo, pode ser uma boa forma de exorcismo. Do que sei, com certeza, é que nenhum deles, desses todos, está totalmente certo nem totalmente errado. Politicamente, se ainda não perceberam, sou aristotélico; e, consequentemente, nietzschiano: estou “para lá do bem e do mal”, ou, traduzindo para crianças: para lá da “esquerda e da direita”. Portanto, o obsoleto e anacrónico não sou eu. Nem o patetinha alegre.
Quanto ao autor, este blogue não é anónimo. Eu chamo-me mesmo Dragão. Podia só assinar “D”, (ou “DR” – Dragão Rex) como “JPP”, ou “JCD”, mas não gosto de me confundir com siglas partidárias juvenis (ou desígnios nacionais) . Se não me conhecem, eu também não vos conheço de parte nenhuma, nem nunca vos vi mais gordos. Para aqueles que analizam* e catalogam as opiniões a partir da “cara de quem as defende”, deixem que vos pergunte: “E porque não o cu?”
Sim, porque quem começa a pedir a cara, não tarda pede também o cu. Ou partindo do princípio do peregrino com invariável cara de cu, o pedir a cara é já pedir o cu. E para peditórios desses não dei nem dou. E se insistem replico: Pegai no vossa opiniãozinha, embrulhai-a bem embrulhada, e, já que isso tanto vos obseca, ide vós dar a a cara, aliás, cu, por ela!... Ninguém se aflige e já estais habituados.
Para os restantes, pessoas normais que tenham o azar de por aqui passar, estejam à vontade: a casa é -e será sempre - vossa. Mas o pavio é meu. E é curto.
*Nota - Não é lapso, é mesmo assim, com z (não de "fazer análise", mas de "usar a função anal", isto é "borrar").
Acerca de links quero dizer o seguinte:
Eu, Dragão, “linko”:
a) Aqueles que me dão prazer ler, sobretudo pelo seu humor, ironia e bons tratos da Língua Portuguesa, essa princesa guardada na torre onde cumpro vigília;
b) Por cortesia, todos aqueles que me “linkam”.
c) Não “linko” o “abrupto”, é verdade. Nem por cortesia o faria. Nem esse nem outros brutos da mesma igualha. Censura? Cuidados de higiene, simplesmente.
d) Prezo muito que a generalidade dos “bem pensantes” e “adiantados mentais” da paróquia blogopédica não me linkem. Reconforta-me. No dia em que a choldra invadir as instalações, o melhor mesmo é fechar a porta. A última das intenções disto é o proselitismo.
e) Como é óbvio, não sou nenhum modelo de virtudes. Para ninguém.
f) Tenho o maior dos apreços e considerações por quem discorda comigo, olhos nos olhos e, se for preciso, até ao ponto de andar à porrada. Aviso, no entanto, que sou hábil com a bengala.
g) Se alguém, até agora, eventualmente pensou em propôr-me para sócio do que quer que seja, e já foi preenchendo até a ficha de inscrição, aceite um conselho útil: rasgue-a.
Quanto às ideias e opiniões de todos eles, os que linko, não me meto nisso. É lá com eles. Repito: Se são democratas, socialistas, liberais, fascistas, salazaristas, salazarentos, comunistas, stalinistas, nazis, o diabo que os carregue, ou o que muito bem lhes dê na real gana, não sou polícia. Muito menos do pensamento. Um blogue, como vazadouro positivo, pode ser uma boa forma de exorcismo. Do que sei, com certeza, é que nenhum deles, desses todos, está totalmente certo nem totalmente errado. Politicamente, se ainda não perceberam, sou aristotélico; e, consequentemente, nietzschiano: estou “para lá do bem e do mal”, ou, traduzindo para crianças: para lá da “esquerda e da direita”. Portanto, o obsoleto e anacrónico não sou eu. Nem o patetinha alegre.
Quanto ao autor, este blogue não é anónimo. Eu chamo-me mesmo Dragão. Podia só assinar “D”, (ou “DR” – Dragão Rex) como “JPP”, ou “JCD”, mas não gosto de me confundir com siglas partidárias juvenis (ou desígnios nacionais) . Se não me conhecem, eu também não vos conheço de parte nenhuma, nem nunca vos vi mais gordos. Para aqueles que analizam* e catalogam as opiniões a partir da “cara de quem as defende”, deixem que vos pergunte: “E porque não o cu?”
Sim, porque quem começa a pedir a cara, não tarda pede também o cu. Ou partindo do princípio do peregrino com invariável cara de cu, o pedir a cara é já pedir o cu. E para peditórios desses não dei nem dou. E se insistem replico: Pegai no vossa opiniãozinha, embrulhai-a bem embrulhada, e, já que isso tanto vos obseca, ide vós dar a a cara, aliás, cu, por ela!... Ninguém se aflige e já estais habituados.
Para os restantes, pessoas normais que tenham o azar de por aqui passar, estejam à vontade: a casa é -e será sempre - vossa. Mas o pavio é meu. E é curto.
*Nota - Não é lapso, é mesmo assim, com z (não de "fazer análise", mas de "usar a função anal", isto é "borrar").
segunda-feira, outubro 25, 2004
Os Ogres (em qualquer TV perto de si...)
Há que propagar aos quatro ventos, sem dó nem piedade, sem trégua nem descanso, até à exaustão, até à naúsea mais deprimente e esviscerante que houver, que a família é um local perigoso; que as criancinhas - esse baluarte derradeiro da imbecilidade por canonizar- estão à mercê de pais, mães, tios avós; que em cada uma destas ramagens da árvore geneológica habita um psicopata, um ogre faminto, à espera da oportunidade para se manifestar, para cevar os maus instintos, as pulsões de morte e os múltiplos projectos de açougue doméstico. Da pedofilia ao homicídio, passando pela violação, venda ilegal, tráfico de órgãos, vampirismo, antropofagia, tudo é possível. Mais que possível, é fatal, é praticamente garantido. A família é o antro das piores bestas, dos mais hediondos monstros. De todos os lados, chusmas de experts, licenciados na pintelhice, mestrados na miudeza, investigadores da caganitância atestam-no. Hordas de jornalistas excitados, histéricos –passe a redundância, num tempo em que “jornalismo” deveio sinónimo de “histerismo” –, proclamam-no todos os dias, antes, durante e após as refeições; ao erguer e ao deitar. Andam pelo país a esquadrinhar vilórias, a espiolhar quintais, à cata de pesadelos guardados em frascos de álcool na dispensa, em caixotes na cave, ou, em postas, no frigorífico.
A mesma televisão que, em avatar de baby-siter, (des)educa os filhos, ou, em traje de padreca, evangeliza os pais, organiza debates e mesas redondas, onde anatomistas e estripadores de toda a ordem, se entregam ao esquartejamento científico dos furúnculos sociais, das tumefacções familiares, e exibem para toda a paróquia a sua perícia na autópsia pedagógica, na hermenêutica da aberração. Através deste passe de mágica, desta alter-egotização milagreira, a mesma televisão que antes injectou a psicopatia ao domicílio, vem agora pôr-se em auto-análise, a debitar sobre o que é que falhou na sua tutoria educativa das massas. Isto é: depois de industriar e incitar o assassino, vem sentar-se na tribuna, feita conselheira do juíz. A conclusão é invariável: certamente aquelas famílias disfuncionais não estavam a ver televisão suficiente, nem a escutar –a sorver com volúpia adequada – na dose requerida e clinicamente prescrita, os incontáveis especialistas e pintelhistas que dela, nos intervalos da publicidade, dos concursos e das telenovelas, e em patrocínio dos melhores sabonetes e shampôs, aspergem as massas de basbaques televisivos com uma imensa e pregnante sapiência e a luz relampejante de faróis da sociedade. Moitas Flores de toda a espécie, com o distinto ar de labregos empertigados, co’a mioleira enfezada subitamente enchida à bomba por arte dum qualquer anabolizante mental de carregar pela boca, arrotam postas de papuda sapiência, posam bonzamente para o écran e declamam banalidades e paroladas capazes de estarrecer, senão debandar mesmo, uma horda compacta de chimpanzés cocantes. Carroceiros dignos de perorar às cavalgaduras da mala-posta, arvoram-se, assim, em pilotos malabaristas do povinho palonço e das famelgas em colóquio. E quando não distribuem atoardas, escrevem telenovelas.
Numa época em que a aberração devém objecto de culto, a ninharia se promove a quintessência, e a tara escaganifobética de qualquer meia-dúzia endinheirada se arroga como amostra prioritária da humanidade, nada disto surpreende. Não mata, é certo. Mas faz pior: desmoraliza.
A mesma televisão que, em avatar de baby-siter, (des)educa os filhos, ou, em traje de padreca, evangeliza os pais, organiza debates e mesas redondas, onde anatomistas e estripadores de toda a ordem, se entregam ao esquartejamento científico dos furúnculos sociais, das tumefacções familiares, e exibem para toda a paróquia a sua perícia na autópsia pedagógica, na hermenêutica da aberração. Através deste passe de mágica, desta alter-egotização milagreira, a mesma televisão que antes injectou a psicopatia ao domicílio, vem agora pôr-se em auto-análise, a debitar sobre o que é que falhou na sua tutoria educativa das massas. Isto é: depois de industriar e incitar o assassino, vem sentar-se na tribuna, feita conselheira do juíz. A conclusão é invariável: certamente aquelas famílias disfuncionais não estavam a ver televisão suficiente, nem a escutar –a sorver com volúpia adequada – na dose requerida e clinicamente prescrita, os incontáveis especialistas e pintelhistas que dela, nos intervalos da publicidade, dos concursos e das telenovelas, e em patrocínio dos melhores sabonetes e shampôs, aspergem as massas de basbaques televisivos com uma imensa e pregnante sapiência e a luz relampejante de faróis da sociedade. Moitas Flores de toda a espécie, com o distinto ar de labregos empertigados, co’a mioleira enfezada subitamente enchida à bomba por arte dum qualquer anabolizante mental de carregar pela boca, arrotam postas de papuda sapiência, posam bonzamente para o écran e declamam banalidades e paroladas capazes de estarrecer, senão debandar mesmo, uma horda compacta de chimpanzés cocantes. Carroceiros dignos de perorar às cavalgaduras da mala-posta, arvoram-se, assim, em pilotos malabaristas do povinho palonço e das famelgas em colóquio. E quando não distribuem atoardas, escrevem telenovelas.
Numa época em que a aberração devém objecto de culto, a ninharia se promove a quintessência, e a tara escaganifobética de qualquer meia-dúzia endinheirada se arroga como amostra prioritária da humanidade, nada disto surpreende. Não mata, é certo. Mas faz pior: desmoraliza.
domingo, outubro 24, 2004
O Admirável Formigueiro
Se me perguntassem pelo contrário de “Homem”, eu responderia, sem hesitar: “Formigueiro”. E, não obstante, vamo-nos aproximando cada vez mais dele, do formigueiro. À medida que nos afastamos cada vez mais dele, do Homem.
Mas o mais curioso é que o formigueiro, aos poucos, lá se vai construindo em Nome do Homem, como o Inferno, geralmente, sempre se edificou em Nome de Deus. Os construtores de formigueiros são, regra geral, os mesmos que edificam infernos. Os Procuradores do Homem (também auto-denominados “humanistas”) são herdeiros dos Procuradores de Deus (ou Teófilos). Para todos eles, invariavelmente, os seus aterros são locais pré-paradisíacos, ou, pelo menos, miradouros com vista para o éden. Na maior parte do tempo, porém, não passam de antecâmaras, purgatórios, parques de suplício mascarado de diversão.
De caminho, estes operadores filantrópicos, vão crucificando o homem, vão-no agrilhoando a Cáucasos, vão-no, em suma, adiando sine die. Lá, no fundo da sua ciência epidérmica, uma certeza os anima: Mundo e Homem são incompatíveis. Não adianta, pois, tentar construir mundos para o homem, belos e refinados mundos, porque ele estraga-os e escaqueira-os a todos. Não adianta vesti-lo no melhor traje domingueiro, porque ele, pândego inveterado, cisma de ir saltar para a rua e rebolar-se na terra, enlamear-se à chuva, com os bichos e as árvores. Não adianta encher-lhe a cabeça de coisas sérias, deveres e proibições, porque ele teima em brincar, em rir e divertir-se, e, pior um pouco, em cometer toda a ordem de tropelias e disparates. De pouco serve tentar protegê-lo com redomas, porque ele adora o risco, o perigo, a guerra e enturma-se com eles como um míudo presidindo a cordéis e a todos os cães vadios da sua rua. Fatal, portanto, a conclusão: Não basta construir um Mundo para o Homem; sobretudo, há que moldar um homem para o mundo. Melhor: há que forjar e inventar um. Sem formigas não há formigueiro. Elementar, também, a tarefa destes novos demiurgos: já que a natureza não presta e produziu um homem imprestável, há que obrar contra a natureza e fabricar um homem artificial. Um homúnculo que caiba no Mundo deles; um homúnculo, como esses antigos nanoprodígios da alquimia ou da cabala, reflexo do espírito deles; um homem livre da natureza e escravo dessa sua liberdade. Livre de sentimentos, de angústias, de dúvidas, de pensamentos, enfim: livre das suas grandezas e infâmias; mas servo vitalício da sua utilidade e do seu lugar na engrenagem perfeita, imarcescível. Um homem micróbio, para viver ao microscópio.
