quarta-feira, outubro 06, 2004

O Código da Treta


A montra, duma qualquer livraria (quem vê uma, vê todas), transbordava de lixo imprimido. Se vendesse sabonetes ou shampôs seria cem vezes mais honesta; ou então perucas, vernizes, bronzeadores, laxantes. No fundo, é já isso que vende, mas metaforicamente, em sublimado. Questão de embalagem: em vez de drageias ou supositórios, de spray ou bisnaga, são calhamaços ou edições de bolso.
Não obstante, lá resplandecia uma panóplia dessas obras garridas, pujantes diarreias encadernadas, a transbordar de caracteres fatais. São livros em traje ínfimo, obras de vida fácil, expostas de modo a atrair parolos facilmente deslumbráveis, ou aflitos por uma experiência limite, nas faldas do abismo da sida mental.
Ao observador experiente, aquilo não engana: Há toda uma literatura da meia-porta em dengoso reclame e sugestiva lingerie. Subitamente, num relâmpago, ocorrem-me até certas montras de Amsterdam. Muito mais dignas, as de Amsterdam. E interessantes. Nas putas, reconheço-o, sempre preferi o corpo às ideias. O Verbo e a puta não combinam. Deviam fazer como certas ordens freiráticas: abraçarem votos de silêncio (já que de castidade seria ruinoso). Consigo mesmo conceber a castidade numa puta (a castidade possível, bem entendido): uma puta calada, quanto a mim, poderia ser considerada uma puta casta, porque não? Mas nestes nossos conturbados tempos, puta silente é espécime raro, pérola difícil de encontrar. Mesmo em plena felação, assoberbada de intenso gargarejo e engasgada com grossíssimo volume, a puta cisma de ir gorjeando opiniões, notas de rodapé, comentários. Se um tipo se descuida, ei-la que se mete a brios e desata num romance. Quer contar-nos vidas e enredos, a sua em primeiro lugar. Descuide-se ainda mais um gajo e, pelo meio, intercala ilustrações poéticas e citações eruditas. Agora, então, que as universitárias, discentes e docentes, abraçaram o ramo... É uma chilreação completa e dodecafónica.
A mim, isso contraria-me, enfada-me. Outros há, tipos bizarros, que se adaptam a qualquer extravagância dos tempos. Cito-vos um caso sui-generis: Um tipo meu conhecido, quase avô, misantropo impenitente, chegou mesmo a um acordo conubial extra-doméstico (passe o paradoxo): juntou no mesmo pacote, por comum acordo, felatio e notícias. Quer dizer, a profissional chupa-o e pôe-o a par dos últimos acontecimentos, lê-lhe o telejornal. “Escuto-a repimpado”, garante ele. “Ao mesmo tempo –acrescenta–, realizo uma fantasia antiga e imagino que é a Judite de Sousa (ou então a Clara do mesmo apelido) que me entrevista”. Que querem que vos diga? É um noticiário como outro qualquer, admito. Poderá até ser um programa de grande informação, não discuto. Tem, não me custa reconhecê-lo, algumas vantagens em relação à modalidade clássica: sempre é melhor que nos chupem a altiva gaita do que nos vão ao incauto e desvalido cu, ainda por cima em directo, com a maior desfaçatez e ufana impunidade. Portanto que faça de locutora, a puta incontinente, verborreica, que leia o boletim meteorológico ou entreviste um doutor Ginjas qualquer , é com’ó outro: não me escandaliza. Entre a Comunicação Social e a Literatura há, de resto, um abismo, um báratro escancarado. Aristóteles, na “Poética”, delimita-o: uma, a Literatura, trata do verosímil; a outra, sabemos nós, estamos mesmo fartos der saber, embrenha-se, feita exploradora amazónica, pelas selvas do inverosímil a fora. Melhor: vende-o, impinge-o, ao jeito dos charlatães de todas as épocas, em frasquinhos de banha da cobra com rótulos de “verdade”, “facto”, “análise”, “actualidade”, etc. São histórias, regra geral, sem pés nem cabeça, peripécias absurdas, enredos histriónicos, desenlaces irrisórios. Ao contrário do terror e da piedade, desperta a indiferença, a abulia e o amorfismo no ouvinte. Dizem-me que é propositado, premeditado, e eu, sem grande esforço, até acredito. Mas, pronto, são coisas de putas...A falsidão e a perfídia está-lhes na massa do sangue.