Essa gente de cara a transbordar de boas intenções, arrumadores de planetas do universo, desconfiai deles! Esses bufarinheiros que passam na rua apregoando panaceias para todos os males e que vos vendem os males junto com a banha, mandai-os pró Diabo que os descarregou!
À entrada deste Admirável Formigueiro Novo, há uma placa severa, peremptória, que determina:
Mas o mais curioso é que o formigueiro, aos poucos, lá se vai construindo em Nome do Homem, como o Inferno, geralmente, sempre se edificou em Nome de Deus. Os construtores de formigueiros são, regra geral, os mesmos que edificam infernos. Os Procuradores do Homem (também auto-denominados “humanistas”) são herdeiros dos Procuradores de Deus (ou Teófilos). Para todos eles, invariavelmente, os seus aterros são locais pré-paradisíacos, ou, pelo menos, miradouros com vista para o éden. Na maior parte do tempo, porém, não passam de antecâmaras, purgatórios, parques de suplício mascarado de diversão.
De caminho, estes operadores filantrópicos, vão crucificando o homem, vão-no agrilhoando a Cáucasos, vão-no, em suma, adiando sine die. Lá, no fundo da sua ciência epidérmica, uma certeza os anima: Mundo e Homem são incompatíveis. Não adianta, pois, tentar construir mundos para o homem, belos e refinados mundos, porque ele estraga-os e escaqueira-os a todos. Não adianta vesti-lo no melhor traje domingueiro, porque ele, pândego inveterado, cisma de ir saltar para a rua e rebolar-se na terra, enlamear-se à chuva, com os bichos e as árvores. Não adianta encher-lhe a cabeça de coisas sérias, deveres e proibições, porque ele teima em brincar, em rir e divertir-se, e, pior um pouco, em cometer toda a ordem de tropelias e disparates. De pouco serve tentar protegê-lo com redomas, porque ele adora o risco, o perigo, a guerra e enturma-se com eles como um míudo presidindo a cordéis e a todos os cães vadios da sua rua. Fatal, portanto, a conclusão: Não basta construir um Mundo para o Homem; sobretudo, há que moldar um homem para o mundo. Melhor: há que forjar e inventar um. Sem formigas não há formigueiro. Elementar, também, a tarefa destes novos demiurgos: já que a natureza não presta e produziu um homem imprestável, há que obrar contra a natureza e fabricar um homem artificial. Um homúnculo que caiba no Mundo deles; um homúnculo, como esses antigos nanoprodígios da alquimia ou da cabala, reflexo do espírito deles; um homem livre da natureza e escravo dessa sua liberdade. Livre de sentimentos, de angústias, de dúvidas, de pensamentos, enfim: livre das suas grandezas e infâmias; mas servo vitalício da sua utilidade e do seu lugar na engrenagem perfeita, imarcescível. Um homem micróbio, para viver ao microscópio.
Essa gente de cara a transbordar de boas intenções, arrumadores de planetas do universo, desconfiai deles! Esses bufarinheiros que passam na rua apregoando panaceias para todos os males e que vos vendem os males junto com a banha, mandai-os pró Diabo que os descarregou!
À entrada deste Admirável Formigueiro Novo, há uma placa severa, peremptória, que determina:
”Proibida a entrada a Deuses e a Homens.”
Está certa, a placa. Afinal, num formigueiro, deuses e homens são ideias sem o mínimo cabimento.
sexta-feira, outubro 22, 2004
O Povo
«E o povo?», dir-se-á. O pensador ou o historiador que usar este termo sem ironia ficará desqualificado. O «Povo» - sabemos demasiado bem a que está destinado o povo: sofrer os acontecimentos, e as fantasias dos governantes, prestando-se a desígnios que o afectam e oprimem. Toda a experiência política, por “avançada” que seja, se desenrola a expensas suas, dirigindo-se contra ele: o povo carrega os estigmas da escravidão por mandamento divino ou diabólico. Inútil apiedarmo-nos da sua sorte: a causa não tem remédio. As nações e impérios formam-se graças à complacência do povo diante das iniquidades de que é alvo. Não há chefe de Estado nem conquistador que o não despreze; mas ele aceita esse desprezo, e dele vive. Deixasse o povo de ser apático ou vítima, deixasse de assistir simplesmente aos seus destinos, que a sociedade se dissiparia, e, com ela, a história sem mais. Não sejamos demasiado optimistas: nada da sua parte permite que encaremos uma tão bela eventualidade. Tal como é, representa um convite ao despotismo. Suporta as suas provações, por vezes solicita-as, e só se revolta contra elas para se precipitar noutras novas, mais atrozes do que as antigas.»
- E.M. Cioran, "Na Escola dos Tiranos"
- E.M. Cioran, "Na Escola dos Tiranos"
quinta-feira, outubro 21, 2004
A Marialvice
Dizem-me que é um dos suprassumos do marialvismo, mas eu não acredito. Torço mesmo o nariz. Refiro-me à tauromaquia e, com ênfase especial, aos grupos de forcados. Aquelas roupas esterlicadinhas, todas floridas e enfeitadas, as mãos à cintura, a gingarem-se feitos varinas (sobretudo o da cara, quer dizer, o das ventas do touro), não me inspiram grande confiança. Confiança nenhuma, devo dizer. Dir-me-ão que aquilo é uma verdadeira manifestação de testosterona, uma epopeia das antigas; e eu responderei “Sim, sim...pois, pois...”
É sabido que eu até nem vejo com maus olhos o marialvismo, que proclamo receitas musculadas para lidar com a emancipação feminil, que, em tempos, até abracei uma carreira de ferrabrás...Mas, por isso mesmo, estes bizarros moços, que ocasionalmente voam nas arenas, não me suscitam grande conceito. Tudo aquilo me parece suspeito. Tresanda-me a mero pretexto, a subterfúgio. Para aqueles desfiles afectados, para aquelas corridinhas saltitantes e, sobretudo, para se atirarem todos para cima uns dos outros, numa molhada a todos os títulos ambígua. Os do râguebi desculpam-se com a bola, estes é com o touro.
De facto, por mais que me expliquem com exaustão e pormenor a manobra, custa-me a entender aquela compulsão de se agarrarem uns aos outros e a um touro macho, chegando um deles a agarrar-se grosseiramente ao rabo do bicho. Se ainda fosse a uma vaca, vá que não vá: o bestialismo heterossexual sempre apresenta algumas atenuantes. A multiplicidade de têtas sempre justificaria a afluência em magote. Agora, assim, um bando de matulões a rebolarem-se com um touro macho – e bravo – em plena praça pública, não me parece decente. Quem me garante que, na confusão, não se apalpam uns aos outros e ao cornúpeto também?
Mas, como se estes detalhes nebulosos não bastassem, temos ainda o desfile e abordagem preliminar. Aí, o fenómeno é ainda mais escandaloso. Primeiro, como já referi (e toda a gente pode testemunhar) o da frente, pelos vistos o mais petulante, vai por ali fora, num quase ballet, a pavonear-se, a gingar-se, que mais parece uma peixeira. Um tipo à espera dum brutamontes, dum traga-mouros, a escarrar no chão, de olhos raiados, zangado, resfolegante, disposto a tudo, e sai-nos um engomadinho, todo aperaltado, ai não me toques, de colete às ramagens e calças que mais parecem collants. Depois, é o vocabulário, o palavreado fruste que brota das beiças do peralta dengoso. Quem esteja à espera de berros atroadores, de reptos assanhados eriçados de impropérios, sinal inequívoco de bravura e virilidade, em suma: quem esteja na espectativa dum Hércules, desengane-se. Nem sequer aquela cena tradicional, canalha, do gajo aos gritos “segurem-me!agarrem-me! Senão desgraço-me aqui hoje!”, com os outros a segurá-lo e a ministrar-lhe sedativos orais, estilo “acalma-te Tózé, não te desgraçes! Pensa nos teus filhos! Não vale a pena! O gajo ‘tá bêbado, Tózé!... etc,etc” Não, meus amigos, nem esse resquício de varonia, nem essa migalha. Em vez disso:
-“Eh toro! Eh toro lindo!:..”, cita a criaturinha. E não somos só nós a ficar estupefactos, repugnados, boquiabertos. O touro também. Suado, ofegante, olha para aqueles cromos, incrédulo. "Mas que totós são estes?", deve concerteza interrogar-se o desafortunado bicho, estarrecido. E o caso não é para menos. Está para ali o animal exausto, cravejado que nem um paliteiro gigante, a sangrar e a espumar-se de raiva, cheio de compreensíveis ímpetos de morte e trucidação, e, quando se prepara para um assalto final, para uma morte em glória, um fim digno, qual legionário em Dien Bien Phu – quando, enfim, já escarva trincheiras no solo–, saltam-lhe ao terreiro uns arlequins coquetes com meiguices de “eh tôro lindo!”
Lindo??!!! Tôro lindo??!!! Só falta chamar-lhe querido, fôfinho. Calculem que eu vou desafiar um cabrão qualquer e digo-lhe: “Eh gajo lindo!” Já viram maior mariquice? No mínimo chamo-lhe é “cabrão de merda!”, ou “filho duma grande puta”, ou, como é mesmo de macho, próprio de homem, não lhe digo coisa nenhuma e enfio-lhe é logo com uma cadeira nos cornos. Quem diz uma cadeira, diz um candeeiro ou, no mínimo, uma garrafa ou uma chave de rodas. Isso sim, isso é fazer a coisa com termos, com testículos, à portuguesa.
Mas qual quê, aqueles flausinos, em vez de dizerem “ó cabrão de merda! Ó grande filho da puta, manso do caralho!, ou de irem direitos ao quadrúpede e afiambrarem-lhe com uma peça de mobiliário nos cornos, literalmente, põem-se, em vez disso, com “eh toro lindo! Eh lindinho!...” Diabos me levem, se compreendo uma ternura destas!...
O touro, masculino, acho que também não compreende. Regra geral, fica para ali embasbacado, um ror de tempo, sem perceber muito bem se querem lutar ou namorar com ele. Eu partilho dessa dúvida.
Porém, não é tudo: Falta ainda a parte final da molhada, depois de se andarem a esfregar uns nos outros e na desprevenida alimária. Que fazem eles? Sim, depois da tentativa simulada de violação, largam a correr, pusilanimemente, cada qual para sua banda, excepto o que se agarra ao rabo, tipo obsessivo. Quer dizer, quando, fazendo fé que é uma luta (relembro que tauro-maquia, palavra grega, significa “luta” (maqué) de “touros” (tauros)), pois, dizia eu, quando estamos à espera que desanquem a besta, no mínimo até ao KO da dita ou pelo menos até uma fractura exposta; quando imaginamos uma chacina em ordem, com gritos e urros de arrepiar, de fazer as donzelas cobrir o rosto; quando espumamos de entusiamo antegozando para com os nossos botões “ah, agora é que vai ser, vão-lhe encher o cabaz, vai ver como elas lhe mordem!”, nada disso, nenhuma dessas medidas essenciais acontece. Pelo contrário, é um anti-climáx: todos à uma, excepto o tarado da cauda, uranista empedernido, debandam alegremente, como um bando de meninos rabinos que, finda a peça, regressam às saias maternas.
Digo mais: a continuar assim, não me admiro nada que, dentro em breve, hajam também mulheres forcadas. Se já servem para a tropa, se já as há até cavaleiras, melhor ainda se desembaraçarão a chamar “lindo!” ao touro. Ao menos não ofendem o animal.
É sabido que eu até nem vejo com maus olhos o marialvismo, que proclamo receitas musculadas para lidar com a emancipação feminil, que, em tempos, até abracei uma carreira de ferrabrás...Mas, por isso mesmo, estes bizarros moços, que ocasionalmente voam nas arenas, não me suscitam grande conceito. Tudo aquilo me parece suspeito. Tresanda-me a mero pretexto, a subterfúgio. Para aqueles desfiles afectados, para aquelas corridinhas saltitantes e, sobretudo, para se atirarem todos para cima uns dos outros, numa molhada a todos os títulos ambígua. Os do râguebi desculpam-se com a bola, estes é com o touro.
De facto, por mais que me expliquem com exaustão e pormenor a manobra, custa-me a entender aquela compulsão de se agarrarem uns aos outros e a um touro macho, chegando um deles a agarrar-se grosseiramente ao rabo do bicho. Se ainda fosse a uma vaca, vá que não vá: o bestialismo heterossexual sempre apresenta algumas atenuantes. A multiplicidade de têtas sempre justificaria a afluência em magote. Agora, assim, um bando de matulões a rebolarem-se com um touro macho – e bravo – em plena praça pública, não me parece decente. Quem me garante que, na confusão, não se apalpam uns aos outros e ao cornúpeto também?
Mas, como se estes detalhes nebulosos não bastassem, temos ainda o desfile e abordagem preliminar. Aí, o fenómeno é ainda mais escandaloso. Primeiro, como já referi (e toda a gente pode testemunhar) o da frente, pelos vistos o mais petulante, vai por ali fora, num quase ballet, a pavonear-se, a gingar-se, que mais parece uma peixeira. Um tipo à espera dum brutamontes, dum traga-mouros, a escarrar no chão, de olhos raiados, zangado, resfolegante, disposto a tudo, e sai-nos um engomadinho, todo aperaltado, ai não me toques, de colete às ramagens e calças que mais parecem collants. Depois, é o vocabulário, o palavreado fruste que brota das beiças do peralta dengoso. Quem esteja à espera de berros atroadores, de reptos assanhados eriçados de impropérios, sinal inequívoco de bravura e virilidade, em suma: quem esteja na espectativa dum Hércules, desengane-se. Nem sequer aquela cena tradicional, canalha, do gajo aos gritos “segurem-me!agarrem-me! Senão desgraço-me aqui hoje!”, com os outros a segurá-lo e a ministrar-lhe sedativos orais, estilo “acalma-te Tózé, não te desgraçes! Pensa nos teus filhos! Não vale a pena! O gajo ‘tá bêbado, Tózé!... etc,etc” Não, meus amigos, nem esse resquício de varonia, nem essa migalha. Em vez disso:
-“Eh toro! Eh toro lindo!:..”, cita a criaturinha. E não somos só nós a ficar estupefactos, repugnados, boquiabertos. O touro também. Suado, ofegante, olha para aqueles cromos, incrédulo. "Mas que totós são estes?", deve concerteza interrogar-se o desafortunado bicho, estarrecido. E o caso não é para menos. Está para ali o animal exausto, cravejado que nem um paliteiro gigante, a sangrar e a espumar-se de raiva, cheio de compreensíveis ímpetos de morte e trucidação, e, quando se prepara para um assalto final, para uma morte em glória, um fim digno, qual legionário em Dien Bien Phu – quando, enfim, já escarva trincheiras no solo–, saltam-lhe ao terreiro uns arlequins coquetes com meiguices de “eh tôro lindo!”
Lindo??!!! Tôro lindo??!!! Só falta chamar-lhe querido, fôfinho. Calculem que eu vou desafiar um cabrão qualquer e digo-lhe: “Eh gajo lindo!” Já viram maior mariquice? No mínimo chamo-lhe é “cabrão de merda!”, ou “filho duma grande puta”, ou, como é mesmo de macho, próprio de homem, não lhe digo coisa nenhuma e enfio-lhe é logo com uma cadeira nos cornos. Quem diz uma cadeira, diz um candeeiro ou, no mínimo, uma garrafa ou uma chave de rodas. Isso sim, isso é fazer a coisa com termos, com testículos, à portuguesa.
Mas qual quê, aqueles flausinos, em vez de dizerem “ó cabrão de merda! Ó grande filho da puta, manso do caralho!, ou de irem direitos ao quadrúpede e afiambrarem-lhe com uma peça de mobiliário nos cornos, literalmente, põem-se, em vez disso, com “eh toro lindo! Eh lindinho!...” Diabos me levem, se compreendo uma ternura destas!...
O touro, masculino, acho que também não compreende. Regra geral, fica para ali embasbacado, um ror de tempo, sem perceber muito bem se querem lutar ou namorar com ele. Eu partilho dessa dúvida.
Porém, não é tudo: Falta ainda a parte final da molhada, depois de se andarem a esfregar uns nos outros e na desprevenida alimária. Que fazem eles? Sim, depois da tentativa simulada de violação, largam a correr, pusilanimemente, cada qual para sua banda, excepto o que se agarra ao rabo, tipo obsessivo. Quer dizer, quando, fazendo fé que é uma luta (relembro que tauro-maquia, palavra grega, significa “luta” (maqué) de “touros” (tauros)), pois, dizia eu, quando estamos à espera que desanquem a besta, no mínimo até ao KO da dita ou pelo menos até uma fractura exposta; quando imaginamos uma chacina em ordem, com gritos e urros de arrepiar, de fazer as donzelas cobrir o rosto; quando espumamos de entusiamo antegozando para com os nossos botões “ah, agora é que vai ser, vão-lhe encher o cabaz, vai ver como elas lhe mordem!”, nada disso, nenhuma dessas medidas essenciais acontece. Pelo contrário, é um anti-climáx: todos à uma, excepto o tarado da cauda, uranista empedernido, debandam alegremente, como um bando de meninos rabinos que, finda a peça, regressam às saias maternas.
Digo mais: a continuar assim, não me admiro nada que, dentro em breve, hajam também mulheres forcadas. Se já servem para a tropa, se já as há até cavaleiras, melhor ainda se desembaraçarão a chamar “lindo!” ao touro. Ao menos não ofendem o animal.
quarta-feira, outubro 20, 2004
A Metamorfose
Com o patrocínio de Franz Kafka e deste vosso humilde criado, aqui fica uma minuta que podereis utilizar para o personagem da vossa preferência. Significa isto que o nome do herói do pequeno conto é permutável: podeis substitui-lo por vários outros, a vosso gosto (eu sei que existem), que o texto não perderá sentido nem actualidade.
Quando Luís Delgado despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de animal: um homem.
Levantou-se, no singelo par de pernas, duma grossura espantosa, e, meneando um pouco a cabeça, constatou que o equipava agora uma coluna vertebral, bem como ossos e articulações por todo o corpo. Horrorizado, tentou deslizar viscosamente pelo quarto, como sempre fizera, mas só logrou espalhar-se ao comprido no tapete. Experimentou readquirir aquele teor celular gelatinoso, que tanto jeito lhe dava para se moldar e adaptar a qualquer circunstância ou conjuntura, mas em vão. Ao tentar exfiltrar-se sob a frincha da porta, à maneira dos moluscos, esbarrou com a cabeça teimosamente rígida contra a madeira impenetrável. Por mais que se contorcesse e contraísse, em busca das faculdades de larva ou lesma de outras épocas, o corpo, desajeitado, aprisionado naquele vil invólucro de mamífero superior, não respondia. Em desespero, tentou grudar-se à parede, de modo a amarinhar ao tecto, onde repousaria supenso em meditação, tentando congeminar uma solução para o ignóbil transtorno. Mas mesmo esse seu local predilecto, onde costumava exercitar o pensamento e alcançar as maiores inspirações, lhe estava agora inacessível.
Defronte do espelho, passou do horror à repugnância impotente. Em vez daquela baba peganhenta e esbranquiçada que tanta distinção ainda no dia anterior lhe conferia e lhe granjeara uma carreira triunfante e ascensional, coroavam-no agora cabelos ligeiramente mais finos e espetados que os dos macacos. Uma carantonha nojenta, com dois olhos descomunais e uma penca protuberante, fitava-o, hórrida, e adquiria, em simultaneo, uma cor lívida de suprema angústia. Delgado, munido subitamente dum pesadíssimo e complexo cérebro, com turbilhões de sinapses e neurónios, conseguia pela primeira vez arquitectar uma ideia e esta, para adensar o pesadelo, coincidia com um prognóstico: o de um futuro catastrófico e sombrio, em que a despromoção, o desemprego e o opróbrio lhes estavam reservados, caso não recuperasse urgentemente a sua forma natural de insecto. Escorraçá-lo-iam certamente como ao mais infame e repulsivo dos seres. Mal o imaginassem vertebrado, vertical, bani-lo-iam e ostracizá-lo-iam sem dó nem piedade, como a uma coisa obsoleta e inútil. Engoliu em seco. Um suor gélido começou a descer-lhe pelas costas, ao longo da coluna recente. Pior: como uma desgraça nunca vem só, juntamente com as vértebras experimentava doravante sentimentos, pelo que grossas gotículas salgadas, soltando-se dos olhos, inauguravam sulcos pelas asquerosas faces abaixo...Transformado num ser humano, num reles e insignificante ser humano, Luís Delgado encheu-se duma grande pena de si próprio.
E, contudo, pela primeira vez também na sua miserável vida, uma análise e previsão suas estavam rigorosamente certas.
terça-feira, outubro 19, 2004
Os Burrocratas da Sabedorreia
« -Ah, tu vens de Paris?! E não quedará mal perguntar em que é que os senhores estudantes de Paris levam o tempo?
- Transcruzamos a Sequana ao dilúculo e aos crepúsculo; deambulamos pelas compitas e quadrívias da urbe; despumamos a verbocinação lacial e, como veros amorabundos, captamos a benevolência do omnijuiz, omniforme e omnigénio sexo feminino. Em certas diéculas, vamos aos lupanares e em êxtase venérica, inculcamos as uretras nos penitíssimos recessos vaginais das meretrículas amicabilíssimas. Depois, caponizamo-nos nas tascas meritórias, com espátulas vervecinas, perfumadas com salsis e hortelanus. E se nossas barjuletas carecem de metal ferruginoso, para pagar a conta contorum, deixamos as sebentas e as véstias de penhor, até que nos chegue a mesada dos penates e lares do nosso paternal.
Arregalaram-se os olhos a Pantagruel:- Que raio de falar é este? És herético, pela certa!...»
- Rabelais, “Pantagruel”.
Já vai para quinhentos anos que Rabelais ridicularizou, justa e irremediavelmente, os sorbonículas, ou sejam, todos aqueles que mascaram a maior vulgaridade de espírito sob os rococós do paleio abstruso. E, não obstante, a praga continua, a epidemia não só alastrou como se multiplicou à enésima potência. Quem enche a boca a toda a hora com parangonas como “progresso” e “evolução” bem melhor será que repense a higiene da mesma.
Oiçamos um jovem assistente universitário, pelo ano da graça de 1981, numa alocução ao “Colóquio Kant”, numa Universidade cá do burgo:
«O debate em volta da concepção kantiana de história, e particularmente sobre a natureza e latitude do conceito de progresso, progride em uníssono com as próprias brechas causadas nos instrumentos de análise teórica do objecto histórico, pelo desenvolvimento frio e anónimo dos acontecimentos que consubstanciam o presente colectivo nas suas múltiplas dimensões, da economia à situação político-militar. Mas esse vértice de actualidade, com todos os seus convites à fuga para a frente ou à doutrinação da espera e do impasse, não ocupa todo o espaço de motivações capaz de explicar o interesse e a vivacidade polémica sugerida pelo estudo dos textos históricos de Kant.» Bla-bla-bla, e por aí fora.
Perceberam? Naturalmente, não é para perceber. O estudante sorbonícula de Rabelais ocupava o seu tempo, como diz o povo, em putas e vinho-verde. O jovem estudante cá do burgo, recentemente promovido a assistente pelos idos de 81 (actualmente, está quase catedrático), mais valia que o fizesse, pois nem esse mérito social alcança: limita-se a um onanismo verborreico, malabarismo palavroso perante uma assembleia tribal de saltimbancos académicos.
Não tenho dúvida que, assim como a religião tem sido estropiada pelos sacerdotes de todas as latitudes, também a filosofia tem sofrido as piores sevícias às garras dos escolastas de ontem, de hoje, e de sempre –universitários de toda a espécie. Lembram pirilampos armados em estrelas, fazem do papagaio o totem sagrado da tribo e praticam uma coscuvilhice de comadres mascarada de erudição rupestre. Colocar a sabedorreia no altar da sabedoria, esgota, de resto, as funções destes burrocratas do conceito.
Ao fim de um quarto de século de repugnadas e perplexas observações, acho que, finalmente, me aproximei duma definição.