Agora, que a puta se ponha a escrever romances, aí, confesso, brado-o de viva voz, é amalgamar tudo numa salganhada babélica e nauseabunda. É submeter a literatura aos atavios da Comunicação Social; é entregá-la à supervisão de proxenetas e obrigá-la a montar guiché, semi-despida, nos passeios e esquinas mal frequentados, após o crepúsculo. E isso, digníssimos leitores, não é de puta, é de monstro. Mais que ao felatio, o putedo entrega-se à quimera. Em vez de realizar as fantasias do cliente, como manda a ordem natural das coisas e a tarifa previamente acordada, pôe-se a realizar as suas. Em vez de servir o cliente, serve-se dele: cobra-lhe e vigariza-o na sua boa fé. Simula a felação, mas na verdade, armada em garanhã peregrina, quer é montá-lo, submetê-lo a trabalho forçado, a escravatura dissimulada. Isto, repito, já não é putice; e, tanto quanto monstruosidade, é política, é ciência, é ficção científica – é o que lhe quiserem chamar, mas, aviso já, não tem dignidade nenhuma. Quem tal faz já nem uma digníssima puta é. Nem aprendiz de puta!, nem projecto rudimentar de galdéria, sequer! Em vez de chupar a gaita ao necessitado, mete-se, doida de petulância, a detonar Génesis e Universos paralelos, a flirtar transcendências e dinastias celestes!...
Que uma mulher, de emboscada, numa qualquer esquina da vida, nos ataque com o seu invólucro carnal, nos assalte com a imponência das suas curvas, é justo. É uma luta corpo a corpo, uma refrega homérica, um duelo de titãs. Mas quando a puta se arma de ideias, de teses, de teorias da conspiração, da transpiração ou do diabo que a carregue, é a antecâmara do massacre!; é, não duvidem, o prelúdio do fim do mundo em cuecas.
Entendamo-nos: aquele conjunto mais ou menos atraente de mamas, nalgas e coxas que, simultaneamente, constitui e reveste a puta (que congrega, portanto, essência e aparência da criatura), esgota o assunto. Que exerça em broche expresso ou capuccino, que se pós-gradue em sodomias ou sado-masoquismos, que se faça cobrar a peso de ouro pelos títulos, tanto quanto pelas perícias e registos curriculares (que entalhe, inerentemente, marcas no cabo do chicote ou tricoteie piercings nas bordas da cona), é-me indiferente. Deveras! Aliás, até acho bem; resulta pitoresco. Mas que se deixe de metafísicas, que não arme em esotérica. Puta sábia não aturo; puta investigadora, enfarpelada em pseudo-objectividade é que não! A tal categoria de puta, artigo claramente deteriorado, só se concebe um destino: remetimento à procedência, à cloaca vil da mãe dela, quiçá sua mestra e promotora.
Perdoar-me-ão a brutalidade dos termos, a falta absoluta de paciência, mas foi o que me ocorreu escrever acerca duma montra de livraria. Para ajudar à descodificação da alegoria, acrescento apenas que a preenchiam, à dita montra, em expositório escrementício, uma resma de hamburgueres disfarçados de livros e outras tantas bostas em forma de hamburguer. Os títulos são o menos importante: quer se chamem “Código Da Vinci”, “Harry Potter e o peido Mágico”, “O segredo dos Templários”, “As bruxas de Avalon”, ou “Os Cinco na Torre do farol”, são tudo colheitas sucessivas duma mesma saga. E as autoras, ainda que ocasionalmente assinem com supostos testículos, não passam de pseudónimos e epónimos da sempiterna Enid Blyton, aliás J.K. Rowling, aliás Zimmer Bradley, aliás, D. Brown, aliás etc. Há toda uma fábrica anglosaxónica de esterco tipografado que não dorme nem descansa. O seu lema? Fazer do imberbe imbecil e do adulto, imberbe. E fazer dinheiro com isso tudo.
Assim sendo, só me resta concluir: se é isto que as hordas lêem, se é isto que as lojas de livros vendem, então, Ele que me perdoe o mote, mas “bem aventurados os analfabetos!”

3 comentários:

  1. Ai o “projecto rudimentar de galdéria”, o “o prelúdio do fim do mundo em cuecas”
    Este texto é um desbarato de talento, carago!

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  2. Pá...são historietas. Apenas isso. Estão para a literatura em que se escreve com todas as letras, utilizando recursos estilísticos e semânticos, como o fast food para o slow food mais "exquisite". Entre esses dois modos extremados de alimentação do espírito, subsistem uns aperitivos caseiros, com expressão em certa literatura policial e até na bd; uns petiscos de qualidade, em escritos artesanais e umas entradas valentes, tipo Fialho ( o de Évora) ou Tromba Rija( a de Marrazes), nas obras daqueles que sendo falhos de grandes voos imaginativos, escrevem como demiurgos do verbo.
    No teu caso, a escrita, como diria Caetano Veloso "se reparte em crimes, Espaçonaves, guerrilhas
    Em Cardinales bonitas" ( Alegria, Alegria).
    Por isso leio aqui. Como leria se fosse noutro lado.
    O paralelo computadorístico, no entanto, parece-me um pouco forçado. Uma puta é sempre uma tristeza porque lhe falha sempre a dimensão mais importante: love, love, love, como cantavam os Beatles.

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