- Transcruzamos a Sequana ao dilúculo e aos crepúsculo; deambulamos pelas compitas e quadrívias da urbe; despumamos a verbocinação lacial e, como veros amorabundos, captamos a benevolência do omnijuiz, omniforme e omnigénio sexo feminino. Em certas diéculas, vamos aos lupanares e em êxtase venérica, inculcamos as uretras nos penitíssimos recessos vaginais das meretrículas amicabilíssimas. Depois, caponizamo-nos nas tascas meritórias, com espátulas vervecinas, perfumadas com salsis e hortelanus. E se nossas barjuletas carecem de metal ferruginoso, para pagar a conta contorum, deixamos as sebentas e as véstias de penhor, até que nos chegue a mesada dos penates e lares do nosso paternal.
Arregalaram-se os olhos a Pantagruel:- Que raio de falar é este? És herético, pela certa!...»
- Rabelais, “Pantagruel”.
Já vai para quinhentos anos que Rabelais ridicularizou, justa e irremediavelmente, os sorbonículas, ou sejam, todos aqueles que mascaram a maior vulgaridade de espírito sob os rococós do paleio abstruso. E, não obstante, a praga continua, a epidemia não só alastrou como se multiplicou à enésima potência. Quem enche a boca a toda a hora com parangonas como “progresso” e “evolução” bem melhor será que repense a higiene da mesma.
Oiçamos um jovem assistente universitário, pelo ano da graça de 1981, numa alocução ao “Colóquio Kant”, numa Universidade cá do burgo:
«O debate em volta da concepção kantiana de história, e particularmente sobre a natureza e latitude do conceito de progresso, progride em uníssono com as próprias brechas causadas nos instrumentos de análise teórica do objecto histórico, pelo desenvolvimento frio e anónimo dos acontecimentos que consubstanciam o presente colectivo nas suas múltiplas dimensões, da economia à situação político-militar. Mas esse vértice de actualidade, com todos os seus convites à fuga para a frente ou à doutrinação da espera e do impasse, não ocupa todo o espaço de motivações capaz de explicar o interesse e a vivacidade polémica sugerida pelo estudo dos textos históricos de Kant.» Bla-bla-bla, e por aí fora.
Perceberam? Naturalmente, não é para perceber. O estudante sorbonícula de Rabelais ocupava o seu tempo, como diz o povo, em putas e vinho-verde. O jovem estudante cá do burgo, recentemente promovido a assistente pelos idos de 81 (actualmente, está quase catedrático), mais valia que o fizesse, pois nem esse mérito social alcança: limita-se a um onanismo verborreico, malabarismo palavroso perante uma assembleia tribal de saltimbancos académicos.
Não tenho dúvida que, assim como a religião tem sido estropiada pelos sacerdotes de todas as latitudes, também a filosofia tem sofrido as piores sevícias às garras dos escolastas de ontem, de hoje, e de sempre –universitários de toda a espécie. Lembram pirilampos armados em estrelas, fazem do papagaio o totem sagrado da tribo e praticam uma coscuvilhice de comadres mascarada de erudição rupestre. Colocar a sabedorreia no altar da sabedoria, esgota, de resto, as funções destes burrocratas do conceito.
Ao fim de um quarto de século de repugnadas e perplexas observações, acho que, finalmente, me aproximei duma definição.
Meditação sobre uma Vassoura
«Esse mero pau que estais a ver estendido aí a um canto abandonado vi-o eu outrora florescente numa floresta: estava então prenhe de seiva, carregado de folhas, cheio de ramos, mas hoje é em vão que a arte diligente do homem tenta lutar contra a natureza atando aquele murcho ramo de vergas ao seu tronco ressequido: fica exactamente o contrário do que era, uma árvore voltada ao contrário, com os ramos no chão e a raiz para o ar; presentemente é manejada por todos os porcalhões, está condenada a ser escrava deles e, por capricho do destino, tem a missão de limpar os outros objectos e de a si própria se sujar; gasta enfim até aos restos nas mãos das criadas e é condenada umas vezes a ser lançada fora e outras a acender o lume, como serventia derradeira. Contemplando eu estas coisas, disse para comigo: “É mais que certo que o homem é uma vassoura!”
(...)
Mas uma vassoura, podereis vós dizer-me, é o símbolo de uma árvore que se sustenta sobre a própria cabeça; e eu respondo-vos: o que é um homem senão uma criatura virada ao contrário, com as suas faculdades animais perpetuamente a cavalo nas suas faculdades racionais e com a cabeça no sítio dos calcanhares a rastejar pelo chão? E mesmo assim, com tantas deficiências, ele erige-se em reformador universal, em destruidor de abusos, cavaleiro andante de todos os agravos, sempre a esquadrinhar os esquálidos recantos da natureza, a trazer para a luz do dia as podridões ocultas, a erguer poeiras consideráveis nos locais onde nem sequer elas existem, deixando-se tomar muitas vezes da sujidade que deseja limpar; os seus últimos dias passa-os escravizado às mulheres, que no geral são as de menos mérito: até ao momento em que, como a sua irmã vassoura, gasto até aos restos, é deitado pela porta fora ou empregado em acender fogueiras a que outros se vêm aquecer.»
- Jonathan Swift, “Meditação sobre uma vassoura”
Conclui-se, num aforismo do mesmo Swift: “No geral os elefantes são desenhados em mais pequeno que o natural; mas as pulgas são-no sempre em maior.”
Também sibilinamente, eu corroboro:
É o anão que necessita de andas; e quanto maiores elas forem, maior ele se torna. (Decifração: o Homem é um anão cada vez menor com andas cada vez mais gigantescas. Quanto mais elas crescem, mais ele se atrofia.)
(...)
Mas uma vassoura, podereis vós dizer-me, é o símbolo de uma árvore que se sustenta sobre a própria cabeça; e eu respondo-vos: o que é um homem senão uma criatura virada ao contrário, com as suas faculdades animais perpetuamente a cavalo nas suas faculdades racionais e com a cabeça no sítio dos calcanhares a rastejar pelo chão? E mesmo assim, com tantas deficiências, ele erige-se em reformador universal, em destruidor de abusos, cavaleiro andante de todos os agravos, sempre a esquadrinhar os esquálidos recantos da natureza, a trazer para a luz do dia as podridões ocultas, a erguer poeiras consideráveis nos locais onde nem sequer elas existem, deixando-se tomar muitas vezes da sujidade que deseja limpar; os seus últimos dias passa-os escravizado às mulheres, que no geral são as de menos mérito: até ao momento em que, como a sua irmã vassoura, gasto até aos restos, é deitado pela porta fora ou empregado em acender fogueiras a que outros se vêm aquecer.»
- Jonathan Swift, “Meditação sobre uma vassoura”
Conclui-se, num aforismo do mesmo Swift: “No geral os elefantes são desenhados em mais pequeno que o natural; mas as pulgas são-no sempre em maior.”
Também sibilinamente, eu corroboro:
É o anão que necessita de andas; e quanto maiores elas forem, maior ele se torna. (Decifração: o Homem é um anão cada vez menor com andas cada vez mais gigantescas. Quanto mais elas crescem, mais ele se atrofia.)
segunda-feira, outubro 18, 2004
Este Kant à beira-mar plantado
Embora não pareça e não sei quantos mil jornalistas insidiem e conspirem, Portugal é um país de génios. De génios, de doutores congénitos, de crânios predestinados, é o que vos digo! A prova? Nenhuma outra região do glogo, creio mesmo que da galáxia, reune sob as suas fronteiras uma tal densidade de eruditos em Kant. É preciso dizer mais? Experimentem, numa qualquer esquina, interrogar um transeunte, um indígena avulso, mesmo uma porteira que por ali ande, de cão em trela, à espera que a alimária se alivie... perguntem-lhe, vá. “Kant? Emanuel Kant, o filósofo de Konisgsberg?! –Obsequia-vos logo, o aborígene, todo pressuroso. –Não tem nada que enganar, amigo: segue sempre em frente, vira à direita, outra vez á direita, encontra uma praça, com um jardim, é aí mesmo!” E se não vos brindar, à despedida, com um trocadilho brejeiro –do estilo: “mas cuidado não vire à esquerda na segunda direita, senão em vez de Konigsberg vai dar a Caralhisberg, uma chatice, ah-ah-ah!...” – já ides com sorte. Isto tudo se, entretanto, qualquer outro basbaque, daqueles que rondam sempre de olho atento e ouvido à escuta, não flanar nas redondezas e se aperceber da questiúncula. Porque, nesse caso, arrepiai-vos boa gente, pois haverá debate pela certa. Kant é matéria que nenhum português de gema se atreve a deixar impune. O segundo obstará de imediato ao primeiro: “Olhe que não, está a fazer confusão. Aí, na praça, é o Hegel, o filósofo da dialéctica. Kant, o Emanuel, fica dois quarteirões mais acima, logo antes da Travessa do Fichte, o amigo do Schelling”. “Você está a fazer confusão entre o filósofo e o crítico da razão, ora essa!... –retorquirá, o primeiro. –“O crítico é que mora no Largo da Transcendência, o filósofo é como eu digo!...”
Nada a fazer: muni-vos de toda a vossa santa paciência e preparai-vos para uma logomaquia das antigas. Um terceiro, um quarto, não tardarão. Parecem moscas atraídas pela bosta. Em menos de nada já é um areópago, uma assembleia, uma conferência. Cada qual –e serão muitos, garanto-vos–, tentará impingir-vos um itinerário diferente, o último sempre mais peregrino e rocambolesco que o anterior. Quando começarem a berrar alto coisas como “Leibnitz”, a vociferar “Hume” e “Wolf”, e a mandarem-se uns aos outros para o Platão que os pôs ou a socratizar-se naquela parte que vós imaginais, então, temei, fixai que é chegada a hora de sairdes pianinho, à francesa, que o caldo, depois de ferver em três tempos, vai entornar-se pela certa. Ora, se o povo avulso é assim, imaginem agora os assistentes universitários, os catedráticos, os jubilados ( já não falando nos estudantes, essa inefável classe de vermes em trânsito para mariposas). Pois, envernizai a espontaneidade popular com uma camada lustrosa de neurose obsessiva e aí tendes o quadro dos eruditos (em acto ou im-potência). Resumindo: neste raio de país, não há quem não nos explique Kant, com minúcias do arco-da-velha, escalas mirabolantes e em versões tão abstrusas e estapafúdias que nem ao diabo lembrariam, mas todas elas geniais, é claro. Aliás, quanto mais abstrusas, mais talentosas, foras-de-série. Este, de resto, é um traço essencial do carácter luso, um fundamento da sua idiossincrasia: o português não exlica, complica. Respira convicto que saber uma coisa -dominá-la até à medula dos ossos-, é complicá-la, ou seja: arrastá-la pelos cabelos a um labirinto, atomizá-la num alucinante puzzle ou triturá-la em pasta homogénea, em puré imarcescível, com a varinha mágica da sua sobrinteligência. Os portugueses alcançam mesmo o prodígio inaudito de conseguir complicar Kant. E tudo isto duma forma inata, espontânea, enciclopédica. O preço para tanta glória? Apenas uma ligeira contrariedade... Emerso em tão feéricas e prolixas tramas, o patrício nunca entende as coisas: contende com elas. (Uma bagatela, portanto, Deus o abençoe).
Nada a fazer: muni-vos de toda a vossa santa paciência e preparai-vos para uma logomaquia das antigas. Um terceiro, um quarto, não tardarão. Parecem moscas atraídas pela bosta. Em menos de nada já é um areópago, uma assembleia, uma conferência. Cada qual –e serão muitos, garanto-vos–, tentará impingir-vos um itinerário diferente, o último sempre mais peregrino e rocambolesco que o anterior. Quando começarem a berrar alto coisas como “Leibnitz”, a vociferar “Hume” e “Wolf”, e a mandarem-se uns aos outros para o Platão que os pôs ou a socratizar-se naquela parte que vós imaginais, então, temei, fixai que é chegada a hora de sairdes pianinho, à francesa, que o caldo, depois de ferver em três tempos, vai entornar-se pela certa. Ora, se o povo avulso é assim, imaginem agora os assistentes universitários, os catedráticos, os jubilados ( já não falando nos estudantes, essa inefável classe de vermes em trânsito para mariposas). Pois, envernizai a espontaneidade popular com uma camada lustrosa de neurose obsessiva e aí tendes o quadro dos eruditos (em acto ou im-potência). Resumindo: neste raio de país, não há quem não nos explique Kant, com minúcias do arco-da-velha, escalas mirabolantes e em versões tão abstrusas e estapafúdias que nem ao diabo lembrariam, mas todas elas geniais, é claro. Aliás, quanto mais abstrusas, mais talentosas, foras-de-série. Este, de resto, é um traço essencial do carácter luso, um fundamento da sua idiossincrasia: o português não exlica, complica. Respira convicto que saber uma coisa -dominá-la até à medula dos ossos-, é complicá-la, ou seja: arrastá-la pelos cabelos a um labirinto, atomizá-la num alucinante puzzle ou triturá-la em pasta homogénea, em puré imarcescível, com a varinha mágica da sua sobrinteligência. Os portugueses alcançam mesmo o prodígio inaudito de conseguir complicar Kant. E tudo isto duma forma inata, espontânea, enciclopédica. O preço para tanta glória? Apenas uma ligeira contrariedade... Emerso em tão feéricas e prolixas tramas, o patrício nunca entende as coisas: contende com elas. (Uma bagatela, portanto, Deus o abençoe).
sábado, outubro 16, 2004
Os Dragonários - I
Há momentos e tiradas na vida dos escritores –o vulgo chama-lhes excentricidades –, que, quanto a mim, valem um romance dos bons. São desarrincanços de puro génio, merecedores, não dum Nobel que é coisa vulgarizada, muito menos dum Óscar que pior um pouco, mas dum Dragonário, que é Distinção Nobilárquica da Ordem do Espírito que eu mandaria instituir após a minha morte, não se desse o caso –lastimável para o vertente projecto- de ser, eu, imortal.
Assim sendo, que se lixe! Atribuo-os em vida. E, dessa forma sincera, vou distinguindo mortos que são ainda mais imortais que eu.
Começo por um senhor chamado Gérard de Nerval. Consta que se suicidou, na rua da Vieille-Lanterne, em Janeiro de 1855. Subiu ao Olimpo da Bizarria no dia em que resolveu passear no Palais Royal, arrastando uma lagosta viva pela trela. Inquirido sobre tão insigne extravagância, respondeu: «Em que é uma lagosta mais ridícula do que um cão?... Gosto de lagostas, que são sossegadas, sérias, conhecem os segredos do mar, e não ladram.»
São estes raros momentos de clarividência sublime no espírito humano, juntamente com a música de Bach e Mozart que constituem provas inequívocas da existência de Deus. As únicas, aliás, que reconheço. Quanto ao famigerado “argumento ontológico”, escuso de vos dizer o local exacto onde podereis enfiá-lo (precisamente o orifício donde ele saíu).
O divino não se explica, manifesta-se.
Assim sendo, que se lixe! Atribuo-os em vida. E, dessa forma sincera, vou distinguindo mortos que são ainda mais imortais que eu.
Começo por um senhor chamado Gérard de Nerval. Consta que se suicidou, na rua da Vieille-Lanterne, em Janeiro de 1855. Subiu ao Olimpo da Bizarria no dia em que resolveu passear no Palais Royal, arrastando uma lagosta viva pela trela. Inquirido sobre tão insigne extravagância, respondeu: «Em que é uma lagosta mais ridícula do que um cão?... Gosto de lagostas, que são sossegadas, sérias, conhecem os segredos do mar, e não ladram.»
São estes raros momentos de clarividência sublime no espírito humano, juntamente com a música de Bach e Mozart que constituem provas inequívocas da existência de Deus. As únicas, aliás, que reconheço. Quanto ao famigerado “argumento ontológico”, escuso de vos dizer o local exacto onde podereis enfiá-lo (precisamente o orifício donde ele saíu).
O divino não se explica, manifesta-se.
sexta-feira, outubro 15, 2004
Liliput ou Lorbrulgrud
Para efeitos práticos, resumir o homem a um “bom selvagem” ou a um “grande filho da puta”, redunda no mesmo. A antropologia pessimista, como a optimista, serve às mil maravilhas ao materialismo. Fazer fé num putativo (irra, como este adjectivo está na moda!...) idílio ou numa sacanagem perpétua, em teoria pode parecer antípodas, mas na prática conforma uma pocilga geminada.
Todavia, não deixa de ter a sua piada o facto de, genericamente, a direita se reclamar da antropologia derrotista, e a esquerda se circunscrever na eufórica. Visto de cima, como sempre convém nestas coisas, com pinças, máscara e luvas (e um cacete bem a jeito, para o caso de alguma das bestas em análise acordar antes de tempo), dir-se-ia que o nó do problema (rotunda quer da coincidência, quer da derivação) consiste na mudança. Passo a explicar: é na relação com a mudança que uns e outros se definem ( e se geminam, tanto quanto se digladiam). Os da sinistra, viciados empedernidos nela (na mudança, claro está), colocam no termo da saga alucinante um corolário acabado e definitivo. Quer dizer, de charola permanente com o mundo, à pergunta “onde é que isto vai parar?”, efabulam um estado final de perfeição, de ordem incorruptível, e respondem, inerentemente, com um cais terminal da mais sublime estabilidade, um êxtase culminante que preencherá o resto da eternidade – um paraíso inoxidável, em suma.
Por seu lado, os da destra, abominadores encartados dessa mesma mudança, proxenetas maníacos do status quo, vociferam ao carrocel mundano, reforçam os travões da engrenagem e barricam-se na única imutabilidade que, em seu entender, conhecem e proclamam: a da maldade e macaquice atávica do ser humano. Esta, de tão retumbante e estagnada, será a única certeza inamovível do seu sistema, respectivo alicerce e trave mestra.
Destas posições inaugurais, fácil se torna depreender todo o restante novelo argumentativo: para uns, os da direita, de nada adianta mudar o mundo, porque o homem nunca muda, é sempre uma grandessíssima besta; para outros, os da esquerda, há que acelerar o mundo, pô-lo a rodopiar cada vez mais depressa, em frenesins caleidoscópicos, porque quanto mais depressa mudar, mais depressa atinge o seu fim –naturalmente- idílico.
Levar a sério qualquer destas fantasias dignas de manicómio é crer, opcionalmente, que é forçoso que o homem seja uma nuvem gigante ou um anão de merda.
Por último, resta-nos ainda o contra-senso com que se couraçam e se desfraldam aos séculos os próprios termos emblemáticos das duas seitas: enunciar o “bom selvagem”, ou o “grande filho da puta” aniquila-se per si – nenhum “selvagem” é bom, como nenhum “filho da puta” é grande. O conceito de “bondade” é estritamente civilizacional; e é porque se não tem grandeza –de alma, de coração, de inteligência, de humanidade enfim –, que se é filho da puta. Quer dizer, nem a selva é um palco moral por excelência, nem a filha da putice constitui faculdade e resultado de coisas grandes, elevadas ou meritórias.
O Grande filho da puta, na verdade, é um tipo minúsculo, ínfimo, microscópio. Visitamo-lo em Liliput. Já o “bom selvagem”, por seu turno, não deixa de ser uma verbosidade inflaccionada, um gigante feito de vento, um traque em peregrinação de sopro divino. E, geograficamente, se é que geografia tem, fica logo adiante, no naufrágio seguinte. A capital chama-se “Lorbrulgrud”. Swift deixou-nos indicações precisas sobre a latitude e longitude. Se tão exóticas paragens vos interessam, ide consultá-lo. Ele, que fez a viagem – a primeira ao “fim da noite”-, mostra-vos o caminho.
A mim ensinou-me uma das poucas verdades que julgo levar desta vida: a de que o destino da sabedoria é o naufrágio. Não é uma viagem a lado nenhum, como concebem os burgueses e as costureiras; não é um perambular zombificado pelas superfícies: é uma viagem ao fundo. Às vísceras e aos abismos. De nós, do mundo, e de tudo.
Todavia, não deixa de ter a sua piada o facto de, genericamente, a direita se reclamar da antropologia derrotista, e a esquerda se circunscrever na eufórica. Visto de cima, como sempre convém nestas coisas, com pinças, máscara e luvas (e um cacete bem a jeito, para o caso de alguma das bestas em análise acordar antes de tempo), dir-se-ia que o nó do problema (rotunda quer da coincidência, quer da derivação) consiste na mudança. Passo a explicar: é na relação com a mudança que uns e outros se definem ( e se geminam, tanto quanto se digladiam). Os da sinistra, viciados empedernidos nela (na mudança, claro está), colocam no termo da saga alucinante um corolário acabado e definitivo. Quer dizer, de charola permanente com o mundo, à pergunta “onde é que isto vai parar?”, efabulam um estado final de perfeição, de ordem incorruptível, e respondem, inerentemente, com um cais terminal da mais sublime estabilidade, um êxtase culminante que preencherá o resto da eternidade – um paraíso inoxidável, em suma.
Por seu lado, os da destra, abominadores encartados dessa mesma mudança, proxenetas maníacos do status quo, vociferam ao carrocel mundano, reforçam os travões da engrenagem e barricam-se na única imutabilidade que, em seu entender, conhecem e proclamam: a da maldade e macaquice atávica do ser humano. Esta, de tão retumbante e estagnada, será a única certeza inamovível do seu sistema, respectivo alicerce e trave mestra.
Destas posições inaugurais, fácil se torna depreender todo o restante novelo argumentativo: para uns, os da direita, de nada adianta mudar o mundo, porque o homem nunca muda, é sempre uma grandessíssima besta; para outros, os da esquerda, há que acelerar o mundo, pô-lo a rodopiar cada vez mais depressa, em frenesins caleidoscópicos, porque quanto mais depressa mudar, mais depressa atinge o seu fim –naturalmente- idílico.
Levar a sério qualquer destas fantasias dignas de manicómio é crer, opcionalmente, que é forçoso que o homem seja uma nuvem gigante ou um anão de merda.
Por último, resta-nos ainda o contra-senso com que se couraçam e se desfraldam aos séculos os próprios termos emblemáticos das duas seitas: enunciar o “bom selvagem”, ou o “grande filho da puta” aniquila-se per si – nenhum “selvagem” é bom, como nenhum “filho da puta” é grande. O conceito de “bondade” é estritamente civilizacional; e é porque se não tem grandeza –de alma, de coração, de inteligência, de humanidade enfim –, que se é filho da puta. Quer dizer, nem a selva é um palco moral por excelência, nem a filha da putice constitui faculdade e resultado de coisas grandes, elevadas ou meritórias.
O Grande filho da puta, na verdade, é um tipo minúsculo, ínfimo, microscópio. Visitamo-lo em Liliput. Já o “bom selvagem”, por seu turno, não deixa de ser uma verbosidade inflaccionada, um gigante feito de vento, um traque em peregrinação de sopro divino. E, geograficamente, se é que geografia tem, fica logo adiante, no naufrágio seguinte. A capital chama-se “Lorbrulgrud”. Swift deixou-nos indicações precisas sobre a latitude e longitude. Se tão exóticas paragens vos interessam, ide consultá-lo. Ele, que fez a viagem – a primeira ao “fim da noite”-, mostra-vos o caminho.
A mim ensinou-me uma das poucas verdades que julgo levar desta vida: a de que o destino da sabedoria é o naufrágio. Não é uma viagem a lado nenhum, como concebem os burgueses e as costureiras; não é um perambular zombificado pelas superfícies: é uma viagem ao fundo. Às vísceras e aos abismos. De nós, do mundo, e de tudo.
quinta-feira, outubro 14, 2004
O Handicap
Não sei se cada vez há mais homossexuais ou se apenas são cada vez mais ruidosos. Desconheço, na matéria em questão, se é efectivamente o número que tem aumentado, se apenas o barulho. Provavelmente, são as duas coisas: o efectivo e a algazarra. Proliferam e manifestam-se com crescente alarido. Ou então não é nada disso: apenas ganham coragem, à medida que os outros a perdem; apenas levantam a garimpa à medida que os outros a baixam.
Quanto à forma como proliferam, sendo certo que não se extinguem e, pelos vistos, até conhecem épocas em que se tornam infestantes (como a actual), o fenómeno está envolto em algum mistério. Os assumidos (ou gays veteranos, top-models) escorados na experiência, argumentam que se trata, sem sombra de dúvida, de um instinto inato ou, no mínimo, uma vocação congénita (se bem se lembram, levam no cu desde tenra idade, já no berço a paneleirice os convocava); os homofilos, à boleia duma empatia suave, larvar, sustentam que é uma opção legítima (sugerem que, atingida a maioridade, o cidadão escolha); e os homofobos, às voltas com uma grande náusea, afirmam peremptóriamente tratar-se duma doença, um desvio aberrante e perverso (recomendam que se tratem e internem urgentemente).
Não sendo questão que me tire o sono, a mim, suscita-me o seguinte parecer: estou em crer que haverá disso tudo na confraria – congénitos, caprichosos e aberrações. Mas se me perguntarem qual é o mecanismo efectivo de reprodução eu direi que é o recrutamento. Como em tudo, haverá um núcleo, e uma miríade atomizada, orbitrante, à volta do núcleo. O núcleo atrai aquelas partículas todas – polariza, despolariza, concentra, irradia, em suma: pauta as circunvoluções. Se estivessemos a falar do mundo atómico, chamaríamos ao mistério que acciona o carrocel, “energia”. Como estamos a falar do mundo “gay”, a limite, acaba por não ser mistério nenhum. Chamem-lhe “dinheiro” e estamos conversados.
É por isso que, nos dias que correm, a homossexualidade deixou de ser crime: porque compensa. E para aqueles que a Maçonaria ou a Opus Dei não convidam, constitui, de facto, uma “via alternativa”.
Era o meu pai que me dizia, sibilinamente: “Olha, meu filho, nunca te esqueças que partes sempre em desvantagem com as mulheres: elas têm uma quinta entre as pernas.” Muitos anos depois, acho que já reuni dados suficientes para vencer a perplexidade e responder: Pois, ó pai, ainda é pior do que tu pensavas: parece que não é só com as mulheres que parto em desvantagem; é também com cada vez mais homens: também têm uma quinta ao fundo das costas.
Encaro a coisa filosóficamente: é o meu handicap.
Anormais, eles? Não, meus caros: da maneira que isso aí fora vai, o anormal sou eu. Deixemo-nos de ingenuidades.
Quanto à forma como proliferam, sendo certo que não se extinguem e, pelos vistos, até conhecem épocas em que se tornam infestantes (como a actual), o fenómeno está envolto em algum mistério. Os assumidos (ou gays veteranos, top-models) escorados na experiência, argumentam que se trata, sem sombra de dúvida, de um instinto inato ou, no mínimo, uma vocação congénita (se bem se lembram, levam no cu desde tenra idade, já no berço a paneleirice os convocava); os homofilos, à boleia duma empatia suave, larvar, sustentam que é uma opção legítima (sugerem que, atingida a maioridade, o cidadão escolha); e os homofobos, às voltas com uma grande náusea, afirmam peremptóriamente tratar-se duma doença, um desvio aberrante e perverso (recomendam que se tratem e internem urgentemente).
Não sendo questão que me tire o sono, a mim, suscita-me o seguinte parecer: estou em crer que haverá disso tudo na confraria – congénitos, caprichosos e aberrações. Mas se me perguntarem qual é o mecanismo efectivo de reprodução eu direi que é o recrutamento. Como em tudo, haverá um núcleo, e uma miríade atomizada, orbitrante, à volta do núcleo. O núcleo atrai aquelas partículas todas – polariza, despolariza, concentra, irradia, em suma: pauta as circunvoluções. Se estivessemos a falar do mundo atómico, chamaríamos ao mistério que acciona o carrocel, “energia”. Como estamos a falar do mundo “gay”, a limite, acaba por não ser mistério nenhum. Chamem-lhe “dinheiro” e estamos conversados.
É por isso que, nos dias que correm, a homossexualidade deixou de ser crime: porque compensa. E para aqueles que a Maçonaria ou a Opus Dei não convidam, constitui, de facto, uma “via alternativa”.
Era o meu pai que me dizia, sibilinamente: “Olha, meu filho, nunca te esqueças que partes sempre em desvantagem com as mulheres: elas têm uma quinta entre as pernas.” Muitos anos depois, acho que já reuni dados suficientes para vencer a perplexidade e responder: Pois, ó pai, ainda é pior do que tu pensavas: parece que não é só com as mulheres que parto em desvantagem; é também com cada vez mais homens: também têm uma quinta ao fundo das costas.
Encaro a coisa filosóficamente: é o meu handicap.
Anormais, eles? Não, meus caros: da maneira que isso aí fora vai, o anormal sou eu. Deixemo-nos de ingenuidades.
terça-feira, outubro 12, 2004
A Fome e o Veneno
Sua Excelência, o digníssimo Presidente da nossa abananada República, num assomo de rara energia e surpreendente braveza, propõe-se acabar com a censura. Denuncia-a e juramenta-a de morte. Tudo no mesmo dia. Se abananados estávamos, ainda mais abananados ficámos.
Será possível? Uma democracia tão donairosa, tão impoluta, tão pudibunda como a nossa –um regime que qualquer Pangloss céptico não hesitaria em catalogar entre a melhor das democracias possíveis no pior dos mundos imagináveis –, pois, uma maravilha destas, será possível que esteja também ela contaminada, infectada, conspurcada por tão imundo escarépio? Um santuário tão sublime, afinal, diz o próprio Sumo-sacerdote, acoita vampiros e Procustas mutiladores?!...
Como interpretar tão apocaliptica sentença? Devemos correr aos supermercados, como fazem os pobres americanos em véspera de furacão? Impõe-se-nos açambarcar gasolina nas banheiras e produtos essenciais nas garagens? Comprar máscaras? Escavar abrigos subterrâneos? Acolchoar as janelas? Correr às igrejas, em preces de emergência, ou aos filósofos estóicos, em cursos rápidos de resignação? Alguém que nos diga, por amor de Deus! Monte-se um gabinete de crise, uma comissão de acompanhamento das vítimas (que somos e seremos aos milhões, a cair que nem tordos certamente)! Improvisem-se, ao menos, hospitais de campanha, que diabo!... Não se escaqueiram assim as ilusões das pessoas, as concepções idílicas dos cidadãos, o paraíso terreal das hostes, e depois assobia-se para o lado, como se nada fosse! Pelo menos afixem um anjo, nem que seja de barro, e com uma espada de plástico, de sentinela a qualquer retrocesso! Exactamente: À falta de decência, que se salvaguarde um mínimo de dignidade! Atirem-nos no abismo, mas ao menos puxem o autoclismo, irra!...
E, acima de tudo, que compareçam hermeneutas, tradutores, intérpretes! Afinal, que quer dizer Sua Excelência com aquilo –“censura”?
Referir-se-á ao “critério editorial”? O bendito e imaculado “CRITÉRIO EDITORIAL”, por Belenos e Toutatis?!!...
Não posso acreditar. Não quero acreditar. Recuso-me, entrincheiro-me. Nem sob tortura conceberei algum dia tal coisa, tão tremenda abominação. Porque se assim fôr, Sua Excelência que me perdoe a frontalidade, mas blasfema. Blasfema, pragueja, ribomba, com quantos dentes tem, contra o Santíssimo e Altíssimo Mercado. Cospe, despeja, escarra no altar das Leis da Oferta e da Procura, essas Tábuas Santas com que Moisés desceu da montanha. Se o público quer (melhor: exige, reclama, decreta imperiosamente, a toda a hora, de toda a maneira possível e imaginável), novelas e supernovelas –ou sejam, desastres, escândalos, crimes, aberrações, horrores, mentiras, ordinarices, infâmias e quejandos -, que alternativa resta aos profissionais da Comunicação Social, seus vassalos e fornecedores, senão subministrar-lhe os carinhos, substâncias e serviços requeridos?
Vamos imaginar, por hipótese, que não o faziam. Que armavam em vanguardistas peregrinos, amantes da verdade e da decência, paladinos da sensatez e bom gosto. Num instante, ei-los a emitir às moscas e a publicar para o boneco. Num ápice, despenhavam-se as audiências e emagreciam, anoréticas de leitores, as tiragens. Milhares de árvores sacrificavam-se em vão: o papel saía direito do prelo para a lixeira, sem passar pelo olhar guloso da multidão. Quer dizer, sem passar sequer pelo caixote do lixo.
Pois é, em menos de nada faliam jornais e televisões, rebanhos descoroçoados de jornalistas e locutores caíam no desemprego, arrastavam-se pela penúria, perdiam casas e carros, vendiam na feira da ladra os guarda-roupas, cancelavam férias nos trópicos e, de neurónios arquejantes, paranóicos, entupiam os consultórios de psiquiatria, psicologia e similares (ou sejam, bruxas, cartomantes, astrólogos e grandes magos africanos). Entretanto, com tudo isso, lá vinha mais uma sobrecarga para o erário público, já de si tão extenuado: o subsídio de desemprego desta gente não devia ser bagatela nenhuma. A alternativa, não menos sinistra, seria subsidiar os jornais e televisões para que conduzissem campanhas de desintoxicação pública. Pior um pouco, além de imoral, se querem a minha opinião: Lá estava o desgraçado do contribuinte, do público enfim, a pagar por um serviço que lhe causava vómitos, ressacas e sabe-se lá que paroxismos de violência, Deus nos guarde. Por essa ímpia via, para que jornalistas e locutores se aguentassem, mergulhava a economia -toda, e de cabeça - no caos. Porque, sem audiências nem tiragens, não só a desintoxicação fracassava redondamente, como a publicidade ia a pique. Ora, sem conseguir impingir ao pagode as suas porcarias, bugigangas e mixórdias absolutamente supérfluas, desnecessárias, estupidificantes, mas essenciais para a bolsa de negócios, as empresas enfrentavam a ruína e, se não debandassem de urgência para a Cochinchina, entregar-se-iam certamente a estertores e colapsos monumentais. Salvavam-se, por conseguinte, os jornalistas, momentaneamente, mas baqueava tudo o resto, bancos incluídos, porque só de crédito mal parado era uma farturinha, que nem no tempo da mulher da fava rica. Iam cobrar ao Camões, coitaditos dos agiotas. Transformava-se o país numa Guiné. Assim, ainda é uma quase-Angola, mas, insista Sua Excelência no súbito rebate de consciência, e o trambolhão será garantido. Desaba tudo, está bem de ver, num estrondo atroador, e, do “Sem Juízo nenhum”, alcançamos, sem mais preâmbulos nem estações, numa comilonice esbaforida de etapas, o Juízo Final. É mais que certo: Vamos levar com o Céu em cima da cabeça. O que adicionado ao Vazio que cultivamos dentro dela não nos augura uma velhice sossegada.
O que é, então, censurável? Zelar por um critério que dê ao público e aos seus fornecedores profissionais aquilo que todos querem –escândalos e sordidezes àquele, carros, dinheiro, mordomias e viagens a estes; ou irromper aos gritos e remoques contra esta bela harmonia, em ameaças intempestivas contra este equilíbrio natural das coisas?
Sua Excelência, lamentavelmente, confunde o acessório com o essencial. Irrompe em censuras para combater a censura. Acha que empresas que vendem essencialmente publicidade e acessoriamente (des)informam, isto é, cuja função geral de programação é atrair basbaques para a propaganda comercial, são, ou deveriam ser, palcos da notícia séria ou da opinião isenta.
No seu esbracejar tímido, lembra aquele rei distraído que inaugurou a guilhotina: ainda não percebeu que os verdadeiros tribunos do povo, seus representantes efectivos à Convenção, Robespierres e Saint-Justes da nossa época, são os Eduardos Monizes, Balsemões e Amarais todos da paróquia.
Portanto, se Sua Excelência tem amor à reforma, que não será certamente ninharia nenhuma, bem melhor fará se, de cada vez que se descobrir de saco cheio, se puser a reciclar o saco. E se a gambosinagem, pelos vistos, já o enfada, varie: aproveite para enfiar a viola nele. Não vá, em nome duma qualquer liberdade de opinião que, em rigor, a poucos interessa e raramente existe, dar cabo do emprego e ganha pão, no mínimo, de centenas de jornalistas, gente selecta, licenciada, com carros e casas para pagar e férias nas Caraíbas para descomprimir. Já não falando no colégio dos filhos e nos up-grades permanentes que esta nossa sociedade alucinante exige, sob pena de censura, essa sim arrepiante, insidiosa, permanente, de colegas e vizinhos.
(E aqui entre nós, Excelentíssimo: Ficam-lhe bem esses sentimentos, apesar de esporádicos e serôdios. Todavia, acha mesmo, Vª Excª, que fechar a matraca à generalidade dos comentadores e analistas da nossa paróquia seria uma acto de censura? Não o atormentasse essa obstipação nasal crónica, perdoe-me Vossa Alteza a inconfidência, e verificaria como não passaria, na verdade, isso sim, de um acto de higiene).
Pior que reprimir a liberdade de expressão é falsificá-la. Mais infame ainda que a fome é o veneno.
Será possível? Uma democracia tão donairosa, tão impoluta, tão pudibunda como a nossa –um regime que qualquer Pangloss céptico não hesitaria em catalogar entre a melhor das democracias possíveis no pior dos mundos imagináveis –, pois, uma maravilha destas, será possível que esteja também ela contaminada, infectada, conspurcada por tão imundo escarépio? Um santuário tão sublime, afinal, diz o próprio Sumo-sacerdote, acoita vampiros e Procustas mutiladores?!...
Como interpretar tão apocaliptica sentença? Devemos correr aos supermercados, como fazem os pobres americanos em véspera de furacão? Impõe-se-nos açambarcar gasolina nas banheiras e produtos essenciais nas garagens? Comprar máscaras? Escavar abrigos subterrâneos? Acolchoar as janelas? Correr às igrejas, em preces de emergência, ou aos filósofos estóicos, em cursos rápidos de resignação? Alguém que nos diga, por amor de Deus! Monte-se um gabinete de crise, uma comissão de acompanhamento das vítimas (que somos e seremos aos milhões, a cair que nem tordos certamente)! Improvisem-se, ao menos, hospitais de campanha, que diabo!... Não se escaqueiram assim as ilusões das pessoas, as concepções idílicas dos cidadãos, o paraíso terreal das hostes, e depois assobia-se para o lado, como se nada fosse! Pelo menos afixem um anjo, nem que seja de barro, e com uma espada de plástico, de sentinela a qualquer retrocesso! Exactamente: À falta de decência, que se salvaguarde um mínimo de dignidade! Atirem-nos no abismo, mas ao menos puxem o autoclismo, irra!...
E, acima de tudo, que compareçam hermeneutas, tradutores, intérpretes! Afinal, que quer dizer Sua Excelência com aquilo –“censura”?
Referir-se-á ao “critério editorial”? O bendito e imaculado “CRITÉRIO EDITORIAL”, por Belenos e Toutatis?!!...
Não posso acreditar. Não quero acreditar. Recuso-me, entrincheiro-me. Nem sob tortura conceberei algum dia tal coisa, tão tremenda abominação. Porque se assim fôr, Sua Excelência que me perdoe a frontalidade, mas blasfema. Blasfema, pragueja, ribomba, com quantos dentes tem, contra o Santíssimo e Altíssimo Mercado. Cospe, despeja, escarra no altar das Leis da Oferta e da Procura, essas Tábuas Santas com que Moisés desceu da montanha. Se o público quer (melhor: exige, reclama, decreta imperiosamente, a toda a hora, de toda a maneira possível e imaginável), novelas e supernovelas –ou sejam, desastres, escândalos, crimes, aberrações, horrores, mentiras, ordinarices, infâmias e quejandos -, que alternativa resta aos profissionais da Comunicação Social, seus vassalos e fornecedores, senão subministrar-lhe os carinhos, substâncias e serviços requeridos?
Vamos imaginar, por hipótese, que não o faziam. Que armavam em vanguardistas peregrinos, amantes da verdade e da decência, paladinos da sensatez e bom gosto. Num instante, ei-los a emitir às moscas e a publicar para o boneco. Num ápice, despenhavam-se as audiências e emagreciam, anoréticas de leitores, as tiragens. Milhares de árvores sacrificavam-se em vão: o papel saía direito do prelo para a lixeira, sem passar pelo olhar guloso da multidão. Quer dizer, sem passar sequer pelo caixote do lixo.
Pois é, em menos de nada faliam jornais e televisões, rebanhos descoroçoados de jornalistas e locutores caíam no desemprego, arrastavam-se pela penúria, perdiam casas e carros, vendiam na feira da ladra os guarda-roupas, cancelavam férias nos trópicos e, de neurónios arquejantes, paranóicos, entupiam os consultórios de psiquiatria, psicologia e similares (ou sejam, bruxas, cartomantes, astrólogos e grandes magos africanos). Entretanto, com tudo isso, lá vinha mais uma sobrecarga para o erário público, já de si tão extenuado: o subsídio de desemprego desta gente não devia ser bagatela nenhuma. A alternativa, não menos sinistra, seria subsidiar os jornais e televisões para que conduzissem campanhas de desintoxicação pública. Pior um pouco, além de imoral, se querem a minha opinião: Lá estava o desgraçado do contribuinte, do público enfim, a pagar por um serviço que lhe causava vómitos, ressacas e sabe-se lá que paroxismos de violência, Deus nos guarde. Por essa ímpia via, para que jornalistas e locutores se aguentassem, mergulhava a economia -toda, e de cabeça - no caos. Porque, sem audiências nem tiragens, não só a desintoxicação fracassava redondamente, como a publicidade ia a pique. Ora, sem conseguir impingir ao pagode as suas porcarias, bugigangas e mixórdias absolutamente supérfluas, desnecessárias, estupidificantes, mas essenciais para a bolsa de negócios, as empresas enfrentavam a ruína e, se não debandassem de urgência para a Cochinchina, entregar-se-iam certamente a estertores e colapsos monumentais. Salvavam-se, por conseguinte, os jornalistas, momentaneamente, mas baqueava tudo o resto, bancos incluídos, porque só de crédito mal parado era uma farturinha, que nem no tempo da mulher da fava rica. Iam cobrar ao Camões, coitaditos dos agiotas. Transformava-se o país numa Guiné. Assim, ainda é uma quase-Angola, mas, insista Sua Excelência no súbito rebate de consciência, e o trambolhão será garantido. Desaba tudo, está bem de ver, num estrondo atroador, e, do “Sem Juízo nenhum”, alcançamos, sem mais preâmbulos nem estações, numa comilonice esbaforida de etapas, o Juízo Final. É mais que certo: Vamos levar com o Céu em cima da cabeça. O que adicionado ao Vazio que cultivamos dentro dela não nos augura uma velhice sossegada.
O que é, então, censurável? Zelar por um critério que dê ao público e aos seus fornecedores profissionais aquilo que todos querem –escândalos e sordidezes àquele, carros, dinheiro, mordomias e viagens a estes; ou irromper aos gritos e remoques contra esta bela harmonia, em ameaças intempestivas contra este equilíbrio natural das coisas?
Sua Excelência, lamentavelmente, confunde o acessório com o essencial. Irrompe em censuras para combater a censura. Acha que empresas que vendem essencialmente publicidade e acessoriamente (des)informam, isto é, cuja função geral de programação é atrair basbaques para a propaganda comercial, são, ou deveriam ser, palcos da notícia séria ou da opinião isenta.
No seu esbracejar tímido, lembra aquele rei distraído que inaugurou a guilhotina: ainda não percebeu que os verdadeiros tribunos do povo, seus representantes efectivos à Convenção, Robespierres e Saint-Justes da nossa época, são os Eduardos Monizes, Balsemões e Amarais todos da paróquia.
Portanto, se Sua Excelência tem amor à reforma, que não será certamente ninharia nenhuma, bem melhor fará se, de cada vez que se descobrir de saco cheio, se puser a reciclar o saco. E se a gambosinagem, pelos vistos, já o enfada, varie: aproveite para enfiar a viola nele. Não vá, em nome duma qualquer liberdade de opinião que, em rigor, a poucos interessa e raramente existe, dar cabo do emprego e ganha pão, no mínimo, de centenas de jornalistas, gente selecta, licenciada, com carros e casas para pagar e férias nas Caraíbas para descomprimir. Já não falando no colégio dos filhos e nos up-grades permanentes que esta nossa sociedade alucinante exige, sob pena de censura, essa sim arrepiante, insidiosa, permanente, de colegas e vizinhos.
(E aqui entre nós, Excelentíssimo: Ficam-lhe bem esses sentimentos, apesar de esporádicos e serôdios. Todavia, acha mesmo, Vª Excª, que fechar a matraca à generalidade dos comentadores e analistas da nossa paróquia seria uma acto de censura? Não o atormentasse essa obstipação nasal crónica, perdoe-me Vossa Alteza a inconfidência, e verificaria como não passaria, na verdade, isso sim, de um acto de higiene).
Pior que reprimir a liberdade de expressão é falsificá-la. Mais infame ainda que a fome é o veneno.
domingo, outubro 10, 2004
A Vaca Sagrada
Autêntica vaca sagrada do nosso tempo, xarope obrigatório das alminhas, a democracia representativa preside ao consenso das igrejinhas e ao credo dos sacerdotes da Opinião.
Em teoria, a democracia representativa, desfila nos mais virtuosos trajes. Em teoria, o socialismo precedeu-a na mesma procissão em anjélicas vestes. Mas na prática, de roldão com as imundícies da realidade e do mundo concreto dos homens (e, sobretudo, dos negócios), o socialismo foi o que se viu e a democracia trabalha num bordel. Entre nós, por exemplo, nos antípodas da exemplaridade teórica e do altar onde lhe beatificam o espantalho, a ribaldaria já atingiu o requinte da maioria da população –e isto em ocasiões sucessivas –, nem se dar ao trabalho de participar nos sufrágios, de tal forma considera insignes os seus “representantes”, e determinante para o seu futuro o valioso acto. Os tais representantes, por seu turno, revelam uma tal estatura moral, que seguem risonhamente, em alegre pandilha, como se nada se passasse. O óbvio é sempre o mais difícil de compreender: na verdade, é com toda a justeza que se apelida a jigajoga de “representativa”, pois não se esmera e refina ela na representação –pelo menos– teatral? Chegar-se-á ao ponto, não duvidem, de noventa por cento da população se abster e, mesmo assim, a festiva representação não esmorecerá. Os convivas continuarão a celebrar, sabe Deus o quê, abraçados aos comensais. Nunca encontrareis figuras mais ufanas de si, mais compenetradas do seu papel, que as marionetes.
Quanto à única repercussão que tudo isso parece ter é de ordem mimética: quanto mais a população se abstém de votar, mais os seus proclamados representantes, por simpatia, se abstêm de governar. Resvala assim, a santa democracia, para um regime sui generis em que nem o povo vota, nem os eleitos governam –uma espécie de variação em sustenido menor de “nem o pai morre, nem a gente almoça”.
Ou então desdém com desdém se paga: “não quero saber daqueles gajos pra nada”, diz o povo, alvejando os políticos; “não quero saber desses gajos pra nada”, respondem os políticos, borrifando o povo.
Vota, portanto, cada vez menos a maioria – maioria, essa, que constitui, em tese, a grande legitimidade da democracia, o seu argumento-mór-, e vota cada vez mais o rol exclusivo de minorias agremiadas sob a forma de partido, lobby, seita – clientelas, enfim. Por esta altura do campeonato, a coisa, com pompa e circunstância cada vez mais fruste e meramente emblemática, já tresanda a mera fantasia, já se confunde com tragicomédia lúgubre e fantasmagórica.
Há quem argumente que as pessoas não votam por falta de civismo, de cultura democrática, de maturidade política etc. São, dessa forma pilatesca ou meramente defecante, uns bárbaros, uns irresponsáveis, uns ígnaros, uma horda pueril e mal-educada e, assim sendo, ainda bem que não votam. Não são dignos do voto santo tão heróicamente resgatado das garras da tirania.
Este argumento solene, naturalmente, é originário da minoria, dos tais partidos, seitas, famílias (e respectivos apaniguados). É um falso argumento, exercício gratuito de conveniência e apenas ajuda à missa fraudolenta que decorre. A generalidade das pessoas que não vota, pura e simplesmente, já não se sente representada, nem se revê minimamente no teatro que é suposto ser celebrado em sua honra. E, por mais distraída ou desinteressada que seja, ou pareça, já percebeu uma evidência que, de tão grosseira, até brada aos céus: A de que a representação decorre e decorrerá sempre à margem do seu voto. Voto esse, regalia sublime, que, entretanto, na retórica é fundamental, mas na realidade é irrelevante.
O cheque é sempre em branco e o otário assina de cruz.
As tiranias e as pseudo-democracias do nosso tempo têm, pois, de comum esse paradoxo simultaneamente diferencial: o de sermos dirigidos, à canzana, por um imbecil ou por uma chusma deles.
Uma vez que a sociedade, ao contrário do processo de constituição idílico que presidiu –em teoria – à sua génese, se tornou num mero esquema de corrupção dos presumíveis entes que a constituem, torna-se quase forçoso que quem quer que se meta a brios de a capitanear, ou se candidate a tão prestigioso posto, se distinga acima do vulgo no infame e execrável mister de viciar, degenerar e devassar os outros.
Em resumo: Numa república de estúpidos, os digníssimos eleitores elegerão invariavelmente os mais estúpidos de entre eles. Ou o mais estúpido de entre os estúpidos notáveis prescindirá dessa formalidade redundante e, em donaire de príncipe, assumirá, como privilégio exclusivo, essa repugnante tarefa.
Só fantasistas próximos do mais desenfreado delírio poderiam imaginar que num regime absoluto de estupidez qualquer êxito ou bom sucesso estará reservado à inteligência. Todo aquele infeliz a quem esta contamine e desgrace, o melhor mesmo que tem a fazer é tentar disfarçar –o mais discretamente possível – tão inoportuna enfermidade.
Começa a ser já uma questão de sobrevivência.
Em teoria, a democracia representativa, desfila nos mais virtuosos trajes. Em teoria, o socialismo precedeu-a na mesma procissão em anjélicas vestes. Mas na prática, de roldão com as imundícies da realidade e do mundo concreto dos homens (e, sobretudo, dos negócios), o socialismo foi o que se viu e a democracia trabalha num bordel. Entre nós, por exemplo, nos antípodas da exemplaridade teórica e do altar onde lhe beatificam o espantalho, a ribaldaria já atingiu o requinte da maioria da população –e isto em ocasiões sucessivas –, nem se dar ao trabalho de participar nos sufrágios, de tal forma considera insignes os seus “representantes”, e determinante para o seu futuro o valioso acto. Os tais representantes, por seu turno, revelam uma tal estatura moral, que seguem risonhamente, em alegre pandilha, como se nada se passasse. O óbvio é sempre o mais difícil de compreender: na verdade, é com toda a justeza que se apelida a jigajoga de “representativa”, pois não se esmera e refina ela na representação –pelo menos– teatral? Chegar-se-á ao ponto, não duvidem, de noventa por cento da população se abster e, mesmo assim, a festiva representação não esmorecerá. Os convivas continuarão a celebrar, sabe Deus o quê, abraçados aos comensais. Nunca encontrareis figuras mais ufanas de si, mais compenetradas do seu papel, que as marionetes.
Quanto à única repercussão que tudo isso parece ter é de ordem mimética: quanto mais a população se abstém de votar, mais os seus proclamados representantes, por simpatia, se abstêm de governar. Resvala assim, a santa democracia, para um regime sui generis em que nem o povo vota, nem os eleitos governam –uma espécie de variação em sustenido menor de “nem o pai morre, nem a gente almoça”.
Ou então desdém com desdém se paga: “não quero saber daqueles gajos pra nada”, diz o povo, alvejando os políticos; “não quero saber desses gajos pra nada”, respondem os políticos, borrifando o povo.
Vota, portanto, cada vez menos a maioria – maioria, essa, que constitui, em tese, a grande legitimidade da democracia, o seu argumento-mór-, e vota cada vez mais o rol exclusivo de minorias agremiadas sob a forma de partido, lobby, seita – clientelas, enfim. Por esta altura do campeonato, a coisa, com pompa e circunstância cada vez mais fruste e meramente emblemática, já tresanda a mera fantasia, já se confunde com tragicomédia lúgubre e fantasmagórica.
Há quem argumente que as pessoas não votam por falta de civismo, de cultura democrática, de maturidade política etc. São, dessa forma pilatesca ou meramente defecante, uns bárbaros, uns irresponsáveis, uns ígnaros, uma horda pueril e mal-educada e, assim sendo, ainda bem que não votam. Não são dignos do voto santo tão heróicamente resgatado das garras da tirania.
Este argumento solene, naturalmente, é originário da minoria, dos tais partidos, seitas, famílias (e respectivos apaniguados). É um falso argumento, exercício gratuito de conveniência e apenas ajuda à missa fraudolenta que decorre. A generalidade das pessoas que não vota, pura e simplesmente, já não se sente representada, nem se revê minimamente no teatro que é suposto ser celebrado em sua honra. E, por mais distraída ou desinteressada que seja, ou pareça, já percebeu uma evidência que, de tão grosseira, até brada aos céus: A de que a representação decorre e decorrerá sempre à margem do seu voto. Voto esse, regalia sublime, que, entretanto, na retórica é fundamental, mas na realidade é irrelevante.
O cheque é sempre em branco e o otário assina de cruz.
As tiranias e as pseudo-democracias do nosso tempo têm, pois, de comum esse paradoxo simultaneamente diferencial: o de sermos dirigidos, à canzana, por um imbecil ou por uma chusma deles.
Uma vez que a sociedade, ao contrário do processo de constituição idílico que presidiu –em teoria – à sua génese, se tornou num mero esquema de corrupção dos presumíveis entes que a constituem, torna-se quase forçoso que quem quer que se meta a brios de a capitanear, ou se candidate a tão prestigioso posto, se distinga acima do vulgo no infame e execrável mister de viciar, degenerar e devassar os outros.
Em resumo: Numa república de estúpidos, os digníssimos eleitores elegerão invariavelmente os mais estúpidos de entre eles. Ou o mais estúpido de entre os estúpidos notáveis prescindirá dessa formalidade redundante e, em donaire de príncipe, assumirá, como privilégio exclusivo, essa repugnante tarefa.
Só fantasistas próximos do mais desenfreado delírio poderiam imaginar que num regime absoluto de estupidez qualquer êxito ou bom sucesso estará reservado à inteligência. Todo aquele infeliz a quem esta contamine e desgrace, o melhor mesmo que tem a fazer é tentar disfarçar –o mais discretamente possível – tão inoportuna enfermidade.
Começa a ser já uma questão de sobrevivência.
quarta-feira, outubro 06, 2004
O Código da Treta
A montra, duma qualquer livraria (quem vê uma, vê todas), transbordava de lixo imprimido. Se vendesse sabonetes ou shampôs seria cem vezes mais honesta; ou então perucas, vernizes, bronzeadores, laxantes. No fundo, é já isso que vende, mas metaforicamente, em sublimado. Questão de embalagem: em vez de drageias ou supositórios, de spray ou bisnaga, são calhamaços ou edições de bolso.
Não obstante, lá resplandecia uma panóplia dessas obras garridas, pujantes diarreias encadernadas, a transbordar de caracteres fatais. São livros em traje ínfimo, obras de vida fácil, expostas de modo a atrair parolos facilmente deslumbráveis, ou aflitos por uma experiência limite, nas faldas do abismo da sida mental.
Ao observador experiente, aquilo não engana: Há toda uma literatura da meia-porta em dengoso reclame e sugestiva lingerie. Subitamente, num relâmpago, ocorrem-me até certas montras de Amsterdam. Muito mais dignas, as de Amsterdam. E interessantes. Nas putas, reconheço-o, sempre preferi o corpo às ideias. O Verbo e a puta não combinam. Deviam fazer como certas ordens freiráticas: abraçarem votos de silêncio (já que de castidade seria ruinoso). Consigo mesmo conceber a castidade numa puta (a castidade possível, bem entendido): uma puta calada, quanto a mim, poderia ser considerada uma puta casta, porque não? Mas nestes nossos conturbados tempos, puta silente é espécime raro, pérola difícil de encontrar. Mesmo em plena felação, assoberbada de intenso gargarejo e engasgada com grossíssimo volume, a puta cisma de ir gorjeando opiniões, notas de rodapé, comentários. Se um tipo se descuida, ei-la que se mete a brios e desata num romance. Quer contar-nos vidas e enredos, a sua em primeiro lugar. Descuide-se ainda mais um gajo e, pelo meio, intercala ilustrações poéticas e citações eruditas. Agora, então, que as universitárias, discentes e docentes, abraçaram o ramo... É uma chilreação completa e dodecafónica.
A mim, isso contraria-me, enfada-me. Outros há, tipos bizarros, que se adaptam a qualquer extravagância dos tempos. Cito-vos um caso sui-generis: Um tipo meu conhecido, quase avô, misantropo impenitente, chegou mesmo a um acordo conubial extra-doméstico (passe o paradoxo): juntou no mesmo pacote, por comum acordo, felatio e notícias. Quer dizer, a profissional chupa-o e pôe-o a par dos últimos acontecimentos, lê-lhe o telejornal. “Escuto-a repimpado”, garante ele. “Ao mesmo tempo –acrescenta–, realizo uma fantasia antiga e imagino que é a Judite de Sousa (ou então a Clara do mesmo apelido) que me entrevista”. Que querem que vos diga? É um noticiário como outro qualquer, admito. Poderá até ser um programa de grande informação, não discuto. Tem, não me custa reconhecê-lo, algumas vantagens em relação à modalidade clássica: sempre é melhor que nos chupem a altiva gaita do que nos vão ao incauto e desvalido cu, ainda por cima em directo, com a maior desfaçatez e ufana impunidade. Portanto que faça de locutora, a puta incontinente, verborreica, que leia o boletim meteorológico ou entreviste um doutor Ginjas qualquer , é com’ó outro: não me escandaliza. Entre a Comunicação Social e a Literatura há, de resto, um abismo, um báratro escancarado. Aristóteles, na “Poética”, delimita-o: uma, a Literatura, trata do verosímil; a outra, sabemos nós, estamos mesmo fartos der saber, embrenha-se, feita exploradora amazónica, pelas selvas do inverosímil a fora. Melhor: vende-o, impinge-o, ao jeito dos charlatães de todas as épocas, em frasquinhos de banha da cobra com rótulos de “verdade”, “facto”, “análise”, “actualidade”, etc. São histórias, regra geral, sem pés nem cabeça, peripécias absurdas, enredos histriónicos, desenlaces irrisórios. Ao contrário do terror e da piedade, desperta a indiferença, a abulia e o amorfismo no ouvinte. Dizem-me que é propositado, premeditado, e eu, sem grande esforço, até acredito. Mas, pronto, são coisas de putas...A falsidão e a perfídia está-lhes na massa do sangue.
Agora, que a puta se ponha a escrever romances, aí, confesso, brado-o de viva voz, é amalgamar tudo numa salganhada babélica e nauseabunda. É submeter a literatura aos atavios da Comunicação Social; é entregá-la à supervisão de proxenetas e obrigá-la a montar guiché, semi-despida, nos passeios e esquinas mal frequentados, após o crepúsculo. E isso, digníssimos leitores, não é de puta, é de monstro. Mais que ao felatio, o putedo entrega-se à quimera. Em vez de realizar as fantasias do cliente, como manda a ordem natural das coisas e a tarifa previamente acordada, pôe-se a realizar as suas. Em vez de servir o cliente, serve-se dele: cobra-lhe e vigariza-o na sua boa fé. Simula a felação, mas na verdade, armada em garanhã peregrina, quer é montá-lo, submetê-lo a trabalho forçado, a escravatura dissimulada. Isto, repito, já não é putice; e, tanto quanto monstruosidade, é política, é ciência, é ficção científica – é o que lhe quiserem chamar, mas, aviso já, não tem dignidade nenhuma. Quem tal faz já nem uma digníssima puta é. Nem aprendiz de puta!, nem projecto rudimentar de galdéria, sequer! Em vez de chupar a gaita ao necessitado, mete-se, doida de petulância, a detonar Génesis e Universos paralelos, a flirtar transcendências e dinastias celestes!...
Que uma mulher, de emboscada, numa qualquer esquina da vida, nos ataque com o seu invólucro carnal, nos assalte com a imponência das suas curvas, é justo. É uma luta corpo a corpo, uma refrega homérica, um duelo de titãs. Mas quando a puta se arma de ideias, de teses, de teorias da conspiração, da transpiração ou do diabo que a carregue, é a antecâmara do massacre!; é, não duvidem, o prelúdio do fim do mundo em cuecas.
Entendamo-nos: aquele conjunto mais ou menos atraente de mamas, nalgas e coxas que, simultaneamente, constitui e reveste a puta (que congrega, portanto, essência e aparência da criatura), esgota o assunto. Que exerça em broche expresso ou capuccino, que se pós-gradue em sodomias ou sado-masoquismos, que se faça cobrar a peso de ouro pelos títulos, tanto quanto pelas perícias e registos curriculares (que entalhe, inerentemente, marcas no cabo do chicote ou tricoteie piercings nas bordas da cona), é-me indiferente. Deveras! Aliás, até acho bem; resulta pitoresco. Mas que se deixe de metafísicas, que não arme em esotérica. Puta sábia não aturo; puta investigadora, enfarpelada em pseudo-objectividade é que não! A tal categoria de puta, artigo claramente deteriorado, só se concebe um destino: remetimento à procedência, à cloaca vil da mãe dela, quiçá sua mestra e promotora.
Perdoar-me-ão a brutalidade dos termos, a falta absoluta de paciência, mas foi o que me ocorreu escrever acerca duma montra de livraria. Para ajudar à descodificação da alegoria, acrescento apenas que a preenchiam, à dita montra, em expositório escrementício, uma resma de hamburgueres disfarçados de livros e outras tantas bostas em forma de hamburguer. Os títulos são o menos importante: quer se chamem “Código Da Vinci”, “Harry Potter e o peido Mágico”, “O segredo dos Templários”, “As bruxas de Avalon”, ou “Os Cinco na Torre do farol”, são tudo colheitas sucessivas duma mesma saga. E as autoras, ainda que ocasionalmente assinem com supostos testículos, não passam de pseudónimos e epónimos da sempiterna Enid Blyton, aliás J.K. Rowling, aliás Zimmer Bradley, aliás, D. Brown, aliás etc. Há toda uma fábrica anglosaxónica de esterco tipografado que não dorme nem descansa. O seu lema? Fazer do imberbe imbecil e do adulto, imberbe. E fazer dinheiro com isso tudo.
Assim sendo, só me resta concluir: se é isto que as hordas lêem, se é isto que as lojas de livros vendem, então, Ele que me perdoe o mote, mas “bem aventurados os analfabetos!”